Francisco Dantas - Cartilha do Silêncio. São Paulo, Companhia das Letras, 1997.
Pascoal Farinaccio (*)

Começamos com uma observação de Antonio Candido. Escreveu ele que sempre lhe intrigou o fato de a literatura de um país novo como o Brasil ter produzido a maior parte de suas obras de qualidade no tema da decadência (social, familiar, pessoal), e isso notoriamente no século XX.(1) Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Érico Veríssimo, Ciro dos Anjos, Lúcio Cardoso, Nelson Rodrigues, Jorge Andrade, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade são escritores lembrados pelo crítico como exemplares dessa vertente temática, a que souberam explorar com êxito. Pois bem, vindo a nossos dias, cumpriria incluir nesse rol o romancista sergipano Francisco José Costa Dantas, que reata com a tradição dita “regionalista” para agora revigorá-la seja no que toca à experimentação da linguagem seja quanto à atualização referente à história recente do país.(2)

Dantas faz da rememoração o procedimento central que vida às suas personagens e as anima a contar a trajetória de seus percalços, de resto indissociável da história de seus antepassados e do contexto sociocultural do patriarcalismo nordestino. É assim em seu primeiro romance, não por acaso intitulado Coivara da Memória; no segundo, Os Desvalidos, o páthos rememorante é menor, embora permaneça como um motor importante da escrita; enfim, nesta Cartilha do Silêncio, objeto de nossa atenção, a memória volta a ser o dispositivo matriz que deflagra o relato e lhe contorno e consistência.(3) 

Madrugada de 1915 e dona Senhora arruma os trastes de sua casa em Aracaju, posto que deverá fazer uma viagem para Palmeira dos Índios, Alagoas, onde visitará o pai adoentado. O deslocamento lhe é deveras penoso. A fogosa esposa de Romeu Barroso abandonará temporariamente o lar, reduto privilegiadíssimo da memória: “A tais aporrinhações, se ajunta o apego de dona Senhora a esta casa a que está bem habituada: são lembranças, queixumes, segredinhos e tudo mais que comporta e que lhe sentido à vida, vindo primeiro a cama guarnecida de dossel, a rede do cochilinho”.(4) Pode-se discernir em Cartilha do Silêncio duas dimensões da memória, uma individual e outra coletiva, propriamente social. Evidentemente, as linhas de ambas se cruzam e se interpenetram (o que à primeira vista pode aparecer como resultadopuro” da subjetividade na verdade é um conteúdo modelado pelos valores esposados pela comunidade); ainda assim, prevalece um nítido corte a separar as duas memórias, patente nas funções diversas que exercem na caracterização das personagens e na economia do texto

Deixando de lado a memória coletiva, de que trataremos pouco adiante, vemos que a rememoração individual das personagens-narradores é o processo simbólico de que se valem para conferirem sentido à experiência e alcançarem (o que não é menos importante) consolo perante as dificuldades da hora presente. Dona Senhora, por exemplo, esforça-se voluntariamente para trazer à tona suas lembranças (“os rumorejos dos momentos inolvidáveis”) para escapar às agruras do presente: “Carece dessas lembranças para compensar o buraco vazio que é a vida. Pois é. Tem horas que se sente arruinada...” Seu filho, Cassiano Barroso, segue a trilha da mãe, também fazendo da memória máquina de significação e consolo: “... amiúde quebrando a cabeça para trazer à baila os lanços que o esquecimento teima em esconder como se parasse no último refúgio suportável”. E Mané Piaba, o agregado desde menino explorado pela família Barroso, quando velho faz da “recomposição dos velhos idos o escoadouro por onde respira”.(5) 

O “avôo da memória” (a expressão é do narrador em terceira pessoa, que compartilha espaço com as vozes em primeira pessoa das personagens) recompõe a saga da família, cuja trajetória socioeconômica é francamente descendente. Daí, em grande medida, o caráter compensatório dos atos de rememoração. Dantas é mestre nessas artes de exumação do passado, o que rende passagens de grande beleza, a exemplo do entrelaçamento de diferentes tempos na mente de Cassiano Barroso, que se lembra de um passeio a cavalo com seu filho Remígio, quando esse ainda era menino e, dir-se-ia que quase concomitantemente, lembra-se também de seu próprio pai, Romeu Barroso, que de repente lhe parece “saltar de uma loca do tempo para ensinar a ele, Cassiano menino, a montar a cavalo...(6) Outra passagem, que bem vale menção, diz da capacidade da memória de penetrar os fatos passados e (re)descobri-los, emprestando-lhes novas ou até então insuspeitadas significações: “Fatos que pareciam extintos, se carregam de um novo sentido, se prestam a conotações que tinham ficado inaparentes para os olhos, esquecidos pela mente”.(7) 

