O erotismo e a mescla, sobre As Pranchas curvas de Yves Bonnefoy

Pablo Simpson(*)

C’est la vie mêlée à la mort, mais en lui, dans le même
moment, la mort est signe de vie, ouverture à l’illimité.
(1)

As Pranchas curvas, livro recém-publicado de Yves Bonnefoy (Mercure de France, 2001), apresenta um caminho para esse signo mesclado de Georges Bataille, em epígrafe. “Mêlé”, misturado. A acepção se precisa na exposição que busca o abismo, a distinção e diferença entre os seres. Somos distintos uns dos outros, indivíduos perecíveis, “suportamos mal a situação que nos leva à individualidade do acaso(2). Limiar entre vida e morte, primeira tentativa de definição: o erotismo, é possível dizer que é a provação da vida “jusque dans la mort”.(3) Trata-se de um instante, dissolução que remediaria o abismo, indiferenciando os homens na exuberância da vida, momento em que nós, que morremos isoladamente numa aventura ininteligível, pretendemos a continuidade perdida.  Substitui-se o isolamento por um sentimento de presença profunda: “qualidade de duração verdadeiramente vivida”, para acolher o sentido da narrativa “O Egito”, de Rue traversière (1977). Reparação, para Yves Bonnefoy, da morte materna, da perda da jovem, no cais, da terracom que me sentia bem, na extinção das aldeias, nas últimas procissões de tempo bom ou chuva”, imagem da Promé te quê, “que chamávamos também a doida”. São três mulheres, cuja alteridade pretendeu afirmar em todos os limiares de que se cercavam: limiar da morte, da incompreensão, da memória. Era preciso ouvi-las com audição atenta, voltando-a para as forças escondidas que guiavam o barco. “Éramos muitos nesse paquete que ia, há dias, à deriva, todos os motores parados, todos os fogos extintos, ainda que animado, bem o sentíamos, por uma força escondida.”(4)

Dizer “mesclado”, para afirmar a indiferenciação tão longamente inquirida por Bataille. É um atalho que permite apresentar esse novo conjunto de poemas de Yves Bonnefoy, mediante a dialética assumida em L’Érotisme. Evidencia a viabilidade de se retomar, a contra-luz, os poemas de Du Mouvement et de l’immobilité de Douve (1953), primeiro livro mais conhecido do poeta, permitindo observar nele uma atitude que diferencia as novas Pranchas. O termo “mêlé”, de um dos belos poemasPedra”, ressoa, no novo conjunto, a junção de dois tempos poéticos, de umnós que se apreende, talvez como desde Pierre écrite (1965), e, além disso, de uma rouquidão que será signo de uma outra voz, quase silêncio: indiferenciação e música baixa. Tal é o sentido que se tentará trazer para as observações de Michèle Finck, autora de Yves Bonnefoy: le simple et le sens e “Poétique de la voix rauque” e de Patrick Quillier, “Entre bruit et silence: Bonnefoy maître de chapelle? (esquisses acroamatiques)”. Sob o signo do que se apreende como unidade – e seria mesmo importante notar a referência do poeta à aliança plotiniana do simples e do uno – estaria a superação da dialética entre mundo e inscrição poética. Para Jean Starobinski, leitor dos poemas de Douve, tal era a condição paradoxal onde se encontrava a poesia: num mundo segundo, como lugar de uma nova vida, de outra plenitude. Poesia entre dois mundos, para citar o título de seu ensaio: entre o mundo árido de nosso exílio e o mundo-imagem construído pelas palavras.(5)

