O Discurso da História na Teoria Literária Brasileira
Marcos Siscar(1)

I

Quem se atreve a fazer da situação contemporânea da teoria o seu objeto de estudo(2) coloca-se a tarefa não de entender o sistema de trocas teóricas na qual esse discurso se insere, mas afirma também, ainda que indiretamente, a existência de uma história. Essa dupla tarefa não agrega rigor à análise, como também angaria maiores razões de dificuldade. De fato, se há uma idéia de totalidade sincrônica na delimitação do estado de coisas do presente, não se pode esquecer que a descrição de um determinado presente repousa sobre uma profundidade temporal que permitiria estabelecer a identidade do que existe pela relação com o que passou. Não custa lembrar que os julgamentos sobre o presente são normalmente emitidos a partir de aspectos que consideramos merecerem ser esquecidos ou preservados dentro daquilo que chamamos o passado. E ainda que essa referência não apareça, o sentido pleno de um momento do presente se desvenda quando conseguimos determinar absolutamente suas vinculações históricas. 

Quem fala da situação contemporânea da teoria afirma ou confirma, portanto, ainda que indiretamente, uma história; pressupõe determinados atores e determinadas resultantes de um processo, quer seja ele linear-evolutivo, quer seja projetado criticamente ou galaticamente a partir do seu presente. Nada mais necessário (e inevitável) do que a constituição de uma história. Entretanto, por outro lado, nada mais construído, sujeito à incessante interpretação e verificação. E nenhuma estratégia teórica ou ideológica pode dar ao intelectual digno deste nome o direito de esquecer os dois lados do problema. Que história seria essa? Qual o seu conteúdo, seus atores, a lógica que a teria conduzido para determinado resultado contemporâneo? As respostas a essas perguntas podem ser tão variadas quanto são os interesses mobilizados por aquele que se propõe a desvendar um conteúdo histórico. De modo que, genericamente, não é incorreto dizer que aquilo que chamamos teoria (termo que prefiro usar aqui, no lugar da “crítica”) se deixa guiar, num extremo, pela história das pulsões reconhecíveis na escrita de determinado teórico e, num outro extremo, pela afirmação de valores e crenças que a empenham ideologicamente. Entre esses dois vínculos do pensamento com a suarealidade”, perfila-se uma série de resistências e de projetos que definem em grande parte o conteúdo daquilo que chamaríamos o estado da teoria, em determinado momento, para determinado autor

A constatação é, até certo ponto, banal e corresponde aproximadamente à seguinte formulação: aquilo que chamamos contemporâneo está sujeito à interpretação. Está sujeito à interpretação, não porque estamos mais colados ao presente do que ao passado, não porque o presente está em curso, não exatamente porque sabemos pouco sobre ele. O presente está tão fundamentalmente sujeito à interpretação quanto o passado (e na forma da antecipação, também o futuro). Como qualquer descrição histórica dos fatos passados, a visão do estado de coisas do presente é uma construção e as manifestações dessa construção constituem “intervenções”. Se o discurso sobre o presente é resultado de uma interpretação, então a situação atual da teoria deveria conjugar-se no plural: os contemporâneos da teoria. Sua história são, na verdade, histórias

O discurso sobre o contemporâneo envolve portanto pelo menos uma história. Ele recorta, direta ou indiretamente, os eventos significativos do passado, elege seus interlocutores, próximos ou oponentes; estes, o ajudam a dar forma ao discurso na direção de determinadas perspectivas de pensamento. Tal mobilização discursiva constitui, pois, uma série histórica e uma genealogia. Porém, mais fundamentalmente, como estou propondo, o discurso sobre o presente caracteriza-se, de modo rotineiro, pela hipótese agregadora e metodológica da própria história como recurso de constituição do saber.  

Que história seria essa? De que maneira uma hipótese histórica pode ser retomada numa explicação do contemporâneo?  


