I
Quem
se atreve a fazer
da situação
contemporânea
da teoria
o seu
objeto
de estudo(2)
coloca-se a tarefa
não
só
de entender
o sistema
de trocas
teóricas na qual
esse
discurso
se insere, mas
afirma também,
ainda
que
indiretamente,
a existência
de uma história.
Essa dupla
tarefa
não
só
agrega rigor à análise,
como
também
angaria maiores
razões
de dificuldade.
De fato,
se há uma idéia
de totalidade
sincrônica na delimitação do estado
de coisas
do presente,
não
se pode esquecer
que
a descrição
de um
determinado
presente
repousa sobre
uma profundidade
temporal
que
permitiria estabelecer
a identidade
do que
existe pela
relação
com
o que
passou. Não
custa
lembrar
que
os julgamentos
sobre
o presente
são
normalmente
emitidos a partir
de aspectos
que
consideramos merecerem ser
esquecidos ou
preservados dentro
daquilo que
chamamos o passado.
E ainda
que
essa referência
não
apareça, o sentido
pleno
de um
momento
do presente
só
se desvenda quando
conseguimos determinar
absolutamente
suas
vinculações
históricas.
Quem
fala
da situação
contemporânea
da teoria
afirma ou
confirma, portanto,
ainda
que
indiretamente,
uma história;
pressupõe determinados
atores
e determinadas resultantes
de um
processo,
quer
seja ele
linear-evolutivo, quer
seja projetado criticamente ou
galaticamente a partir
do seu
presente.
Nada
mais
necessário
(e inevitável)
do que
a constituição
de uma história.
Entretanto,
por
outro
lado,
nada
mais
construído,
sujeito
à incessante
interpretação
e verificação.
E nenhuma estratégia
teórica
ou
ideológica pode dar
ao intelectual
digno
deste nome
o direito
de esquecer
os dois
lados
do problema.
Que
história
seria essa? Qual
o seu
conteúdo,
seus
atores,
a lógica
que
a teria conduzido para
determinado
resultado
contemporâneo?
As respostas
a essas perguntas
podem ser
tão
variadas quanto
são
os interesses
mobilizados por
aquele
que
se propõe a desvendar
um
conteúdo
histórico.
De modo
que,
genericamente, não
é incorreto
dizer
que
aquilo
que
chamamos teoria
(termo
que
prefiro usar
aqui,
no lugar
da “crítica”)
se deixa
guiar,
num extremo,
pela
história
das pulsões reconhecíveis na escrita
de determinado
teórico
e, num outro
extremo,
pela
afirmação de valores
e crenças
que
a empenham ideologicamente. Entre
esses
dois
vínculos
do pensamento
com
a sua
“realidade”,
perfila-se uma série
de resistências
e de projetos
que
definem em
grande
parte
o conteúdo
daquilo que
chamaríamos o estado
da teoria,
em
determinado
momento,
para
determinado
autor.
A
constatação
é, até
certo
ponto,
banal
e corresponde aproximadamente à seguinte
formulação:
aquilo
que
chamamos contemporâneo
está sujeito
à interpretação.
Está sujeito
à interpretação,
não
porque
estamos mais
colados ao presente
do que
ao passado,
não
porque
o presente
está em
curso,
não
exatamente
porque
sabemos pouco
sobre
ele.
O presente
está tão
fundamentalmente
sujeito
à interpretação
quanto
o passado
(e na forma
da antecipação,
também
o futuro).
Como
qualquer
descrição
histórica
dos fatos
passados,
a visão
do estado
de coisas
do presente
é uma construção
e as manifestações
dessa construção
constituem “intervenções”.
Se o discurso
sobre
o presente
é resultado
de uma interpretação,
então
a situação
atual
da teoria
deveria conjugar-se no plural:
os contemporâneos
da teoria.
Sua
história
são,
na verdade,
histórias.
O
discurso
sobre
o contemporâneo
envolve portanto
pelo
menos
uma história.
Ele
recorta, direta
ou
indiretamente,
os eventos
significativos
do passado,
elege seus
interlocutores,
próximos
ou
oponentes;
estes,
o ajudam a dar
forma
ao discurso
na direção
de determinadas perspectivas
de pensamento.