As lembranças individuais das personagens por fim compõem um coro mais vasto que se referem, para além das idiossincrasias, a uma época e a uma identidade social específicas. O desenvolvimento do entrecho, que se “movimenta vagarosamente via a acumulação de dados rememorados pelos membros da família, mais o agregado Piaba, configura uma estratégia narrativa de salvaguarda dos sentimentos de pertencimento ao clã Barroso e à época de seu fastígio. As memórias individuais transformam-se paulatinamente em memória coletiva, com o que muda também o seu modo de funcionamento: ultrapassando a dimensão compensatória, a memória articula agora umtrabalho de enquadramento”, que visa a delimitar as fronteiras sociais do grupo familiar e de sua tradição.(8) 

Quer nos parecer que, nesse passo, Francisco Dantas articula uma crítica ao egocentrismo, se cabe a palavra, familiar; enfim, ao pequeno mundo patriarcal que se pretende bastar por si mesmo, desmantelando-o ao abri-lo às vicissitudes dos novos tempos. De fato, o romance desdobra um arco de 59 anos (de 1915, madrugada em que dona Senhora arruma a casa para viajar, à noite de 1974, na qual Cassiano Barroso, com 73 anos, passa a limpo o seu passado), intervalo de tempo em que se desenvolve a história da família. Ocorre que do cruzamento das vozes rememorantes emergem contradições insolúveis entre elas, bem como que da contextualização da história familiar na história nacional surgem outras tantas, que ajudam a compreender a decadência de um certo modo de vida e de práxis social

Procuremos agora aprofundar um pouco esses dois pontos em torno dos quais o sentido crítico do romance se estrutura. No que toca às contradições das vozes sobreleva, sem dúvida, o conflito entre patrões e empregados. Mas mesmo entre os abastados sobram arestas, bastando lembrar aqui o choque entre a figura expansiva e muito sensual de dona Senhora e as Barroso, as mulheres da família do marido que se pautavam “nuns modos austeros, na palavra recolhida, numa esfumaçada linhagem que ainda precisa se conferir”.(9) A existência regida pela paixão se bate com a “garbosa tradição” da família patriarcal, sem solução possível no horizonte. São contradições internas ao grupo que acabam por minar os valores estabelecidos. 

Entre proprietários e empregados o conflito tem estatuto de tragédia social. São duas instâncias que a bem da verdade não se comunicam propriamente, cabendo tão-somente ao leitor estabelecer vias de aproximação, amparado na estrutura dialógica do romance. Para o lado proprietário, o exercício do mando é de tal formanatural”, que se mostra inquestionável sob qualquer ponto de vista externo à economia familiar. Assim, Cassiano Barroso se lembra de sua falecida mulher, de nome Arcanja, gabando-lhe entre outras habilidades a de trazer “à rédea curta os empregados” e manter dessa maneira a casa em perfeita ordem: “... fiscalizar o serviço, fazendo cair em bicas o suor dos empregados”.(10) 

Mané Piaba é o representante dos desfavorecidos, uma voz calibrada pelos sentimentos de insegurança e submissão de quem aprendeu a ser comandado, a contragosto. Remígio, filho de Cassiano, bem “compreende o rancor latejante de Piaba, a sua perene hesitação. Tem pena do tipinho, atolado na miséria arraigada, desde ainda meninote servindo a sua família – e ainda um rapado!” Pena que não impede ao neto de dona Senhora, todavia, de lançar lama no velho Piaba, fazendo os pneus de sua camioneta patinarem no barro “numa brincadeira de mau gosto, de patrão para subalterno”.(11) Cassiano Barroso, o pai, Piaba como um “sujeitinho sem ação”, dissimulado, cuja pobreza e fedentina se devem exclusivamente a suas próprias características morais duvidosas... E Mané Piaba, por sua vez, tem medo de Cassiano, devota-lhe uma “antipatia, um rancor oleoso, de pessoa agravada”; no trato com o patrão se sente tal como uminseto aniquilado”. Não obstante, aqui e acolá relampejam no cérebro de Piaba pensamentos de índole revolucionária – “ mesmo uma guerra de cacete mode o pobre melhorar”- que são logo abafados por ele mesmo, que, a exemplo de Fabiano de Vidas Secas, julga ser o governo um desígnio inapelável – “Encolhe essa língua, Manué; espie direito que podia ser pior! Não acorde a ira de Deus”.(12) 

