A imitação alusiva na poesia dramática de Sêneca e a questão dos modelos
José Eduardo dos Santos Lohner (*)
Dado o estado fragmentário em que chegou para nós toda a produção dos tragediógrafos da época da República (final do IIIº ao Iº século a. C.)(1), as peças de Sêneca são a principal e quase única referência que temos da tragédia latina(2). A perda mais significativa, do ponto de vista qualitativo, talvez tenha sido a das peças escritas na época de Augusto, duas delas, a Medéia de Ovídio e o Tiestes de Vário, consideradas pelos antigos como as obras mais perfeitas da dramaturgia latina. Foi também considerável, ao menos do ponto de vista quantitativo, o desaparecimento das peças escritas ao longo do século I d. C., período em que, conforme sugere uma passagem do Diálogo dos Oradores de Tácito, a poesia trágica parece ter sido bastante cultivada, entre intelectuais romanos, como instrumento de crítica moral, tendo como alvo, sobretudo, a vida política do império(3).

 

Em virtude de tais perdas, sendo muito limitada a possibilidade de apreciação da poesia dramática de Sêneca no contexto da tradição latina, a leitura dessas peças sempre foi feita, forçosamente, sob a luz dos textos remanescentes da tragédia grega do quinto século a. C., até porque os enredos, em boa parte, são similares(4). Desse enfoque, em que é confrontada, de um lado, a produção modelar de três dos maiores poetas gregos do gênero e que, além do mais, eram autores, por assim dizer, “profissionais”, inteiramente consagrados à atividade teatral, e de outro, a relativamente escassa obra dramática de um escritor que se celebrizou no gênero da prosa filosófica e epistolar, tendo ocasionalmente composto tragédias, resultou uma crítica de intuito valorativo, inevitavelmente depreciativa, que via, no grande distanciamento estético das peças de Sêneca em relação às gregas, uma prova tão-somente da insuficiência desse autor e da dimensão menor de sua obra dramática.

 

Essa vertente crítica, evidentemente falhou, entre outros motivos, por deixar de lado o fato de que o gênero trágico sofreu acentuadas transformações entre os gregos, como assinala Aristóteles na Poética, e, sobretudo, entre os latinos, uma vez que seus primeiros tragediógrafos tiveram que conciliar o gênero literário grego à prática teatral de origem etrusca, de longa data estabelecida em Roma. A isso ainda se acrescenta um provável aprimoramento estético ocorrido não até a época de Augusto, mas principalmente nesse período, situado cerca de meio século antes da composição dos dramas de Sêneca. Em reação a isso, os métodos de investigação aplicados mais recentemente procuram privilegiar a análise desses poemas em seus aspectos singulares, levando em conta os elementos da tradição literária latina diretamente observáveis neles, bem como os que podem ser seguramente inferidos. É sem dúvida mais lúcida e coerente a visão crítica que esse enfoque possibilita, não obstante as limitações a que está sujeito, dada a referida escassez de documentos. Nessa perspectiva, será sucintamente tratada aqui a questão dos modelos imediatos da poesia de Sêneca, por meio do exame de um expediente de composição que nela se destaca bastante: o da imitação alusiva

A linguagem poética, desde a época de Augusto, mostrou-se cada vez mais impregnada de referências a obras consagradas da literatura latina, que constituíam então um patrimônio literário. Como muitos prosadores da época de Cícero e, especialmente, os poetas da época de Augusto se tornaram — como se diz modernamente clássicos, não era mais um imperativo, para os escritores posteriores, remontar sempre aos modelos gregos. a partir de Ovídio observa-se a imitação do classicismo latino. Virgílio suscitou um maior número de imitações, por ter logo se tornado um autor escolar, aprendido de cor e sempre relido, ou “explorado cotidianamente”, conforme as palavras do próprio Sêneca: hunc [poetam] qui cotidie excutitur(5). Mesmo a tragédia latina, na época de Augusto, havia alcançado uma estatura que lhe permitia ser considerada digna de rivalizar com a obra dos grandes trágicos gregos. Essa era uma opinião corrente no primeiro século d.C., conforme atesta Quintiliano(6), que, ao referir-se às conquistas de Roma no gênero trágico, menciona Pacúvio e Ácio como grandes precursores; Vário e Ovídio como autores das mais perfeitas realizações romanas nesse gênero

Em vista desse contexto, seria surpreendente que as peças de Sêneca, escritas, em boa parte, na época de Nero, nos anos 50 e 60, não estivesse fortemente vinculada à tradição latina, no tocante à dicção poética e até mesmo à própria concepção da forma trágica, contrariamente àquela referida opinião, bastante arraigada até meados do século passado, de que suas peças eram adaptações diretas das obras dos trágicos gregos do quinto século(7). A análise comparativa indica que as semelhanças se restringem basicamente ao enredo mitológico, não havendo qualquer evidência de uma relação imediata entre os versos de Sêneca e o daqueles autores, nem uma estreita correspondência de vocabulário.
 