Tal
mobilização discursiva constitui, pois,
uma série
histórica
e uma genealogia.
Porém,
mais
fundamentalmente,
como
estou propondo, o discurso
sobre
o presente
caracteriza-se, de modo
rotineiro,
pela
hipótese
agregadora e metodológica da própria
história
como
recurso
de constituição
do saber.
Que
história
seria essa? De que
maneira
uma hipótese
histórica
pode ser
retomada
numa explicação
do contemporâneo?
II
Reconheçamos,
de início,
que
o saber
produzido na Universidade
enfatiza, já
há algumas décadas,
uma problemática
que
incide sobre
o presente
da teoria,
colocando-se freqüentemente
a questão
do estado
ou
da conjuntura
do pensamento
que
se produz. De maneira
abrangente, podemos dizer
que
a produção
de conhecimento
tem se caracterizado
por
um
constante
questionamento
sobre
o papel
político
e social
do discurso,
em
torno
de suas
implicações
ou
de suas
aplicações.
Seria possível
dizer
que
a prática
teórica
tem sido insistentemente
ligada
à questão
da responsabilidade
social,
cultural e política,
quer
seja pela
via
da articulação
entre
experiência
discursiva e ética
discursiva, quer
seja ainda
por
meio
do privilégio
ou
da defesa
estratégica
de uma dessas instâncias
em
relação
à outra.
Essa
prática
teórica
tem retomado a perspectiva
histórica
de diferentes
maneiras,
muitas vezes
conflitantes. Percebemos, no entanto,
uma preocupação
comum
voltada explicitamente para
a necessidade
da constituição
de uma postura
eticamente sustentável
para
o exercício
da teoria.
Entre
os mais
atuantes
e influentes discursos
de nosso
tempo
(e isso
é especialmente
claro
no Brasil, por
razões
que
valeria a pena
meditar),
temos portanto
uma demanda
ética
voltada decisivamente
para
a atitude
discursiva que
se refere à história
ou
ao lugar
a partir
do qual
essa história
se estabelece. A isso
se associa, entre
nós,
a exigência
sistemática
da atenção
que
essa teoria
deveria ter
para
com
a sua
própria
história
como
produção
intelectual.
Não
bastaria à crítica
referir-se à história,
ela
deveria ser
capaz
igualmente
de esclarecer
o seu
lugar
dentro
dessa história,
que
é também
a história
das ciências
humanas e da Universidade
no Brasil. Só
assim,
isto
é, apenas
ao justificar
sua
situação
como
herdeira
de uma demanda
histórica,
uma determinada
postura
crítica,
qualquer
que
seja, poderia
justificar
sua
necessidade
teórica
e aspirar
a ter
o seu
espaço
institucional.
Analisando
a maneira
pela
qual
essas posturas
críticas,
no Brasil, colocam-se diante
de sua
necessidade
de auto-legitimação, seria possível,
a meu
ver,
encontrar
duas justificativas
básicas para
suas
propostas:
uma delas seria a da carência
intelectual
em
nosso
meio
e a outra
seria a da urgência
em
se estabelecer
uma identidade
teórica
independente.
Nos
dois
casos,
o diálogo
se dá a partir
da problemática
da relação
com
a teoria
produzida fora
do Brasil: num caso,
o da carência,
afirma-se a necessidade
brasileira
da constituição
e da atualização teórica
a partir
do seu
exterior;
no outro
caso,
o da urgência,
afirma-se o descompasso
social
dessa atualização e o imperativo
de uma estrutura
de pensamento
brasileiro
senão
autóctone,
pelo
menos
auto-suficiente.
A relação
entre
essas posturas,
entretanto,
não
é simétrica. Existe uma história
recente
da constituição
desses pontos
de vista
que
nenhuma sociologia
da vida
intelectual
se dispôs ainda
a elaborar.
Em
certos
aspectos,
pode-se dizer
até
que
cada
uma dessas posturas
se estabelece a partir
de uma leitura
e de uma resposta
à outra.