II
 

Reconheçamos, de início, que o saber produzido na Universidade enfatiza, há algumas décadas, uma problemática que incide sobre o presente da teoria, colocando-se freqüentemente a questão do estado ou da conjuntura do pensamento que se produz. De maneira abrangente, podemos dizer que a produção de conhecimento tem se caracterizado por um constante questionamento sobre o papel político e social do discurso, em torno de suas implicações ou de suas aplicações. Seria possível dizer que a prática teórica tem sido insistentemente ligada à questão da responsabilidade social, cultural e política, quer seja pela via da articulação entre experiência discursiva e ética discursiva, quer seja ainda por meio do privilégio ou da defesa estratégica de uma dessas instâncias em relação à outra.  

Essa prática teórica tem retomado a perspectiva histórica de diferentes maneiras, muitas vezes conflitantes. Percebemos, no entanto, uma preocupação comum voltada explicitamente para a necessidade da constituição de uma postura eticamente sustentável para o exercício da teoria. Entre os mais atuantes e influentes discursos de nosso tempo (e isso é especialmente claro no Brasil, por razões que valeria a pena meditar), temos portanto uma demanda ética voltada decisivamente para a atitude discursiva que se refere à história ou ao lugar a partir do qual essa história se estabelece. A isso se associa, entre nós, a exigência sistemática da atenção que essa teoria deveria ter para com a sua própria história como produção intelectual. Não bastaria à crítica referir-se à história, ela deveria ser capaz igualmente de esclarecer o seu lugar dentro dessa história, que é também a história das ciências humanas e da Universidade no Brasil. assim, isto é, apenas ao justificar sua situação como herdeira de uma demanda histórica, uma determinada postura crítica, qualquer que seja, poderia justificar sua necessidade teórica e aspirar a ter o seu espaço institucional.  

Analisando a maneira pela qual essas posturas críticas, no Brasil, colocam-se diante de sua necessidade de auto-legitimação, seria possível, a meu ver, encontrar duas justificativas básicas para suas propostas: uma delas seria a da carência intelectual em nosso meio e a outra seria a da urgência em se estabelecer uma identidade teórica independente. Nos dois casos, o diálogo se dá a partir da problemática da relação com a teoria produzida fora do Brasil: num caso, o da carência, afirma-se a necessidade brasileira da constituição e da atualização teórica a partir do seu exterior; no outro caso, o da urgência, afirma-se o descompasso social dessa atualização e o imperativo de uma estrutura de pensamento brasileiro senão autóctone, pelo menos auto-suficiente. A relação entre essas posturas, entretanto, não é simétrica. Existe uma história recente da constituição desses pontos de vista que nenhuma sociologia da vida intelectual se dispôs ainda a elaborar. Em certos aspectos, pode-se dizer até que cada uma dessas posturas se estabelece a partir de uma leitura e de uma resposta à outra.  

Em todo caso, parece claro que a determinação da teoria pensada a partir da sua função e história locais, especialmente sensível na teoria da literatura, é uma produção mediada por determinados discursos sobre o Brasil, presentes na antropologia, na sociologia, na geografia política e na teoria da literatura. Esses discursos mobilizam nossa atenção há algumas décadas, resultando para a teoria a idéia de que é preciso produzir conhecimento com a atenção voltada para o contexto e, por extensão (que considero discutível), necessariamente voltada para a nossa tradição intelectual. A proposta, até que se prove o contrário, tem, como diz um de seus interlocutores, umapelo intuitivo forte”. Liga-se a uma demanda de responsabilidade que diz respeito à atuação do intelectual e que não é exclusivamente ou especialmente típica dos países ditos periféricos, embora se manifeste neles de modo mais dramático. De maneira mais ou menos generalizada, para legitimar-se, o pensamento deve saber explicitar sua vinculação com a circunstância histórica. Mas que história é essa? De que maneira ela é contada? 