Justamente quanto a esse último aspecto, a poesia de Sêneca apresenta estreita proximidade com obras latinas, especialmente com aquelas que, de longa data, faziam parte da formação escolar(8). Tal utilização de modelos do classicismo latino nas tragédias de Sêneca, constatável não apenas na sua dicção, mas também na caracterização dos personagens, bem como, além disso, outros fatores como acentuadas diferenças na estrutura e na técnica de construção do drama em relação às peças gregas, a própria divisão em cinco atos, posterior a Eurípides e prescrita por Horácio, na Arte Poética, tudo isso aponta para a influência, sobre tais peças, especialmente da tragédia da época de Augusto. Esta é uma hipótese sustentada por Ronald Tarrant, num longo ensaio sobre os componentes da dramaturgia romana e senecana, onde o autor afirma, ao concluir: “Mesmo que Sêneca tenha, em alguns casos, recorrido a textos [dramáticos] da época da República ou do quinto século a. C., suas idéias sobre a forma e a linguagem trágicas haviam sido de tal modo fixadas pelos modelos da época de Augusto, que ele moldou seu material com base em suas especificações(9). Ajuda a confirmar a coerência de tal hipótese a análise, apresentada a seguir, de comprováveis referências de versos de Sêneca a modelos não dramáticos do classicismo latino, a despeito de abordar um número bastante restrito de exemplos. Para isso, serão tomadas algumas passagens da tragédia Agamêmnon que podem ser seguramente relacionadas a versos de Virgílio e Ovídio(10). Ainda o fato de ser possível apontar, ao lado desses modelos do classicismo, também uma alusão a versos de um autor arcaico como Lívio Andronico, constitui mais um índice da importância da tradição latina na linguagem trágica de Sêneca.

Nesta peça, quase todo o terceiro ato é ocupado pela longa fala do mensageiro Euríbates (versos 421-578), na qual se descreve a grande tempestade ocorrida durante o retorno da esquadra grega, após a queda de Tróia. Assim, algumas passagens do primeiro livro da Eneida, do livro XI das Metamorfoses de Ovídio, bem como da elegia I, 2 da obra Tristia desse mesmo autor, em que igualmente é tratado o tópico da tempestade marítima, podem ser apontados entre os principais modelos para os versos de Sêneca aqui indicados(11).

Convém, antes de tudo, lembrar que, nesse tipo de narrativa, era norma o emprego de certo número de lugares-comuns. Dentre esses tópoi, destacam-se por exemplo os seguintes: o cair da noite, a extensão das trevas, a agitação das águas, a menção a nuvens, trovões e raios, o entrechoque dos ventos, o pavor dos marinheiros, o perigo dos rochedos, o abandono da arte e da razão(12). No tocante ao conteúdo, obviamente isso explica a ocorrência das mesmas imagens ou de imagens análogas nos trechos desses três autores. No entanto, convém esclarecer que, na avaliação da proximidade entre esta seção do poema de Sêneca e seus modelos, o tipo de imitação considerado restringe-se ao âmbito da elocução, dentro do qual, especificamente, serão observados dois aspectos: a escolha lexical e a articulação sintática.

Em primeiro lugar, a referência às trevas e à agitação das águas aparece entre os versos 469-476 de Sêneca, que podem ser confrontados com os versos 479-481 e 517-518 do livro XI das Metamorfoses.

agitata uentis unda uenturis tumet
cum subito luna conditur, stellae cadunt,
in
astra pontus tollitur, caelum perit.
Nec
una nox est: densa tenebra obruit
caligo et omni luce subducta fretum

caelumque miscet. Vndique incumbunt simul
rapiuntque pelagus infimo euersum solo
aduersus Euro Zephyrus et Boreae Notus;
Sên. Ag. 469-476
 
a onda infla agitada aos ventos que vão vir,
súbito a lua então se esconde, estrelas caem,
o
mar até aos astros se ergue, o céu perece.
A
noite não é uma : um denso nevoeiro
cobre as trevas e, extinta toda a luz, confunde
mar e céu. Baixam juntos, de todos os lados,
e ao
pélago, turbado desde o fundo, agarram,
o
Zéfiro de encontro ao Euro e o Noto, ao Bóreas.
 