Em
todo
caso,
parece claro
que
a determinação
da teoria
pensada a partir
da sua
função
e história
locais,
especialmente
sensível
na teoria
da literatura,
é uma produção
mediada por
determinados
discursos
sobre
o Brasil, presentes
na antropologia,
na sociologia,
na geografia
política
e na teoria
da literatura.
Esses
discursos
mobilizam nossa
atenção
há algumas décadas,
resultando para
a teoria
a idéia
de que
é preciso
produzir
conhecimento
com
a atenção
voltada para
o contexto
e, por
extensão
(que
considero discutível),
necessariamente voltada para
a nossa
tradição
intelectual.
A proposta,
até
que
se prove o contrário,
tem, como
diz um
de seus
interlocutores,
um
“apelo
intuitivo forte”.
Liga-se a uma demanda
de responsabilidade
que
diz respeito
à atuação
do intelectual
e que
não
é exclusivamente
ou
especialmente
típica
dos países
ditos
periféricos,
embora
se manifeste neles de modo
mais
dramático.
De maneira
mais
ou
menos
generalizada, para
legitimar-se, o pensamento
deve saber
explicitar
sua
vinculação
com
a circunstância
histórica.
Mas
que
história
é essa? De que
maneira
ela
é contada?
Uma
vez
aceita a proposta
de tomar
as coisas
pelo
viés
de sua
conjuntura
(decisão
teoricamente significativa
e que
empenha
tudo
o que
já
se discutiu sobre
a idéia
de estrutura,
de centralidade, de sistema),
pode-se portanto
observar
uma linha
de força
que
interpreta a história
como
discurso
organizador
do sentido
econômico
e cultural de nossa
situação
como
críticos
do presente.
Seria preciso
questionar,
na seqüência,
as estratégias
usadas para
a constituição
dessa história.
Como
o teórico
estrutura
e justifica sua
visão
da história?
O diálogo
com
o passado
pode ser
feito
de perspectivas
e com
atitudes
bastante
distintas: ao se procurar
delimitá-lo, pode-se mimetizá-lo, engrandecê-lo; ou
rejeitá-lo, silenciando-o; projetar
sobre
ele
as preocupações
do presente,
anacronicamente; ou
despertá-lo, reteomando-o a contrapêlo; ou
ainda
pressupô-lo como
conhecido
de maneira
a não
discuti-lo, considerada a sua
grande
ou
(alternativamente)
a sua
pequena
relevância.
Ocorre
que
a história
não
é um
ponto
de vista
qualquer,
e é isso
o que
me
interessa particularmente:
atribuir
valor
histórico
aos fatos
convive com
a necessidade
de se assumir
a historicidade do discurso
da tradição.
Uma das resultantes
da escrita
da história
é justamente
o desvendamento dos mecanismos
pelos
quais,
dentro
da massa
quase
incomensurável
de acontecimentos,
determinados
interesses
levam a transformações de acontecimentos
brutos
em
eventos
com
valor
histórico
significativo.
Ao se analisar
a constituição
da nação,
por
exemplo,
uma das tarefas
da história
é desvendar
o sentido
da ideologia
romântica no Brasil, isto
é, não
apenas
definir
a consciência
romântica (supondo-se que
ela
seja homogênea,
o que
está longe
de ser
verificável), mas
analisar
como,
pela
via
dos críticos
e intelectuais
românticos e posteriores,
até
o presente
momento,
o discurso
da nacionalidade
se firmou enquanto
modo
de compreensão
dos fatos
locais.
Quero dizer
que,
sob
esse
aspecto,
a história
é um
discurso
que
se associa mais
rigorosamente
a um
regime
discursivo da interpretação
do que
a um
regime
discursivo do fato
(do evento
constituído em
sentido
da história).
Sob
pena
de projetar
sobre
o passado
todo
o peso
de uma visão
constituída aprioristicamente, a história
constitui-se mais
como
exegese
de séries
discursivas, a serem sempre
recomeçadas, do que
como
estabelecimento
de um
sentido
definido
para
o real.
Como
veremos, esse
regime
discursivo da interpretação
é freqüentemente
solapado por
um
procedimento retórico
que
consiste a considerar
a interpretação
como
fato
instransponível do presente.