O sentido dessa apresentação é retomar, assim, o livro Du Mouvement et de l’immobilité de Douve, partindo de uma escuta de sua proposição e alternância eu/tu, de um erotismo que se acerca da diferença entre as vozes amorosas como abismo e intimidade. Talvez então se delimite um caminho em direção, duplamente, a um outro tempo, com as Pranchas: da nostalgia do idílio erótico como lugar de suficiência na vida, mas também do apagamento do sonho, espaço agora da audição, de uma música perseguida em seus índices mais materiais, assumindo-se na inscrição do poema. A “Pedra”, poema que será lido aqui, viria apontar para a finitude humana não mais mediante a dialética dos túmulos e seus semas, afirmação da morte como pertencimento pleno.(6) Porém em sua tentativa de constituir uma morada, incarnada na ambivalência verbal de “demeure” e “meure”, observada por Michèle Finck. Se em Douve ouvia-se a presença como um sangue – “É preciso cruzar a morte para que vivas/ A mais pura presença é um sangue derramado” – nas Pranchas, há o desejo de que esse mundo permaneça, “Que ce monde demeure!”. Tal desejo se expressa num olhar que recolhe os signos e músicas esparsas, longe da dialética intensa de sua incompreensão. Signos simplesmente desafinados, “sans accord”.

Emendo um ramo
Que se rompeu. As folhas
Estão pesadas de água e de sombra
Como o céu, de ainda

Antes
do dia. Ó terra,
Signos desafinados, caminhos esparsos,
Mas beleza, absoluta beleza,
Beleza de rio.(7)

Signos, talvez por isso, apartados de uma busca ou da dissolução do “eu” nas tensões do mundo, da luta que era atribuir-lhe nomes, conferindo à memória das palavras o apagamento e morte do outro. É menos isso do que a procura por uma terra simples, “antes do dia”, em que as palavras viriam tão somente recolher e queimar. Aguardando os ventos inflados da noite, para levar não tanto ao longe, mas ao perto da água: “As imagens se batem contra a água que sobe”. Poemas, na nomeação encerrada na quinta parte de “Na ilusão das palavras”, como âncoras lançadas, para retomar Georges Séféris.(8) 

E se permanece
Outra coisa que um vento, um recife, um mar,
Sei
que tu serás, mesmo de noite,
A
âncora lançada, os passos titubeantes sobre a areia,
E o
lenho juntado, e a centelha
Sob os ramos molhados, e, na inquieta
Atenção da chama que hesita,
A
primeira palavra dita após longo silêncio,
O
primeiro fogo a pegar no baixo do mundo morto.(9)                   

Então será a morada como simples habitação, na âncora que se fixa. É um retorno mesmo à maison natale, na sexta parte. Habitação como suficiência perante a morte, na morte que é o erotismo. Buscam-se as dissoluções naquilo que é juntar, atar, reunir. Mesclando, para usar o termo de Bataille, ao extrair um sentido senão de pertença à vida, a todos os seus ritmos e vozes, na música e nas palavras simples.


Douve
e os limiares

São duas questões que permitem abordar brevemente o livro de poemas Du Mouvement et de l’immobilité de Douve: a oposição entre conceito e morte, e a dialética das vozes eu e tu. Investigá-las, pretendendo ver o que se dispersava ao longo da primeira ensaística de Yves Bonnefoy, no conjunto de ensaios de L’Improbable. Eram matizes que pertubavam o ideal, na pintura de Piero della Francesca, Balthus, Ucello, ou nos capítulos principais sobre Baudelaire, Valéry, Sade. Baudelaire viria reanimar a idéia sacrificial de lugar inscrita na poesia, abrindo ao sentimento religioso.(10) Ucello, ao lado da essência matemática da representação “da coisa”, observaria seu aspecto imediato, quase espectral.(11)

um belo poema, “Vrai corps”, “Verdadeiro corpo”, nosÚltimos gestos” de Douve. Nestes se pressentem os abismos dos fossos, “douves”, que cercam os castelos no imaginário medieval, de que se cercam também os poemas. É a segunda voz, com seus antecendentes literários em Laura ou Délie, na Phèdre de Racine. Metáfora da morte, para John E. Jackson, principal crítico do poeta, o retorno a ela afirmaria a tentativa de interiorizar o seu destino, como nos poemas de “Douve parle”, em que a personagem viria desejar a extinção do verbo: “Que o frio por minha morte se erga e tome um sentido”.