Uma vez aceita a proposta de tomar as coisas pelo viés de sua conjuntura (decisão teoricamente significativa e que empenha tudo o que se discutiu sobre a idéia de estrutura, de centralidade, de sistema), pode-se portanto observar uma linha de força que interpreta a história como discurso organizador do sentido econômico e cultural de nossa situação como críticos do presente. Seria preciso questionar, na seqüência, as estratégias usadas para a constituição dessa história. Como o teórico estrutura e justifica sua visão da história? O diálogo com o passado pode ser feito de perspectivas e com atitudes bastante distintas: ao se procurar delimitá-lo, pode-se mimetizá-lo, engrandecê-lo; ou rejeitá-lo, silenciando-o; projetar sobre ele as preocupações do presente, anacronicamente; ou despertá-lo, reteomando-o a contrapêlo; ou ainda pressupô-lo como conhecido de maneira a não discuti-lo, considerada a sua grande ou (alternativamente) a sua pequena relevância

Ocorre que a história não é um ponto de vista qualquer, e é isso o que me interessa particularmente: atribuir valor histórico aos fatos convive com a necessidade de se assumir a historicidade do discurso da tradição. Uma das resultantes da escrita da história é justamente o desvendamento dos mecanismos pelos quais, dentro da massa quase incomensurável de acontecimentos, determinados interesses levam a transformações de acontecimentos brutos em eventos com valor histórico significativo. Ao se analisar a constituição da nação, por exemplo, uma das tarefas da história é desvendar o sentido da ideologia romântica no Brasil, isto é, não apenas definir a consciência romântica (supondo-se que ela seja homogênea, o que está longe de ser verificável), mas analisar como, pela via dos críticos e intelectuais românticos e posteriores, até o presente momento, o discurso da nacionalidade se firmou enquanto modo de compreensão dos fatos locais. Quero dizer que, sob esse aspecto, a história é um discurso que se associa mais rigorosamente a um regime discursivo da interpretação do que a um regime discursivo do fato (do evento constituído em sentido da história). Sob pena de projetar sobre o passado todo o peso de uma visão constituída aprioristicamente, a história constitui-se mais como exegese de séries discursivas, a serem sempre recomeçadas, do que como estabelecimento de um sentido definido para o real. Como veremos, esse regime discursivo da interpretação é freqüentemente solapado por um procedimento retórico que consiste a considerar a interpretação como fato instransponível do presente. Um exemplo marcante é a Formação da Literatura Brasileira, de Antonio Candido, que, ao descrever as preocupações românticas, assume-as explicitamente como ponto de vista sobre o Brasil, ganhando, por assim dizer, um narrador que seria Machado de Assis, na interpretação marota de Antonio Callado (CALLADO, 1992, p.152). 


III
 

A propósito, permito-me insistir aqui em um fragmento bastante conhecido e debatido a propósito das referidas estratégias de legitimação do discurso. Embora demasiadamente curto, tem a vantagem de ser exemplar. Trata-se dos primeiros parágrafos do textoNacional por Subtração”, de Roberto Schwarz, publicado pela primeira vez em 1986. Nesse texto, o autor começa por afirmar que nós, “brasileiros e latino-americanos fazemos constantemente a experiência do caráter postiço, inautêntico, imitado da vida cultural que levamos” (SCHWARZ, 1987, p.29). O autor retoma aqui um velho tema polêmico, constatando que um aspecto importante de nossa cultura consiste no fato de que ela interpreta a si mesma como experiência marcada pelo caráter imitativo. Embora pressuponha um enorme e decisivo movimento de seleção e ordenação de fatos, não ainda nesse gesto interpretativo uma proposição direta do teórico sobre a natureza de nossa cultura; ele limita-se a mostrar que esta cultura elabora uma representação de si mesma marcada pela preocupação com sua falta de originalidade