[...] longeque erat utraque tellus,
cum mare sub noctem tumidis albescere coepit

fluctibus et praeceps spirare ualentius Eurus.
Ov. Met. XI, 479-481
 
[...] E estavam longe ambas as terras,
quando o mar, sob a noite, começou a alvejar com túmidas
ondas e o Euro, precipitando-se, a soprar com mais força.
 
Inque fretum credas totum descendere caelum
Inque
plagas caeli tumefactum ascendere pontum.
Ov. Met. XI, 517-518
 
E crerias que o céu inteiro baixava sobre o mar revolto
e que, intumescido, o mar subia à região do céu

Com relação ao primeiro trecho de Ovídio, nota-se o paralelo na estruturação sintática: a construção no ablativo "uentis...uenturis" (Ag. 469), é análoga de "tumidis...fluctibus" (Met. 480-81), e ainda as orações temporais de mesmo padrão, encabeçando o verso: cum subito luna conditur (Ag. 470) que, além da sintaxe, reproduz, de modo condensado, a sonoridade do verso de Ovídio, conforme vem grifado a seguir: cum mare sub noctem tumidis... coepit (Met. 480). 

A imagem que aparece nos vv. 517-518 de Ovídio são inseridas pelo tragediógrafo, primeiramente, nos vv. 470-471 do Agamêmnon, e mais adiante, numa imitação mais direta, nos vv. 485-487, em que é conservada a sintaxe do trecho de Ovídio, com as orações infinitivas dependentes de crederes em paralelo com as infinitivas, no trecho de Ovídio, subordinadas ao verbo credas.

Mundum reuelli sedibus totum suis
ipsosque rupto crederes caelo deos
decidere et atrum rebus induci chaos
Sên. Ag. 485-487

Era
de crer que o mundo inteiro se arrancava
de
suas bases e, aberto o céu, que os próprios deuses,
despencavam, cobrindo a tudo um negro caos.

É possível ver, nos versos 474-476 do Agamêmnon, uma fusão e variação, por um lado, dos versos da Eneida I, 84-86 e, por outro, dos versos 27-30 da elegia I, 2 dos Tristia. De Virgílio viriam o verbo, que aparece na forma do perfeito incubuere, e os elementos da frase totumque a sedibus imis una...ruont, reelaborados nos versos 474-475; de Ovídio, a menção aos ventos, a partir da fusão daqueles quatro versos indicados, sendo mantida a ordem em que os quatro ventos aparecem nomeados.

[...] Vndique incumbunt simul
rapiuntque pelagus infimo euersum solo
aduersus Euro Zephyrus et Boreae Notus;
Sên. Ag. 474-476
 
[...] Baixam juntos, de todos os lados,
e ao
pélago, turbado desde o fundo, agarram,
o
Zéfiro de encontro ao Euro e o Noto, ao Bóreas.
 
Incubuere mari totumque a sedibus imis
una Eurusque Notusque ruont creberque procellis
Africus et uastos uoluont ad litora fluctus;
Virg. En. I, 84-86
 
Baixaram sobre o mar, e inteiro, desde o leito profundo,
juntos, o Euro e o Noto o arrancam e, carregado de procelas,
o Áfrico, e rolam vastas
ondas contra as praias.
 
nam modo purpureo uires capit Eurus ab ortu,
nunc Zephyrus sero uespere missus adest,
nunc sicca gelidus Boreas bacchatur ab Arcto
nunc Notus aduersa proelia
fronte gerit.
Ov. Tr. I, 2, 27-30
 
pouco, desde o purpúreo nascente, o Euro reúne forças,
agora eis o Zéfiro enviado do tardio poente,
agora, desde a seca estrela polar, o gélido Bóreas agita-se,
agora o Noto, opondo sua fronte, trava combates

Nos versos 482-485 de Sêneca, ocorre uma citação do verso 61, do livro I das Metamorfoses. É também observável novamente a presença da sintaxe de Ovídio (Met. XI, 554-555) no complemento adverbial sedibus...suis, empregado por Sêneca. 

[...] Eurus orientem mouet
Nabataea quatiens regna et Eoos sinus.
Quid rabidus
ora Corus Oceano exerens?
Mundum reuelli sedibus totum suis
Sên. Ag. 482-485
 
[...] o Euro agita o Oriente,
os
reinos nabateus turba e os confins da aurora.
E o irado
Coro, então, a erguer no Oceano o rosto?
Era de crer que o mundo inteiro se arrancava
de
suas bases [...]
 
Eurus ad auroram Nabataeaque regna recessit.
Ov. Met. I, 61
 
O Euro retirou-se em direção da aurora e dos reinos nabateus.
 
[...] siquis Athon Pindumue reuolsos
sede sua totos in apertum euerterit aequor
Ov. Met. XI, 554-555
 
[...] se alguém, o Áton e o Pindo, arrancados
de
sua base, tiver lançado inteiros no mar aberto.