No poemaVerdadeiro corpo”, o corpo de Douve se apresenta em sua assepsia. Trata-se de lavá-lo e, assim, recolhê-lo à nomeação. Entender pelo nome uma dialética que remonta à possibilidade, por um lado, de atestar, como um testemunho, a passagem dos vivos. Mas de apagar, por outro, na palavra, a variedade dessa passagem, a hesitação do ser que, desse modo, vem fechar-se “enclausurado”, “murado”. Os oxímoros são os mesmos do gelo ardente que recobre e anuncia a intimidade; dualidade da palavra que testemunha e dissipa aquilo que era voz e torna-se muro.

Fechada a boca e lavado o rosto,
Purificado o corpo, enterrado
Esse destino iluminando na terra do verbo
E o casamento o mais baixo se cumpriu.
Calada essa voz que gritava em minha face
Que estávamos a esmo e separados,
Murados
esses olhos: e tenho Douve morta
Na aspereza de si comigo enclausurada.
E maior o frio que sobe de teu ser,
E
ardente o gelo de nossa intimidade,
Douve,
falo em ti; e te encerro
No ato de conhecer e nomear.(12) 

As observações são breves. A última estrofe antepõe a ação da morte e sua condição de encerramento. O nome, a palavra poética, abririam a dimensão do conhecimento, tanto quanto negariam a intimidade das duas vozes do poema. É o momento em que uma delas se põe a falar, tão logo a outra se cala. Há um grito anterior que era o mesmo do “eu”, que agora anuncia, na última estrofe, a separação de ambos. Fecha-se a boca, lava-se o rosto. Anuncia-se a purificação do verbo e da terra, limpando o que era íntimo. Os muros se suspendem.

A voz que narra a morte de Douve precipita o seu ser na descontinuidade, nos muros que separam, como as “douves”, que cercam as pedras. A voz se cala, para avisar que os dois estão a esmo, ao acaso. O erotismo surge como desejo de supressão desse limite. O abismo entre elas, tão manifestas no poema, encontra a sua expressão exemplar. A pergunta final, no último poema de Douve, “Ó nossa força e nossa glória, podereis/ Furar a muralha dos mortos?”, repõe essa busca do outro. Está nos poemas em segunda pessoa, no “tu que percorre todos os versos, mas também na morte, angústia de uma destinação que não é somente a do “eu”. O interdito, a afronta aos túmulos, encontraria o erotismo no mato luxuriante que invade a personagem, na orgia: “E olhos facetados, tórax peludos, cabeças frias com bicos, com mandíbulas, a inundam”(13). Funda-se num movimento explosivo de violência, animal e sagrada, indicando a mescla e o pertencimento à morte, como em Bataille.

É preciso, no entanto, observar que o instante de nomeação da segunda pessoa, ao mostrar umeu que busca recuperar os seus rastros, representa um índice em que a diferença entre elas mais se atesta. A violência tanto une as vozes que gritam, tanto as separa. E é separá-las o que talvez aponte para uma outra intimidade, não a do erotismo como supressão da diferença. Mas a de um segredo, daquilo que é secreto e, de certo modo, principia a individuação. Contrariedade a tudo o que é público e testemunhado. Afirma-se o que permaneceu fechado e ardente, o que queimou e agora é apenas cinza.

A angústia da morte e a dor oferecem, assim, ao muro dessa separação, a dimensão de uma perda, que é o primeiro sentido da aspereza: “Na aspereza de si comigo enclausurada”. Lima-a com o nome, para divisar uma intimidade que se inicia no momento em que as vozes se calam. A palavra passa a dirigir-se a um outro lugar, do segredo, da duração “verdadeiramente vivida”. Repõe a incapacidade de adequar o desejo ao objeto, o objeto a seu sentido, aguçando o retorno, em sua única voz: “Douve eu falo em ti”. O erotismo se torna o desejo de supressão da diferença no signo que se divide, entre nomear e conhecer. Promovendo o casamento “o mais baixo”, absoluto, misturando-se à terra, como um retorno à origem e abertura ao ilimitado.