Porém, logo após uma série de exemplos dessa preocupação, o autor conclui: “Antes de arriscar uma explicação a mais, digamos portanto que o mencionado mal-estar é um fato” (p.29). Aqui, ficamos na dúvida: o fato do qual se fala é a existência de um mal-estar na crítica brasileira e na interpretação brasileira da sua cultura, como nos sugerem os exemplos; ou é a própria existência concreta e histórica do caráter inautêntico da nossa cultura? O fato é nosso sentimento de inautenticidade cultural ou é a inautenticidade de nossa cultura? A seqüência não deixará dúvidas a respeito. Aquilo que era uma experiência do mal-estar pelo brasileiro passa a ser visto como uma situação de fato. Não nossa cultura se caracteriza por pensar assim, como no fundo ela tem razão, o Brasil é assim mesmo. No Brasil, as coisas se apresentam funcionalmente como postiças ou inautênticas. Ou seja, a descrição (da leitura comum de um estado de coisas) transforma-se rapidamente, talvez muito rapidamente, em uma prescrição (de qual deve ser a leitura desse estado de coisas). O regime discursivo da interpretação é aqui substituído por aquilo que estou chamando de um regime discursivo do fato, fato este que não voltará a ser questionado

Não deixa de ser interessante para a compreensão da instituição literatura que, no texto em questão, essa metamorfose da interpretação (há uma experiência da inautenticidade) em afirmação de valor (há inautenticidade) se justamente na passagem dos exemplos culturais, sociais e políticos, para os exemplos da teoria da literatura. Depois de falar sobre elementos do cotidiano, elementos da crítica de cultura em geral, o autor passa a fazer considerações sobre a crítica literária, especificamente. Trata-se de uma seqüência conhecida onde o autor faz uma lista das escolas teóricas que se alternaram no Brasil, conjunto que “atesta o esforço de atualização e desprovincianização em nossa universidade” (p.30), mas que se deve, no fundo, segundo o autor, ao fascínio pelo prestígio que essas escolas têm nos Estados Unidos ou na Europa. Como essas mudanças, para Schwarz, não nascem de necessidade interna, o gosto pela novidade acaba prevalecendo e “constitui outro exemplo, agora no plano acadêmico, do caráter imitativo de nossa vida cultural” (p.30). (Nota-se uma nova passagem da interpretação – o “esforço de atualização” – para o fato fascínio pelo prestígio estrangeiro –, mas aqui o fato do fascínio modaliza a possibilidade de uma autêntica atualização). 

Estamos aqui, como dissemos, não mais na descrição do mal-estar dos brasileiros diante do caráter imitativo de sua cultura, mas na afirmação de que ela se define como sendo, de fato, apesar de interpretações discordantes, imitativa. Trata-se de um salto que passa quase desapercebido, mas que coloca em situação interventiva um discurso que, apesar de politicamente comprometido, se dá como uma descrição calmamente neutra do real contemporâneo. E este salto é dado no contexto da passagem da discussão para a teoria literária que funciona, para o autor (diferentemente das outras ciências humanas?), como extensão da superestrutura cultural, exemplar no sentido da exposição de uma postura mais geral do descompasso ideológico das idéias quando transplantadas para nosso território

A afirmação de que as ditas mudanças na teoria literária não correspondem a uma “necessidade interna não parece conclusiva quanto a sua pertinência (por que deveriam corresponder a uma necessidade interna?) e é também discutível quanto a seu mérito (não haveria, para além da circunstância nacional, uma necessidade interna, uma espécie de coerência nos desdobramentos da discussão teórica?) Por que a idéia de mudança seria especialmente alienante, especialmente “conservadora”, no Brasil? Existe uma relação necessária entre a brevidade da passagem das escolas críticas (fenômeno que obviamente não é brasileiro(3)) e esse fascínio do importado apontado como elemento propulsor da crítica brasileira? Embora essas questões sejam de uma maneira ou de outra comentadas pela obra de Schwarz e por muitos outros críticos de nossa contemporaneidade, que se perfilam sob argumentos similares, permanece, a meu ver, sem a devida atenção o estatuto discursivo que justifica e que perturba a ordem dessas questões

Entendida como um discurso do fato, do dado especulativo objetivo, o discurso da história é o de uma presença plena à disposição do relato ou da narração. A história apresenta-se como dada, referível e nomeável como tal