O tópos da extensão das trevas é tratado nos vv. 490-495, que seguem de perto o texto de Ovídio (Met. XI, 519-523), e combinam também alguns elementos do texto de Virgílio (En. I, 88-90). 

undasque miscent imber et fluctus suas.
Nec hoc leuamen denique aerumnis datur
uidere saltem et nosse quo pereant malo;

premunt tenebrae lumina et dirae Stygis
inferna nox est. Excidunt ignes tamen
et nube dirum fulmen elisa micat,
Sên. Ag. 490-495
 
e a borrasca e os refluxos mesclam suas águas.
Nem este alívio é dado enfim às desventuras:
ver e saber ao menos de que mal perecem.
As
trevas lhes oprimem os olhos; do atro Estige
faz-se a
noite infernal. Chamas caem, porém,
e, contraída a
nuvem, fulge o raio atroz,
 
[...] et cum caelestibus undis
aequoreae miscentur aquae; caret ignibus aether
caecaque nox premitur tenebris hiemisque suisque.
Discutiunt tamen has praebentque minantia lumen
fulmina; fulmineis ardescunt ignibus undae.
Ov. Met., XI 519-523
 
[...] e com as águas celestes
mesclam-se as ondas do mar; carece de luzes o éter
e cega noite é premida pelas trevas do mau tempo, além das suas.
Rasgam-nas, porém, e mostram seu lume os raios ameaçantes;
sob fogos fulmíneos vão ardendo as ondas.
 
Eripiunt subito nubes caelumque diemque
Teucrorum ex oculis; ponto nox incubat atra.
Intonuere poli et crebris micat ignibus aether
Virg. En. I, 88-90
 
As nuvens súbito arrebatam o céu e o dia
dos olhares dos teucros; baixa negra noite sobre o mar.
Os
pólos trovejaram e o éter cintila com fogos contínuos

Os versos de Ovídio et cum caelestibus undis aequoreae miscentur aquae (Met. 519-520) são parafraseados por Sêneca em undasque miscent imber et fluctus (Ag. 490), o que igualmente se observa entre os versos caecaque nox premitur tenebris (Met. 521) e premunt tenebrae lumina (Ag. 493). Ainda a articulação sintática da frase de Ovídio discutiunt tamen has praebentque minantia lumen fulmina (Met. 522-3) repete-se em Sêneca, na frase Excidunt ignes tamen et nube dirum fulmen elisa micat (Ag. 494-5). A construção de Virgílio, com o substantivo “nox” no nominativo determinado por um adjetivo, em nox incubat atra (En. I, 89) reaparece em Ovídio (caeca nox) e também em Sêneca, na frase et dirae Stigis inferna nox est (Ag. 493-4).

No trecho entre os vv. 498-504 do Agamêmnon, a narrativa atinge o clímax, ao descrever-se a destruição da frota.

[…] Ipsa se classis premit
et prora prorae nocuit et lateri latus.
Illam dehiscens pontus in praeceps rapit

hauritque et alto redditam reuomit mari;
haec onere sidit, illa conuulsum latus

submittit undis; fluctus hanc decimus tegit;
haec lacera et omni decore populato leuis

fluitat [...]
Sên. Ag. 498-504
 
[...] Por si mesma a esquadra se avaria:
proas e flancos abalroam-se uns aos outros.
Aquele, o mar, ao entreabrir-se, arrasta abaixo
engole-o e do fundo mar o regurgita;
um, por seu peso afunda, o outro submete às ondas
o flanco partido, este, imensa vaga encobre;
aquele, destroçado, sem seus aparelhos,
leve flutua [...] 

Esses versos conectam-se aos de Virgílio, na Eneida I, 104-107, tanto por alguns itens lexicais, como pelo movimento balanceado dos membros de frase, iniciados pelos pronomes demonstrativos. A menção à décima vaga (fluctus...decimus), que aparece também em Ovídio (Tr. I, 2, 50), era de uso corrente, entre os antigos, para enfatizar a dimensão e violência de uma onda.

[...] tum prora auertit et undis
dat latus, insequitur cumulo praeruptus aquae mons;
hi summo in fluctu pendent, his unda dehiscens
terram inter fluctus aperit, furit aestus harenis.
Virg. En. I, 104-107

[...]
Então a proa gira e às ondas expõe o flanco. Sobrevém culminante uma íngreme montanha de água. Uns pendem do alto de uma vaga; a outros, a onda, entreabrindo-se, mostra a terra entre as vagas; o mar se enfurece contra as areias.