L’Érotisme e o signo mesclado
           

L’Érotisme de Georges Bataille é contemporâneo aos poemas de Douve. Publicado em 1957, corresponde a de um de seus textos principais na proposição dos interditos. Evoca L’Improbable de Yves Bonnefoy (1959), pelo esforço que parece mover contra a ciência. Traz Hegel em suas epígrafes, como em Douve, apontando para o que se mantém na morte. Em “Les tombeaux de Ravenne”, Yves Bonnefoy havia pretendido interrogar as sepulturas como aquilo que o “conceito filosófico” não encara: “Eis que, com a tumba e nessa ruptura da morte, um mesmo gesto diz a ausência e mantém uma vida(14). Para compreendê-las era preciso outra linguagem, diferente do conceito.(15) Do mesmo modo, o esforço de Bataille avançava contra o acúmulo de trabalhos especializados. Analisava o erotismo como termo daquilo que não se poderia alcançar com o discurso filosófico. Propunha uma abertura à morte, negando a duração individual. O erotismo teria o seu domínio confinado com a violência e a violação. Representaria a destruição da “estrutura do ser fechado”, como princípio, dissolvendo as formas constituídas – de vida social, regular, que fundam a ordem descontínua das individualidades definidas que somos – numa “verdade mais eminente que a vida”.(16) Ambos estavam à procura de uma presença que não fosse “surrupiada” pela tentação do conceito, buscando saída para uma “economia da idéia que não instaurasse o seu simples contrário: o acaso, a contingência.(17) 

A citação inicial do ensaio está no capítulo sobre o sacrifício religioso. Não é desnecessário lembrar das imagens recorrentes em Douve da doação do sangue, do corpo emVerdadeiro corpo”, da entrega da cabeça “às chamas baixas” no poema “A única testemunha”. Da necessidade de uma provação, como na parte XVIII de “Teatro”. 

Era preciso que assim aparecesses nos limites surdos, e de um sítio fúnebre em que tua luz se agrava, que sofresses a prova.(18)

No capítulo de L’Érotisme e ao longo da exposição de Bataille, há no sangue e nos órgãos do corpo a presença de uma vida, cuja continuidade orgânica se pode alcançar através da experiência interior, jamais restituída pela ciência. É o que chama de mesclar, unir, dissolver. O sacrifício se torna um modo de liberar, em sua pletora, uma outra experiência. O termo “éclatement” é o mesmo do ensaio “Les tombeaux de Ravenne”: “na base do erotismo, temos a experiência de um ruptura/estouro (éclatement), de uma violência no momento da explosão(19).

Bataille, ao longo dos capítulos de L’Érotisme, pretende mostrar que a morte engaja o “eu” na obstinação de “ver durar” o ser descontínuo que ele mesmo é. O sagrado, tanto quanto o erotismo, reatariam com um estado de comunicação, dissolvendo os seres. Os corpos se abririam à sua continuidade possível, dada pelo sentimento do obsceno. Há um excesso que é o signo terrível que não nos deixa esquecer da morte, “ruptura dessa descontinuidade individual à qual nos leva a angústia(20).

A poesia conduz ao mesmo ponto que cada forma de erotismo, à indistinção, à confusão dos objetos distintos. Ela nos conduz à eternidade, nos conduz à morte, e pela morte, à continuidade: a poesia é a eternidade. É o mar que se foi com o sol.(21) 

Instauraria uma outra ordem, como em Bonnefoy, atenta ao imediato. Resultado de uma incessante batalha da forma e do não formal, na busca de uma unidade para além do signo. Oferece-se ao sentimento religioso a sua morada: provisória imortalidade, mas suficiente.

 

Por uma leitura das “Pedras

A imagem das pedras, daquilo que Jean-Pierre Richard, nos Onze études sur la poésie moderne, chamou de uma oposição entre a seiva e sua condensação, surge ao longo da primeira parte das Pranchas. “A chuva de verão” traz nove inscrições. São pedras como as rochas da casa natal, em que se chocam as espumas. Colinas que escondem fogo e que anunciam o reencontro com as salas em chuva. Pedras como a própria casa, com a água brilhando em seu redor, nos espelhos. No texto em prosa que título ao conjunto, vem novamente no mar, como se ao próprio encontro do barco com uma delas correspondesse um outro encontro: da criança e do barqueiro, gigante e imóvel, para o qual ela pede: “Ó, por favor, seja meu pai! Seja minha casa!”