Um
exemplo
marcante
é a Formação
da Literatura
Brasileira,
de Antonio Candido, que,
ao descrever
as preocupações
românticas, assume-as explicitamente como
ponto
de vista
sobre
o Brasil, ganhando, por
assim
dizer,
um
narrador que
seria Machado
de Assis, na interpretação
marota
de Antonio Callado (CALLADO, 1992, p.152).
III
A
propósito,
permito-me insistir
aqui
em
um
fragmento
já
bastante
conhecido
e debatido a propósito
das referidas estratégias
de legitimação
do discurso.
Embora
demasiadamente
curto,
tem a vantagem
de ser
exemplar.
Trata-se dos primeiros
parágrafos
do texto
“Nacional
por
Subtração”,
de Roberto Schwarz, publicado pela
primeira
vez
em
1986. Nesse texto,
o autor
começa
por
afirmar
que
nós,
“brasileiros
e latino-americanos
fazemos constantemente
a experiência
do caráter
postiço,
inautêntico, imitado da vida
cultural que
levamos” (SCHWARZ, 1987, p.29). O autor
retoma aqui
um
velho
tema
polêmico, constatando que
um
aspecto
importante
de nossa
cultura
consiste no fato
de que
ela
interpreta a si
mesma
como
experiência
marcada pelo
caráter
imitativo. Embora
pressuponha um
enorme
e decisivo
movimento
de seleção
e ordenação
de fatos,
não
há ainda
nesse gesto
interpretativo
uma proposição
direta
do teórico
sobre
a natureza
de nossa
cultura;
ele
limita-se a mostrar
que
esta cultura
elabora uma representação
de si
mesma
marcada pela
preocupação
com
sua
falta
de originalidade.
Porém,
logo
após
uma série
de exemplos
dessa preocupação,
o autor
conclui: “Antes
de arriscar
uma explicação
a mais,
digamos portanto
que
o mencionado mal-estar
é um
fato”
(p.29). Aqui,
ficamos na dúvida:
o fato
do qual
se fala
é a existência
de um
mal-estar
na crítica
brasileira
e na interpretação
brasileira
da sua
cultura,
como
nos
sugerem os exemplos;
ou
é a própria
existência
concreta
e histórica
do caráter
inautêntico da nossa
cultura?
O fato
é nosso
sentimento
de inautenticidade cultural ou
é a inautenticidade de nossa
cultura?
A seqüência
não
deixará dúvidas
a respeito.
Aquilo
que
era
uma experiência
do mal-estar
pelo
brasileiro
passa
a ser
visto
como
uma situação
de fato.
Não
só
nossa
cultura
se caracteriza por
pensar
assim,
como
no fundo
ela
tem razão,
o Brasil é assim
mesmo.
No Brasil, as coisas
se apresentam funcionalmente
como
postiças ou
inautênticas. Ou
seja, a descrição
(da leitura
comum
de um
estado
de coisas)
transforma-se rapidamente, talvez
muito
rapidamente, em
uma prescrição
(de qual
deve ser
a leitura
desse estado
de coisas).
O regime
discursivo da interpretação
é aqui
substituído por
aquilo
que
estou chamando de um
regime
discursivo do fato,
fato
este
que
não
voltará a ser
questionado.
Não
deixa
de ser
interessante para
a compreensão
da instituição
literatura
que,
no texto
em
questão,
essa metamorfose
da interpretação
(há uma experiência
da inautenticidade) em
afirmação de valor
(há inautenticidade) se dê
justamente
na passagem
dos exemplos
culturais, sociais
e políticos,
para
os exemplos
da teoria
da literatura.
Depois
de falar
sobre
elementos
do cotidiano,
elementos
da crítica
de cultura
em
geral,
o autor
passa
a fazer
considerações
sobre
a crítica
literária,
especificamente. Trata-se de uma seqüência
conhecida
onde
o autor
faz uma lista
das escolas
teóricas que
se alternaram no Brasil, conjunto
que
“atesta o esforço
de atualização e desprovincianização em
nossa
universidade”
(p.30), mas
que
se deve, no fundo,
segundo
o autor,
ao fascínio
pelo
prestígio
que
essas escolas
têm nos
Estados
Unidos ou
na Europa. Como
essas mudanças, para
Schwarz, não
nascem de necessidade
interna,
o gosto
pela
novidade
acaba prevalecendo e “constitui outro
exemplo,
agora
no plano
acadêmico,
do caráter
imitativo de nossa
vida
cultural” (p.30). (Nota-se uma nova
passagem
da interpretação
– o “esforço
de atualização” – para
o fato
– fascínio
pelo
prestígio
estrangeiro
–, mas
aqui
o fato
do fascínio
modaliza a possibilidade de uma autêntica
atualização).