Nos versos 507-508 do Agamêmnon, aparece o tópos da insuficiência da arte e habilidade do navegador. Ocorrem algumas referências sintáticas e lexicais a Ovídio (Tr. I, 2, 31-32): o nominativo ars; a forma malis, empregada, no verso de Sêneca, como dativo e, no de Ovídio, como ablativo; o verbo stupet (“ficar pasmo, estupefato”) no presente, acompanhado de ablativo: em Sêneca, um ablativo absoluto; em Ovídio, um complemento adverbial.

Nil ratio et usus audet: ars cessit malis;
tenet
horror artus, omnis officio stupet
nauita relicto [...]
Sên. Ag. 507-509
 
Nada ousa o senso e a praxe: a arte cede aos males.
O
horror detém os braços e, largada a faina,
todo nauta se assombra, o remo escapa às mãos.
 
rector in incerto est nec quid fugiatue petatue
inuenit: ambiguis ars stupet ipsa malis.
Ov. Tr. I, 2, 31-32
 
o piloto hesita e do que fugir ou para onde avançar
não : a própria arte imobiliza-se frente a males incertos.

A imagem da intervenção do deus Netuno, descrita na Eneida I, 124-127, foi retomada por Sêneca, que a inseriu num contexto diferente, ao retratar a morte de Ájax (vv. 532-556), num quadro que, aliás, prefigura o assassinato de Agamêmnon. Novamente alguns índices lexicais e sintáticos apontam a filiação dos versos trágicos: o nominativo Neptunus, seguido de um ablativo imis...undis (Ag. 555) está em paralelo com a construção virgiliana Neptunus et imis...uadis; no mesmo verso, imis exerens undis caput, remetendo à frase summa... caput extulit unda, além das formas verbais tulit e extulit, em posição similar, na parte final do verso

Interea magno misceri murmure pontum
emissamque hiemem sensit Neptunus et imis
stagna refusa uadis, grauiter commotus et
alto
prospiciens summa placidum caput extulit unda.
Virg. En.  I, 124-127
 
Entretanto, o mar misturar-se a um grande murmúrio
Netuno sentiu e o desencadear do mau tempo e de fundos
leitos repelirem-se as águas; ele, muito abalado e para o alto
olhando, ergueu a plácida fronte acima das ondas.
 
tridente rupem subruit pulsam pater
Neptunus imis exerens undis caput
soluitque montem, quem cadens secum tulit
terraque et igne uictus et pelago iacet.
Sên. Ag. 554-556
 
ao golpe do tridente o pai Netuno faz
ruir a rocha, erguendo da água funda a fronte,
e rompe o
escolho, que [Ájax], ao cair, levou consigo,
e jaz vencido
em terra, ao fogo e pelo mar.

Interessa, neste ponto, notar que Sêneca não operava uma espécie de fusão, ou “contaminação”, de expressões tomadas de versos de diferentes modelos, tal como mostrado antes, mas também eventualmente adotava um procedimento análogo na composição de uma personagem. Assim, no caso de Ájax, retratado no trecho acima, o herói mitológico certamente alcançou maior densidade dramática pelo fato de o tragediógrafo ter conjugado, numa mesma figura, os dois Ájax: o pequeno, que foi morto por Netuno sobre um rochedo no mar (Hom. Od., IV, 99), e o Ájax maior, que enfrentou Heitor ao substituir Aquiles (Hom. Ilíada, VII, 66-132), o que se constata pelas palavras da própria personagem:

[...] Iuuat
uicisse caelum, Palladem, fulmen, mare.
Non
me fugauit bellici terror dei
et Hectorem
una solus et Martem tuli
Phoebea nec me tela pepulerunt gradu:
cum Phrygibus
istos uicimus [...]
Sên. Ag. 545-550
 
[...] Exulto
porque venci o céu, Palas, o raio, o mar.
A
mim não rechaçou o terror do deus bélico
e a Heitor e a Marte, juntos, sozinho enfrentei.
Nem os dardos de Febo apearam-me do posto:
venci-os
com os frígios. [...]

Por fim, os últimos versos do relato de Euríbates, ecoando os de Virgílio — ou talvez os de uma fonte comum — anunciam o cessar da tormenta e o retorno do dia.

[...] Cecidit in lucem furor:
postquam litatum est Ilio, Phoebus redit
et damna noctis tristis ostendit dies.
Sên. Ag. 576-578
 
[...] Com a luz cessou o furor.
Depois de expiada Ílio, Febo retorna
e os danos dessa noite, o dia ostenta triste.
 
sic cunctus pelagi cecidit fragor, aequora postquam
prospiciens genitor caeloque inuectus aperto
flectit equos [...]
Virg. En. I, 154-155
 
assim cessou todo o fragor do pélago, depois que o genitor,
contemplando as águas e levado sob um céu aberto,
pôs
em marcha os cavalos [...] 