IV
 

Pode-se dizer que há uma tendência da teoria em amparar-se numa visão do real (e da história em particular) como coisa dada, como totalidade fechada, a ser resgatada especulativamente e ofertada a seu leitor. O texto histórico é visto assim como produto e não como processo de interpretação. Essa tendência se mostra de forma clara em parte de nossa teoria literária, mediada especialmente (a propósito da responsabilidade do intelectual) pela relação com o caráter ou com a situação nacional

A problemática se recoloca a cada novo influxo de bibliografia estrangeira. Como sabemos, nos últimos anos, os estudos sobre minorias (feminismo, estudos negros, etc.), uma literatura comparada fundada em novas bases, ou ainda a assim chamada “desconstrução” (com seus vários sentidos e tratamentos), marcaram sua presença em universidades brasileiras e nos encontros nacionais de literatura, colocando mais lenha na fogueira do pensamento sobre a falta de aderência, por assim dizer, das idéias no Brasil. Como contraposição a esse estado de coisas, tem sido comum por parte de teóricos influentes a insistência no caráter injustificado do cultivo desses estudos em nossa localidade brasileira. Essa postura cristaliza-se em políticas que não são unicamente intelectuais, mas freqüentemente institucionais e que, sob pretexto da constituição de uma “tradição crítica local, quando não simplesmente em nome de valores estéticos e humanísticos, instaura uma lógica anti-intelectualista (muitas vezes expressa pelo silêncio) que se opõe de maneira sistemática àquilo que talvez muito genericamente poderíamos chamar de teoria contemporânea, qualquer que seja sua tendência política

Para tanto, o discurso toma freqüentemente um aspecto interventivo irado. Um supostodesvario” relativista é apontado como pernicioso em nossa dura realidade. A acusação de “deslumbramento” teórico denuncia uma apropriação ingênua das “invenções” européias e americanas. O argumento da inautenticidade é assumido como idéia forte para indiciar uma atitude “colonizada”. A teoria no Brasil é descrita a partir do aspecto psicológico da atitude admirativa, que prejudicaria o diálogomaduro com os pares de outros países

Numa cruzada esclarecida contra a superficialidade, é na verdade uma acusação de leviandade crítica que é empreendida. Como foi o caso no passado recente, é contra os chamados “pós-modernismos” de toda sorte que recaem as suspeitas de inautenticidade. Metáforas de ordem subjetiva e moralizante são comuns. Fascínio, ingenuidade, apetite pelo importado, necessidade de colocar-se “em de igualdade”, etc. são termos que se ouvem em congressos e que se lêem em entrevistas, em artigos e livros para designar nossa situação crítica. Não me consta que essa maneira de referir-se ao problema tenha perdido força nos acontecimentos mais recentes de nossa vida intelectual

A posição teórica designada e julgada moralmente por meio de figuras do senso comum psicológico me parece caracterizar relativamente bem os sintomas da passagem da interpretação para a determinação do fato. Tomada como realidade factual do pensamento no Brasil, a afirmação da conjuntura nacional apresenta-se, da perspectiva desses discursos, como um horizonte intransponível. Ao opor-se ao seu princípio, o intelectual estará se definindo quer seja pela consciência da leviandade teórica quer seja pela ingenuidade adolescente do deslumbramento. 

A atitudemadura”, nesse caso, seria a constituição de uma tradição crítica local, que valorizasse a leitura dos autores nacionais e estabelecesse uma voz forte que fosse capaz de dialogar com as vozes identificadas como alienígenas. Curiosamente, ao mesmo tempo, autores locais de larga envergadura teórica, cujos trabalhos incidem sobre assuntos brasileiros, lamentam-se com freqüência de não merecerem a consideração dessa parte prestigiada da instituição crítica nacional. O que nos leva a concluir que o fato de o teórico brasileiro produzir trabalhos de relevância sobre a cultura local não basta para participar da tradição brasileira; ele deve, fundamentalmente, identificar-se com as questões teóricas que estão associadas com essa localidade