Estamos
aqui,
como
dissemos, não
mais
na descrição
do mal-estar
dos brasileiros
diante
do caráter
imitativo de sua
cultura,
mas
na afirmação de que
ela
se define como
sendo, de fato,
apesar
de interpretações
discordantes,
imitativa. Trata-se de um
salto
que
passa
quase
desapercebido,
mas
que
coloca em
situação
interventiva
um
discurso
que,
apesar
de politicamente comprometido, se dá como
uma descrição
calmamente
neutra
do real
contemporâneo.
E este
salto
é dado
no contexto
da passagem
da discussão
para
a teoria
literária
que
funciona, para
o autor
(diferentemente
das outras ciências
humanas?), como
extensão
da superestrutura
cultural, exemplar
no sentido
da exposição
de uma postura
mais
geral
do descompasso
ideológico das idéias
quando
transplantadas para
nosso
território.
A
afirmação de que
as ditas mudanças na teoria
literária
não
correspondem a uma “necessidade
interna”
não
parece conclusiva quanto
a sua
pertinência
(por
que
deveriam corresponder
a uma necessidade
interna?)
e é também
discutível
quanto
a seu
mérito
(não
haveria, para
além
da circunstância
nacional,
uma necessidade
interna,
uma espécie
de coerência
nos
desdobramentos da discussão
teórica?)
Por
que
a idéia
de mudança
seria especialmente
alienante, especialmente
“conservadora”, no Brasil? Existe uma relação
necessária
entre
a brevidade
da passagem
das escolas
críticas
(fenômeno
que
obviamente não
é brasileiro(3))
e esse
fascínio
do importado apontado como
elemento
propulsor
da crítica
brasileira?
Embora
essas questões
sejam de uma maneira
ou
de outra
comentadas pela
obra
de Schwarz e por
muitos
outros
críticos
de nossa
contemporaneidade, que
se perfilam sob
argumentos
similares,
permanece, a meu
ver,
sem
a devida
atenção
o estatuto
discursivo que
justifica e que
perturba a ordem
dessas questões?
Entendida
como
um
discurso
do fato,
do dado
especulativo
objetivo,
o discurso
da história
é o de uma presença
plena
à disposição
do relato ou
da narração.
A história
apresenta-se como
dada,
referível e nomeável como
tal.
IV
Pode-se
dizer
que
há uma tendência
da teoria
em
amparar-se numa visão
do real
(e da história
em
particular)
como
coisa
dada,
como
totalidade
fechada, a ser
resgatada especulativamente
e ofertada a seu
leitor.
O texto
histórico
é visto
assim
como
produto
e não
como
processo
de interpretação.
Essa tendência
se mostra
de forma
clara
em
parte
de nossa
teoria
literária,
mediada especialmente
(a propósito
da responsabilidade
do intelectual)
pela
relação
com
o caráter
ou
com
a situação
nacional.
A
problemática
se recoloca a cada
novo
influxo
de bibliografia
estrangeira.
Como
sabemos, nos
últimos
anos,
os estudos
sobre
minorias
(feminismo,
estudos
negros,
etc.), uma literatura
comparada fundada em
novas
bases,
ou
ainda
a assim
chamada
“desconstrução” (com
seus
vários
sentidos
e tratamentos),
marcaram sua
presença
em
universidades
brasileiras e nos
encontros
nacionais
de literatura,
colocando mais
lenha
na fogueira
do pensamento
sobre
a falta
de aderência, por
assim
dizer,
das idéias
no Brasil. Como
contraposição
a esse
estado
de coisas,
tem sido comum
por
parte
de teóricos
influentes a insistência
no caráter
injustificado do cultivo
desses estudos
em
nossa
localidade
brasileira.