A possibilidade do uso de uma fonte comum, aventada acima, é plausível, dado que, a exemplo do próprio Virgílio(13), Sêneca certamente também compulsava as obras dos primeiros poetas latinos, em busca não de expressões modelares, mas, sobretudo, de arcaísmos lexicais ou sintáticos, adequados à linguagem de um gênero poético de caráter austero e de estilo elevado, como é o caso da tragédia. Como exemplo disso, podem ser citadas mais estas duas passagens do relato de Euríbates em que, conforme foi antecipado, Sêneca, muito provavelmente, tomou por modelo, desta vez, versos de uma tragédia de Lívio Andronico, autor situado na segunda metade do século III a. C., intitulada Aegisthus, da qual restam atualmente parcos fragmentos. Mais uma vez, como nos casos acima examinados, a escolha lexical e o arranjo sintático constituem os índices alusivos ao modelo, assinalados pelos grifos:

˘  ˉ   ˘  ˉ   ˘  ˉ   ˘  ˉ   Nam ut Pergama
accensa et praeda per participes aequiter
partita est, ˉ  ˘  ˉ   ˘  ˉ   ˘  ˉ  ˘  ˉ
Lív. Andron. Aeg. frg. 2-4 W

... pois, mal Pérgamo
foi incendiada e o
espólio, entre os camaradas, com justiça
repartido...

Vt Pergamum omne Dorica cecidit face,
diuisa praeda est [...]
Sên. Ag. 421-422
Mal Pérgamo cedeu inteira ao fogo dórico,
foi dividido o
espólio. [...]
 
Tum autem lasciuum Nerei simum pecus
ludens ad cantum classem lustratur. ˘  ˉ
Lív. Andron. Aeg. frg. 5-6 W

Então
, de Nereu o alegre rebanho de nariz achatado,
brincando ao cantarmos, circunda a
esquadra.
 
Tunc qui iacente reciprocus ludit salo
tumidumque pando transilit dorso mare,
Tyrrhenus omni piscis exultat freto
agitatque gyros et comes lateri adnatat,
anteire naues laetus et rursus sequi;
nunc
prima tangens rostra lasciuit chorus,
millesimam nunc ambit et lustrat ratem.
Sên. Ag. 449-455
 
Então, num vai e vem, manso o mar, ele brinca
e, em arco o dorso, galga a onda que intumesce,
peixe tirreno, salta por todo rebojo,
faz
giros e em cortejo nada junto aos flancos,
alegre às naus se adianta e então de novo as segue;
o
coro ora brincando rela os esporões,
ora contorna e lustra o milésimo barco.

Antes de finalizar, é ilustrativo ler o que o próprio Sêneca diz, em duas passagens de uma de suas epístolas, acerca do trabalho imitativo do escritor, indicando alguns preceitos sobre o modo melhor de realizá-lo. Obviamente, vê-se que ele trata aqui da imitação não apenas referente a paralelos verbais, mas também relativa ao conteúdo:

[...] nos quoque has apes debemus imitari et quaecumque ex diuersa lectione congressimus separare [melius enim distincta seruantur], deinde adhibita ingenii nostri cura et facultate in unum saporem uaria illa libamenta confundere, ut etiam si apparuerit unde sumptum sit, aliud tamen esse quam unde sumptum est appareat.
Sên. ad Luc. 84, 5

[...] nós, também, devemos imitar as abelhas e separar tudo aquilo que recolhemos de nossas diversas leituras, pois, assim, melhor se conservam. Depois, aplicados os esforços e recursos de nossa inteligência, devemos confundir num único sabor aquelas várias seivas, de modo que, mesmo se ficar aparente de onde se emprestou, pareça, todavia, ser algo diferente daquilo de onde se emprestou.

Etiam si cuius in te comparebit similitudo quem admiratio tibi altius fixerit, similem esse te uolo quomodo filium, non quomodo imiginem: imago res mortua est. 'Quid ergo? non intellegetur cuius imiteris orationem? cuius argumentationem? cuius sententias?' Puto aliquando ne intellegi quidem posse, si magni uir ingenii omnibus quae ex quo uoluit exemplari traxit formam suam impressit ut in unitatem illa competant.
Sên. ad Luc. 84, 8

Mesmo que se mostre em ti semelhança com um modelo que a admiração gravou profundamente em tua alma, quero que te assemelhes como um filho, não como um retrato: o retrato é coisa morta. 'Como? Ninguém perceberá de quem é o estilo que imitas; de quem é a argumentação; de quem as idéias?' Penso que às vezes seja possível nem sequer percebê-lo, caso um autor de grande engenho tenha imprimido sua marca própria em tudo que trouxe do modelo que se propôs imitar, de modo que os empréstimos se convertam numa unidade