O outro ponto de articulação crítica do romance está na contextualização da história familiar em relação às transformações históricas do país, mais precisamente de seu processo de modernização econômica. Encontram-se no texto indicações claras nessa perspectiva, tais como a ferrovia de Esplanada a Propriá referida por dona Senhora, que viria a facilitar a viagem de Sergipe a Alagoas, o avião e “tantas inventivas novas e modernas” lembradas a certa altura por Arcanja, a camioneta do patrãozinho rural etc.. E há os novos valores e costumes que vêm na esteira das mudanças estruturais do país e que bem ou mal vão sendo assimilados pelos Barroso. 

Cassiano é a figura-chave para a qual confluem as idéias do Brasil moderno e que irão se chocar, no caso, com o que ele próprio denomina “os costumes respeitados da família”. A bem da verdade, Francisco Dantas irá explorar através de Cassiano Barroso o problema da modernização conservadora ou, para sermos mais precisos, irá enfrentar, nos termos da sua ficção, a dificuldade de se alcançar neste país uma modernização efetiva que logre incorporar as camadas marginalizadas da população brasileira.(13) As contradições do projeto de nossa modernização (lembrando-se que no romance referência explícita ao golpe de 1964, vale também dizer, à modernização à direita iniciada) ganham forma concreta nas contradições do próprio Cassiano, dividido entre uma cultura citadina, da qual conhece o verniz, e a cultura do meio rural, onde se sente ummonarca incompreendido pelos súditos... 

Após a morte dos pais, Cassiano é enviado ainda muito jovem ao Rio de Janeiro, medida tomada pela parentela mais próxima, que age a pretexto de sua educação, mas que na verdade intenta simplesmente livrar-se do herdeiro inoportuno. Ora, no Rio, Cassiano vivia e se sentia como... “um autêntico europeu”. De volta a Sergipe, traz na bagagem um estofo cultural da ordem do ornamento: “Então se contentou com o verniz dado pelas revistas ilustradas com arabescos e vinhetas, manuais práticos, enciclopédias, anedotários, trechos esparsos de Montaigne, Nietzsche, por jornais e almanaques. É caído por sentenças curtas e espirituosas dos livros de duvidosa divulgação filosófica. Como não tem tutano para um entendimento geral, se asila nos pensamentos isolados a ponto de copiá-los, como se pudessem lhe fornecer algum auxílio, empregando-os nas necessidades do cotidiano”.(14) Some-se ao apego às frase de efeito o gosto por charutos, luvas, bons vinhos, objetos finos de decoração etc. e se terá uma visão completa daquilo que Cassiano tem por norma de conduta civilizada. 

Escusado dizer que a culturacitadina” de Cassiano de nada vale em seu meio de origem. Inábil na condução dos negócios, dilapida em quinquilharias o dinheiro escasso da família, o que lhe rende na boca da gente miúda de suas terras as alcunhas de “bocó”, “parasita”, “ricaço sem dinheiro”... Sentindo-se incompreendido por todos, inclusive pelo filho Remígio, que debica de seusluxos”, Cassiano toma a decisão de se “enfeudar em seu castelo e de “se fazer de surdo”. Dividido entre os valores da tradição patriarcal e os valores da cultura ornamental, de extração urbana, Cassiano é incapaz de sustentar um projeto de vida e de reprodução material coerente, o que o aproxima bastante de outropreguiçoso” da literatura brasileira, Macunaíma, de quem parece copiar o “brilho bonito mas inútil”.



Notas
 

(*) Pascoal Farinaccio é professor de literatura brasileira da Universidade Federal FluminenseUff

(1) Antonio Candido, “Prefácio” a Sergio Miceli, Intelectuais e Classe Dirigente no Brasil (1920-45), in Intelectuais à Brasileira. São Paulo, Companhia das Letras, 2001, p. 75.