Essa postura
cristaliza-se em
políticas
que
não
são
unicamente intelectuais,
mas
freqüentemente
institucionais e que,
sob
pretexto
da constituição
de uma “tradição
crítica”
local,
quando
não
simplesmente
em
nome
de valores
estéticos
e humanísticos, instaura uma lógica
anti-intelectualista (muitas vezes
expressa
pelo
silêncio)
que
se opõe de maneira
sistemática
àquilo
que
talvez
muito
genericamente poderíamos chamar
de teoria
contemporânea,
qualquer
que
seja sua
tendência
política.
Para
tanto,
o discurso
toma
freqüentemente
um
aspecto
interventivo
irado. Um
suposto
“desvario”
relativista é apontado como
pernicioso
em
nossa
dura
realidade.
A acusação
de “deslumbramento” teórico
denuncia uma apropriação
ingênua
das “invenções”
européias e americanas. O argumento
da inautenticidade é assumido como
idéia
forte
para
indiciar
uma atitude
“colonizada”. A teoria
no Brasil é descrita a partir
do aspecto
psicológico
da atitude
admirativa,
que
prejudicaria o diálogo
“maduro”
com
os pares
de outros
países.
Numa
cruzada
esclarecida
contra
a superficialidade,
é na verdade
uma acusação
de leviandade
crítica
que
é empreendida. Como
já
foi o caso
no passado
recente,
é contra
os chamados “pós-modernismos” de toda
sorte
que
recaem as suspeitas
de inautenticidade. Metáforas
de ordem
subjetiva
e moralizante são
comuns.
Fascínio,
ingenuidade, apetite
pelo
importado, necessidade
de colocar-se “em
pé
de igualdade”,
etc. são
termos
que
se ouvem em
congressos
e que
se lêem em
entrevistas,
em
artigos
e livros
para
designar
nossa
situação
crítica.
Não
me
consta que
essa maneira
de referir-se ao problema
tenha perdido força
nos
acontecimentos
mais
recentes
de nossa
vida
intelectual.
A
posição
teórica
designada e julgada moralmente
por
meio
de figuras
do senso
comum
psicológico
me
parece caracterizar
relativamente
bem
os sintomas
da passagem
da interpretação
para
a determinação
do fato.
Tomada
como
realidade
factual
do pensamento
no Brasil, a afirmação da conjuntura
nacional
apresenta-se, da perspectiva
desses discursos,
como
um
horizonte
intransponível.
Ao opor-se ao seu
princípio,
o intelectual
estará se definindo quer
seja pela
má consciência
da leviandade
teórica
quer
seja pela
ingenuidade adolescente
do deslumbramento.
A
atitude
“madura”,
nesse caso,
seria a constituição
de uma tradição
crítica
local,
que
valorizasse a leitura
dos autores
nacionais
e estabelecesse uma voz
forte
que
fosse capaz
de dialogar
com
as vozes
identificadas como
alienígenas.
Curiosamente,
ao mesmo
tempo,
autores
locais
de larga
envergadura
teórica,
cujos
trabalhos
incidem sobre
assuntos
brasileiros,
lamentam-se com
freqüência
de não
merecerem a consideração
dessa parte
prestigiada da instituição
crítica
nacional.
O que
nos
leva
a concluir
que
o fato
de o teórico
brasileiro
produzir
trabalhos
de relevância
sobre
a cultura
local
não
basta
para
participar
da tradição
brasileira;
ele
deve, fundamentalmente,
identificar-se com
as questões
teóricas que
já
estão associadas com
essa localidade.
Não
se trata
evidentemente
de discutir
a possibilidade ou
mesmo
a necessidade
de se pensar
o nacional
como
força
definidora de identidade
para
a cultura
no Brasil. A nacionalidade
é uma questão
legítima
para
a teoria?
Dificilmente se poderia
negá-lo se nosso
diálogo
intelectual
é com
a teoria
produzida no Brasil. A nacionalidade
é uma questão
forte,
nesse contexto.
No entanto,
pensar
a nacionalidade,
na continuidade da sua
afirmação, não
me
parece ser
a única
maneira
de a teoria
pensar
em
contexto.