A breve amostragem apresentada aqui teve, portanto, o propósito de oferecer uma demonstração prática da proximidade da poesia de Sêneca com a de dois dos principais autores da época de Augusto, o que, como se disse, corrobora a hipótese de que, na composição de suas peças, ele tenha privilegiado os modelos nacionais desse período. A presença massiva, nas peças de Sêneca, de alusões a versos de obras memorizadas desde a escola entre elas destacando-se também as de Horácio(14) — se, por um lado, constitui um aspecto da poética vigente em sua época, por outro, esse procedimento de escritura vincula-se a uma prática que remonta aos escritores gregos, sendo decorrente de uma concepção de linguagem literária, própria dos antigos, estritamente regulada pela tradição, para o que, sem dúvida, contribuía a técnica pedagógica aplicada pelos gramáticos e principalmente pelos professores de retórica, baseada na imitação de textos modelares.


Notas

(*) Professor da Área de Língua e Literatura Latina da FFLCH/USP.

(1) Para se ter uma idéia do volume da produção apenas dos três maiores tragediógrafos desse período, Ênio (239-169 a. C), Pacúvio (c.220-132 a. C.) e Ácio (170-c. 90 a. C.)., estima-se que Ênio teria composto 22 tragédias, Pacúvio, 14 e Ácio, 48. A coletânea de fragmentos das peças atribuídas aos dois primeiros autores contém pouco mais de 400 linhas para cada um, a do último, cerca de 700 linhas, perfazendo um total equivalente ao do número de versos de uma tragédia antiga completa.

(2) O corpus das peças de Sêneca contém, no total, dez peças. Na edição francesa da Société d’Édition “Les Belles Lettres”, elas aparecem na seguinte ordem: Hércules Furioso, Troianas, Fenícias, Medéia, Fedra, Édipo, Agamêmnon, Tiestes, Hércules Eteu e a tragédia pretexta Otávia. Nesta edição, somente a pretexta Otávia é atribuída a um Pseudo-Sêneca, embora muitos críticos também contestem a autoria do Hércules Eteu.

(3) Tácito, Dial., III. Estima-se que a composição de tragédias tenha-se tornado um exercício literário entre aristocratas e homens de letras desde o final do IIº século a. C. Cf. A. S. Gratwick In: The Cambridge History of Classical Literature, vol. II, part II, cap. 5 (“Drama”), p.129-130.

(4) Esse ponto de vista é adotado, entre outros, por dois importantes críticos como L. Herrmann (Le Théâtre de Sénèque. Paris, 1924) e W. Beare (The Roman Stage. London, 1950 [3ª ed., 1964]).

(5) Epístolas a Lucílio, 58, 5.

(6) Instituição Oratória, X, 1, 97.

(7) Contra essa opinião, Eugen Cizek, estudioso da vida intelectual na época de Nero, embora ainda um pouco vacilante, afirma o seguinte: Sénèque employa fort librement ses modèles grecs, notamment Euripide, tirant parfois aussi parti de contaminations avec des thèmes puisés chez Ennius, Accius, Ovide, Varius, etc. [“Sêneca, empregou muito livremente seus modelos gregos, notadamente Eurípedes,  por vezes também tirando partido de contaminações com temas extraídos em Ênio, Ácio, Ovídio, Vário etc.”] Neste ponto, o autor menciona, numa nota, os trabalhos de filólogos alemães do final do século XIX, que minimizavam a relação das peças de Sêneca com modelos gregos: Certains chercheurs allemands (par exemple O. Ribbeck, Die römische Tragödie im Zeitalter der Republik, Leipzig, 1875, p. 417 et P. Schreiner, Seneca quomodo in tragoediis usus sit exemplaribus graecis, Straubing, 1906-1907) ont réduit au minimum l’influence grecque et ont opiné pour une forte influence latine archaïque. [“Certos pesquisadores alemães (por exemplo O. Ribbeck, A Tragédia Romana na Época Antiga da República, Leipzig, 1875, p. 417 e P. Schreiner, Como Sêneca Teria Utilizado Modelos Gregos nas Tragédias, Straubing, 1906-1907) reduziram ao mínimo a influência grega e opinaram por uma forte influência  latina arcaica.”]. E. Cizek (1972), p. 323. Ver, para esta nota e para as seguintes, indicação completa na bibliografia.

(8) Importa lembrar que o treinamento dado pelos mestres de retórica começava com a imitação e a paráfrase de textos modelares (cf. Quintiliano, I.O., X, 5).