Não se trata evidentemente de discutir a possibilidade ou mesmo a necessidade de se pensar o nacional como força definidora de identidade para a cultura no Brasil. A nacionalidade é uma questão legítima para a teoria? Dificilmente se poderia negá-lo se nosso diálogo intelectual é com a teoria produzida no Brasil. A nacionalidade é uma questão forte, nesse contexto. No entanto, pensar a nacionalidade, na continuidade da sua afirmação, não me parece ser a única maneira de a teoria pensar em contexto. Isso depende de como ela recorta seu contexto e de como ela o interpreta. Em suma: reinscrever a nacionalidade como questão teórica por excelência não é a única maneira de ser responsável

Nesse sentido, pode-se dizer que pensar a nacionalidade não é a única maneira de se pensar a identidade, essa identidade sem a qual nos seria vedada a possibilidade de colocarmo-nos em contexto, em situação. A natureza da identidade que será o objeto do discurso teórico depende de um recorte de questões e de informações relevantes na relação entre esse discurso e os acontecimentos que o interessam. A multiplicação atual das abordagens e dos objetos de estudo (quer seja na teoria da literatura, quer seja na própria história) atesta a necessidade humana e a possibilidade teórica de entender outros aspectos da existência (raça, gênero, língua), outras realidades da cultura, que nos localizam como indivíduos críticos tanto quanto nossa consciência de cidadãos de um país ou membros de uma classe.


V
 

Neste ponto, da mesma maneira que lembramos a diversidade daquilo que se pode tratar como identidade, é preciso reiterar que não há uma única maneira de se pensar a identidade, a categoria, o gênero, a classe. Considerar a identidade em sua coerência acabada ou como referência homogênea e bem delimitada de um inacabamento (por intermédio por exemplo de contradições), é uma maneira de tratar a identidade que a recoloca na esfera de uma visão do real como origem determinada. Sabemos que os fenômenos aos quais atribuímos sentido também podem ser entendidos (e alguns diriam, melhor entendidos) a partir do seu desejo ou do seu projeto de identidade. Situado no desejo ou no projeto, o sentido de um texto estaria na sua diferença. Mas diferença aqui não consiste apenas em tomar o texto a contrapelo de sua intencionalidade consciente ou ideológica; não se limita a estabelecer um sentido para a discordância entre o que um texto diz e o que ele faz. O sentido de um texto não se revela necessariamente pelo gesto inquiridor do que eu chamaria de uma contra-leitura, de uma leitura que se constrói em detrimento do texto e a favor de um fundamento especulativo definido, sob a ótica do qual a interpretação se torna rapidamente um fato. E fatos são sempre incontornáveis.

Ao questionar esses mecanismos que ao mesmo tempo represam e dão forma à interpretação, a tarefa de compreensão solicitaria não uma contra-leitura, porém mais exatamente uma dupla leitura: a leitura ao mesmo tempo de uma força de projeto e de sua discordânciaretórica”, associada à leitura de um sentido histórico e da historicidade dessa atribuição de sentido. A diferença aqui não seria tratada apenas um momento da estratégia analítica, mas tenderia a ser considerada no seu permanente descompasso com o discurso da identidade que dela faz uso. Pensar a autenticidade ou a inautenticidade, a imitação ou a autonomia, como critérios de constituição do sentido são maneiras de o discurso recolocar-se numa relação aprioristicamente definida consigo mesmo, à sua propriedade. O inautêntico e o imitativo pressupõem determinada uma visão totalizante da identidade, ainda que por oposição ao que de fato existe. Atenta não exatamente com o próprio, mas com o outro, uma leitura da identidade deveria abrir-se para questões que ainda não foram verificadas na sua lógica interna. É nesse ponto que questões como a “amizade”, a “hospitalidade”, a “paixão”, no que elas envolvem de nossa problemática relação com a alteridade, empenhando a própria linguagem de que nos utilizamos, podem ser estudadas hoje (em literatura, em filosofia, em tradução, na ciência política) como noções importantes para o tratamento da própria idéia de responsabilidade.