Isso
depende de como
ela
recorta seu
contexto
e de como
ela
o interpreta. Em
suma:
reinscrever
a nacionalidade
como
questão
teórica
por
excelência
não
é a única
maneira
de ser
responsável.
Nesse
sentido,
pode-se dizer
que
pensar
a nacionalidade
não
é a única
maneira
de se pensar
a identidade,
essa identidade
sem
a qual
nos
seria vedada a possibilidade de colocarmo-nos em
contexto,
em
situação.
A natureza
da identidade
que
será o objeto
do discurso
teórico
depende de um
recorte de questões
e de informações
relevantes
na relação
entre
esse
discurso
e os acontecimentos
que
o interessam. A multiplicação
atual
das abordagens
e dos objetos
de estudo
(quer
seja na teoria
da literatura,
quer
seja na própria
história)
atesta a necessidade
humana
e a possibilidade teórica
de entender
outros
aspectos
da existência
(raça,
gênero,
língua),
outras realidades
da cultura,
que
nos
localizam como
indivíduos
críticos
tanto
quanto
nossa
consciência
de cidadãos
de um
país
ou
membros
de uma classe.
V
Neste
ponto,
da mesma
maneira
que
lembramos a diversidade
daquilo que
se pode tratar
como
identidade,
é preciso
reiterar
que
não
há uma única
maneira
de se pensar
a identidade,
a categoria,
o gênero,
a classe.
Considerar
a identidade
em
sua
coerência
acabada
ou
como
referência
homogênea
e bem
delimitada de um
inacabamento (por
intermédio
por
exemplo
de contradições),
é uma maneira
de tratar
a identidade
que
a recoloca na esfera
de uma visão
do real
como
origem
determinada.
Sabemos que
os fenômenos
aos quais
atribuímos sentido
também
podem ser
entendidos
(e alguns
diriam, melhor
entendidos)
a partir
do seu
desejo
ou
do seu
projeto
de identidade.
Situado no desejo
ou
no projeto,
o sentido
de um
texto
estaria na sua
diferença.
Mas
diferença
aqui
não
consiste apenas
em
tomar
o texto
a contrapelo
de sua
intencionalidade consciente
ou
ideológica; não
se limita a estabelecer
um
sentido
para
a discordância
entre
o que
um
texto
diz e o que
ele
faz. O sentido
de um
texto
não
se revela necessariamente pelo
gesto
inquiridor do que
eu
chamaria de uma contra-leitura, de uma leitura
que
se constrói em
detrimento
do texto
e a favor
de um
fundamento
especulativo
definido,
sob
a ótica
do qual
a interpretação
se torna
rapidamente um
fato.
E fatos
são
sempre
incontornáveis.
Ao
questionar
esses
mecanismos
que
ao mesmo
tempo
represam e dão forma
à interpretação,
a tarefa
de compreensão
solicitaria não
uma contra-leitura, porém
mais
exatamente
uma dupla
leitura:
a leitura
ao mesmo
tempo
de uma força
de projeto
e de sua
discordância
“retórica”,
associada
à leitura
de um
sentido
histórico
e da historicidade dessa atribuição
de sentido.
A diferença
aqui
não
seria tratada
apenas
um
momento
da estratégia
analítica,
mas
tenderia a ser
considerada no seu
permanente
descompasso
com
o discurso
da identidade
que
dela faz uso.
Pensar
a autenticidade
ou
a inautenticidade, a imitação
ou
a autonomia,
como
critérios
de constituição
do sentido
são
maneiras
de o discurso
recolocar-se numa relação
aprioristicamente definida
consigo
mesmo,
à sua
propriedade.
O inautêntico e o imitativo pressupõem determinada
uma visão
totalizante da identidade,
ainda
que
por
oposição
ao que
de fato
existe. Atenta
não
exatamente
com
o próprio,
mas
com
o outro,
uma leitura
da identidade
deveria abrir-se para
questões
que
ainda
não
foram verificadas na sua
lógica
interna.