(9) Tarrant, R. J., Seneca's Drama and Its Antecedents. p. 261: Even if Seneca in some cases returned to Republican or fifth-century texts, his ideas of tragic form and language had been so fixed by Augustan models that he molded his material to their specifications.

(10) Cabe observar que, no estudo da imitação alusiva, é preciso ter sempre em mente certas perguntas que, por exemplo, um estudioso da literatura medieval enumera no início de um trabalho sobre a imitação dos clássicos latinos por escritores medievais. Diz ele: Only to often, in our rush to make sense of intriguing similarities and differences, we do not pause to consider mundane qustions such as, ‘Is this text really imitating this “model”? Are the similarities simply coincidences? Could the imitation be an unconscious reminiscence of its “model”? A commonplace rather than an imitation of this particular passage?’ And often we do not ask the important question, ‘Is this text imitating a text which is already an imitation?’ Of course, if one can produce an interpretation which plausibly acounts for the interation between text and model, the interpretation itself becomes a strong argument in favour of taking the imitation as a conscious allusion to a particular passage, but unfortunately this is not always the case. ["Com muita freqüência, em nossa pressa de entender curiosas semelhanças e diferenças, nós não fazemos uma pausa para considerar questões mundanas tais como: ‘Este texto está de fato imitando estemodelo”? As semelhanças são simplesmente coincidências? A imitação pode ser uma reminiscência inconsciente de seumodelo”? Um lugar-comum antes que uma imitação desta passagem particular? E muitas vezes nós não fazemos a importante questão: "Este texto está imitando um texto que é uma imitação?’. É claro que se alguém pode produzir uma interpretação que explica a interação entre texto e modelo, a interpretação torna-se ela própria um forte argumento em favor de se tomar a imitação como uma alusão consciente a uma passagem particular, porém, infelizmente este não é sempre o caso."]. G. W. Pigman III, Neo-Latin Imitation of the Latin Classics, p. 199-200. Reflexões semelhantes a essa também se encontram numa outra obra sobre a imitação na poesia antiga: Vergil and Early Latin Poetry, de Michael Wigodsky, na Intr., p. 1-2.

(11) Em Homero, a fonte para o tratamento deste tema encontra-se nos livros V, IX e XII da Odisséia.
 
(12) Cf. A.-M. Taisne, L'Ésthétique de Stace. La peiture des correspondances, p. 150.
 
(13) Cf. M. Wigodsky, op. cit.
 
(14) Por exemplo, o primeiro canto coral do Agamêmnon (vv. 57-107), permeado de alusões à ode II, 10 de Horácio.
 
 
Referências bibliográficas
 
 
Cizek, Eugen. L’époque de Néron et ses Controverses Idéologiques. Leiden, E.J. Brill, 1972, p.323.
 
Guillemin, A.-M. L'imitation dans les littératures antiques et en particulier dans la littérature latine, REL (1924) 35-57.
 
Lohner, J. E. S. A Retórica e a Poética: a Técnica de Composição da Poesia Dramática no Agamêmnon de Sêneca. Tese de doutorado. São Paulo, FFLCH/USP, 2000.
 
Ovid, Metamorhoses. Ed. by F. J. Miller. Cambridge, Massachusetts, The Loeb Classical Lib., 1984.
 
Ovid, Tristia, Ex Ponto. Ed. by A. L. Wheeler. Cambridge-London, The Loeb Classical Lib., 1939.
 
Pigman, G. W. Neo-Latin Imitation of the Classics. In: Latin Poetry and Classical Tradition. Essays in Medieval and Renaissance Literature. Clarendon Press, Oxford, 1990.
 
Quintilien, Institution Oratoire, t. IV. Texte, trad., introd. et notes par H. Bornecque. Paris, Lib. Garnier, s.d.
 
Seneca, L. A., Lettere a Lucilio. Biblioteca Universale Rizzoli, Milano, 1985.
 
Sénèque, Tragédies. Texte ét. et traduit par L. Herrmann. Paris, Belles Lettres, 1971.
 
Taisne, A.-M. L'Ésthétique de Stace. La peiture des correspondances. Paris, Les Belles Lettres, 1994.
 
Tarrant, R. J. Senecas Drama and Its Antecedents, H.S.C.P. 82 (1978) 213- 263.
 
Thill, A. Alter ab illo. Recherches sur l'imitation dans la poésie personnelle à l'époque augustéenne. Paris, Les Belles Lettres, 1979.
 
Warmington, E. H. (ed.). Remains of Old Latin, vol. II. The Loeb Classical Library. London, 1982.
 
Wigodsky, M. Virgil and Early Latin Poetry, Hermes, heft 24. Wiesbaden, 1972.

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