(2) Observe-se que se trata de uma experimentação que responde a uma intencionalidade autoral conscientemente projetada: “O curioso é que o próprio Francisco Dantas, autor perfeccionista, tenaz e consciente de seu próprio trabalho, em entrevista a um jornal sergipano, afirma ser o anacronismo, ou aparente anacronismo, de sua prosa derivado da intenção de se colocar à margem do gosto e da demanda atual”. Vilma Arêas, “O Escritor Contra a Língua”, in Mais!, Folha de São Paulo. São Paulo, 25 de maio de 1997, p. 12.

(3) Cf. Francisco J. C. Dantas, Coivara da Memória. 2a ed. rev. São Paulo, Estação Liberdade, 1996 (a 1a edição é de 1991); idem, Os Desvalidos. São Paulo, Companhia das Letras, 1993; idem, Cartilha do Silêncio. São Paulo, Companhia das Letras, 1997.

(4) Francisco J. C. Dantas, Cartilha do Silêncio, ed. cit., p. 14.

(5) Idem, respectivamente pp. 80, 280, 254.

(6) Idem, p. 308. A infinitude do ato rememorante, que muitas vezes desconhece as leis de causa-e-efeito em suas caprichosas associações, foi destacada por Benjamin em ensaio sobre Proust: “Pois um acontecimento vivido é finito, ou pelo menos encerrado na esfera do vivido, ao passo que o acontecimento lembrado é sem limites, porque é apenas uma chave para tudo o que veio antes e depois”. Walter Benjamin, “A Imagem de Proust”, in Magia e Técnica, Arte e Política. Trad. Sergio Paulo Rouanet. São Paulo, Brasiliense, 1994, p. 37.

(7) Francisco J. C. Dantas, Cartilha do Silêncio, ed. cit., p. 188.

(8) Sobre o “trabalho de enquadramento” da memória coletiva, o qual visa a manter a coesão do grupo social, malgrado não chegue a eliminar suas contradições internas irredutíveis, cf. Michael Pollak, “Memória, Esquecimento, Silêncio”, in Estudos Históricos. v. 2, no 3. Rio de Janeiro, 1989, pp. 3-15. Do mesmo autor cf., também, “Memória e Identidade Social”, in Estudos Históricos. v. 5, no 10. Rio de Janeiro, 1992, pp. 200-212.

(9) Francisco J. C. Dantas, Cartilha do Silêncio, ed. cit., p. 98.

(10) Idem, p. 298.

(11) Idem, respectivamente pp. 235, 263.

(12) Idem, p. 267. Cumpriria destacar a complexidade psicológica das personagens de Francisco Dantas, o que é uma das maiores marcas da qualidade literária por ele alcançada até o momento. Uma personagem em princípio tão simpática como dona Senhora, por exemplo, não está imune muito pelo contrário! – aos traços mais regressivos do patriarcalismo rural. Falando de Mané Piaba, então ainda moleque, dá a ver sua visão dos serviçais: “Principiam humildezinhos, prestativos... depois acostumam, tocam a tomar confiança, embocam casa adentro sem pedir licença, não conhecem mais o seu lugar (...) E almoçam, viu? É uma começão” (idem, p. 18).

(13) Problemática, aliás, anteriormente explorada pelo autor, e retomada em Cartilha do Silêncio. Lembremo-nos da personagem Coriolano de Os Desvalidos, emblemática da dificuldade de modernização a que aludimos. Coriolano herda de um tio-avô uma botica de remédios caseiros, que vai de vento em popa até que entra em cena os “remédios de fábrica”, logo preferidos pela clientela em detrimento da produção artesanal, o que leva sua botica à falência. Coriolano tenta então nova empreitada: o fabrico de bombom de mel de abelha. De início, a mercadorianão chegava para a encomenda”, até que um concorrente, munido de uma “engenhoca de rapadura passa a vender um produto similar por uma bagatela, dado o baixo custo da fabricação mecanizada. Diz o narrador: “A engenhoca abocanhou o seu fabrico de bombom, e Coriolano foi bater com os burros n’água” (cf. Francisco J. C. Dantas, Os Desvalidos, ed. cit., pp. 25-30). Para homens da estirpe de Coriolano, incapazes de se adequarem aos novos modos de produção, a modernização imposta à força irrompe em suas vidas como um furacão que não deixa atrás de si senão uma terra arrasada.

(14) Francisco J. C. Dantas, Cartilha do Silêncio, ed. cit., p. 160.

Home - Crítica & Companhia