É nesse ponto
que
questões
como
a “amizade”,
a “hospitalidade”,
a “paixão”,
no que
elas
envolvem de nossa
problemática
relação
com
a alteridade,
empenhando a própria
linguagem
de que
nos
utilizamos, podem ser
estudadas hoje
(em
literatura,
em
filosofia,
em
tradução,
na ciência
política)
como
noções
importantes
para
o tratamento
da própria
idéia
de responsabilidade.
Os
fenômenos
de auto-identificação se revelam hoje,
mais
do que
nunca
claramente,
como
processos
de demarcação
de fronteiras
e territórios.
Essas fronteiras
por
vezes
são
econômicas, mas
nem
sempre
são
principalmente
econômicas. Os fatores
de conflito
e exclusão
passam freqüentemente
por
outros
tipos
de determinação
de fronteiras
(religiosas, lingüísticas,
simbólicas) que,
a cada
vez,
promovem cruzamentos
e intersecções entre
os outros
fatores
envolvidos. Temos, nessa intersecção, um
campo
de determinações
mais
ou
menos
imprevisível
a priori, no qual
nenhum
enfoque
regional
envolvido poderia
pretender
ascender
a uma função
agregadora geral.
Não
se trata,
no entanto,
para
o teórico,
de exercer
a clássica
liberdade
de escolha
entre
uma variedade
disponível
de enfoques;
talvez
nem
mesmo
de aspirar
a uma interdisciplinaridade nos
moldes
tradicionais, mas,
dada
a heterogeneidade dos acontecimentos,
de admitir
estruturalmente a dificuldade
da determinação
do enfoque
como
modelo
de análise.
Nesse
contexto,
isto
é, nesse ponto
das atuais
discussões
sobre
identidade
e responsabilidade
intelectual,
tratar
o regime
discursivo do fato
como
uma estratégia
única
de resposta
à urgência
da dura
realidade
é um
argumento
que
se apresenta, no fundo,
como
uma ruptura
de diálogo,
como
um
assentimento ao anti-intelectualismo de praxe,
senão,
nos
piores
casos,
infelizmente
comuns,
como
uma forma
de censura.
Nossa
pobreza
não
pode ser
usada como
justificativa
para
que
se esqueça o que
já
se pensou sobre
o problema
da identidade,
nas suas
diversas formas
de manifestação
(social,
psicológica,
ontológica,
etc.) Por
outro
lado,
pensar
a teoria
contemporânea,
no contexto
que
propus aqui,
não
poderia
consistir
evidentemente
em
estabelecer
fidelidade
a certos
padrões
de pensamento.
A capacidade
de refletir
sobre
os acontecimentos
envolve uma atenção
para
com
a dificuldade
do seu
ter
lugar
e para
com
as conseqüências
daquilo que
se pode articular
a partir
dele: teoricamente, historicamente, filosoficamente. Sem
a suposição
de uma origem
determinada,
a teoria
abre mão
de uma narrativa
histórica
ou
de um
conteúdo
crítico
previamente definidos
como
padrões
metodológicos de compreensão
dos acontecimentos.
Aventura-se assim
a considerar
a singularidade ou,
antes,
o transbordar
do acontecimento
e, portanto,
a reconhecer
que
o sentido
que
é dado
a esse
acontecimento
é elaborado a partir
de um
lugar
dificilmente situável. Até
por
isso,
o reconhecimento
da dificuldade
de situar-se é fundamental
para
o discurso
teórico
sobre
a “situação”.
É a consideração
da dificuldade
de origem
que
coloca o discurso
no contexto
conflituoso da decisão
teórica
e da decisão
histórica.
Assim,
ao nos
referirmos aos “estados
da crítica”,
é apenas
a partir
dessa dificuldade
que
poderemos de fato
pensar
num exercício
legítimo
da responsabilidade.
Notas
Referências
CALLADO,
A. Formação
da literatura
brasileira:
um
monólogo
interior.
In: D’INCAO, M.A. e SCARABÔTOLO, E.F. (org.) Dentro
do texto,
dentro
da vida.
São
Paulo, Co. das Letras,
1992.
GOULARD,
R.M. Literatura
e teoria
da literatura
em
tempo
de crise.
Braga (Portugal): Angelus Novus, 1991.
SCHWARZ,
R. Que
horas
são?
São
Paulo: Co. das Letras,
1987. |