Os fenômenos de auto-identificação se revelam hoje, mais do que nunca claramente, como processos de demarcação de fronteiras e territórios. Essas fronteiras por vezes são econômicas, mas nem sempre são principalmente econômicas. Os fatores de conflito e exclusão passam freqüentemente por outros tipos de determinação de fronteiras (religiosas, lingüísticas, simbólicas) que, a cada vez, promovem cruzamentos e intersecções entre os outros fatores envolvidos. Temos, nessa intersecção, um campo de determinações mais ou menos imprevisível a priori, no qual nenhum enfoque regional envolvido poderia pretender ascender a uma função agregadora geral. Não se trata, no entanto, para o teórico, de exercer a clássica liberdade de escolha entre uma variedade disponível de enfoques; talvez nem mesmo de aspirar a uma interdisciplinaridade nos moldes tradicionais, mas, dada a heterogeneidade dos acontecimentos, de admitir estruturalmente a dificuldade da determinação do enfoque como modelo de análise.

Nesse contexto, isto é, nesse ponto das atuais discussões sobre identidade e responsabilidade intelectual, tratar o regime discursivo do fato como uma estratégia única de resposta à urgência da dura realidade é um argumento que se apresenta, no fundo, como uma ruptura de diálogo, como um assentimento ao anti-intelectualismo de praxe, senão, nos piores casos, infelizmente comuns, como uma forma de censura. Nossa pobreza não pode ser usada como justificativa para que se esqueça o que se pensou sobre o problema da identidade, nas suas diversas formas de manifestação (social, psicológica, ontológica, etc.) Por outro lado, pensar a teoria contemporânea, no contexto que propus aqui, não poderia consistir evidentemente em estabelecer fidelidade a certos padrões de pensamento. A capacidade de refletir sobre os acontecimentos envolve uma atenção para com a dificuldade do seu ter lugar e para com as conseqüências daquilo que se pode articular a partir dele: teoricamente, historicamente, filosoficamente. Sem a suposição de uma origem determinada, a teoria abre mão de uma narrativa histórica ou de um conteúdo crítico previamente definidos como padrões metodológicos de compreensão dos acontecimentos. Aventura-se assim a considerar a singularidade ou, antes, o transbordar do acontecimento e, portanto, a reconhecer que o sentido que é dado a esse acontecimento é elaborado a partir de um lugar dificilmente situável. Até por isso, o reconhecimento da dificuldade de situar-se é fundamental para o discurso teórico sobre a “situação”. É a consideração da dificuldade de origem que coloca o discurso no contexto conflituoso da decisão teórica e da decisão histórica. Assim, ao nos referirmos aos “estados da crítica”, é apenas a partir dessa dificuldade que poderemos de fato pensar num exercício legítimo da responsabilidade.



Notas

(1) Departamento de Estudos Lingüísticos e Literários Universidade Estadual Paulista – UNESP – São José do Rio Preto – SP. 

(2) O presente trabalho foi apresentado no I Simpósio do GRECC – Grupo de Estudos em Crítica Contemporânea (“Os estados da crítica”), realizado na Unesp – Araraquara, em 2002. 

(3) Um artigo de Douwe Fokkema, publicado em Théorie littéraire (PUF, 1989), e citado por Rosa Maria Goulard (2001, p. 1) usa praticamente os mesmos termos e a mesma sintaxe para descrever o panorama da teoria na Europa e Estados Unidos.



Referências
 

CALLADO, A. Formação da literatura brasileira: um monólogo interior. In: D’INCAO, M.A. e SCARABÔTOLO, E.F. (org.) Dentro do texto, dentro da vida. São Paulo, Co. das Letras, 1992. 

GOULARD, R.M. Literatura e teoria da literatura em tempo de crise. Braga (Portugal): Angelus Novus, 1991.

SCHWARZ, R. Que horas são? São Paulo: Co. das Letras, 1987.

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