A pedra que interrompe a leitura é a terceira. Vem em seguida à chuva de verão, súbita e breve, no início do livro. Ao céu que consentia um ouro alquímico, bebido pelos lábios baixos na água, anuncia-se um retorno ao leito amoroso, o reconhecimento da mesa, da lareira. Reconhecimento que funde a instância pretérita, dita no prefixo de repetição “nous avons re-connu”, e o presente da enunciação. A multiplicação desse olhar em retrospecto espalha os signos do reconhecimento pelo presente da memória, alargando-o como a estrela que surge na vidraça.

Uma pressa misteriosa nos chamava.
Nós entramos, nós abrimos
Os
postigos, reconhecemos a mesa, a lareira,
A
cama; a estrela alargava-se na vidraça,
Ouvíamos a
voz que deseja que amemos
No
mais alto verão,
Como brincam os golfinhos em sua água sem margem

Durmamos,
não sabendo de nós. Seio contra seio,
Fôlegos mesclados, mãos nas mãos sem sonhos.(22) 

No poema “O quarto” de Pierre Écrite, Yves Bonnefoy havia avançado pelos signos dados ao reconhecimento: “E éramos duas regiões de sonho (...) A mão pura dormia perto da mão cuidadosa”(23). Observava o espelho, os móveis do quarto, os caminhos de pedra. Do mesmo modo, Konstantinos Kaváfis, no poema “Uma noite”, retornara ao leito amoroso, pretendendo novamente embriagar-se, na lembrança do corpo do amor.

Era o quarto vulgar e miserável,
escondido no
andar de cima da taverna
suspeita. (...)

Ali
, num leito bem reles, ordinário,
eu tive o corpo do amor, desfrutei-lhe os lábios
rosados sensuais toda a ebriez –
tal ebriez dos lábios róseos, que ainda agora
ao escrever, tantos anos depois,
nesta
casa vazia, eu de novo me embriago.(24) 

em “Uma Pedra”, todavia, menos a separação entre presente e pretérito, do que um reconhecimento que funde as vozes na instância enunciativa que é o poema. Ouve-se uma única voz, mesclada, tão logo restituída no plural: “Nós entramos, nós abrimos”. Duas vozes, para não dizer que são tantas outras. O caminho é duplo, em primeiro lugar, porque dois reconhecimentos: na palavra poética, naquilo que ela anuncia, a entrada no quarto; na voz presente, que dispõe os signos no momento em que também se reconhece neles. Há, além disso, uma outra voz, que diz para se amar “no mais alto verão”. Sugere não a palavra falada, mas a união dos amantes, o desejo comum, mesclados nos sopros, fôlegos. Os dois caminhos, a intimidade tanto quanto o desejo, encontram os limites suspensos, a água sem margens, que é a mistura do reconhecimento e dos seios. A diferença dos corpos, apagada nos nomes idênticos, não será a mesma de Douve. Não violação, tampouco sacrifício. O desejo também não se choca contra as dificuldades da nomeação, ao pretender restituir uma experiência primeira. Não se trata de lamentar a perda, no nome, da hesitação dos passos da amada. Mas de encontrar, no reconhecimento, na palavra juntada, como os lenhos, um lugar das vozes.

O sentido aqui é de uma palavra, tanto quanto de uma voz, suficientes. “Grito de apelo através das palavras, mesmo sem resposta”, que possam amar. “Dormons”, no imperativo e no presente. Respondendo a uma “pressa misteriosa” que é o apelo dos corpos. As mãos se juntam, porque os sopros repercutem o médio do som das palavras, sua quase reclusão. Próximas ao vento, porque também vêm apagar-se.

Que esse mundo permaneça!
Que a ausência, a palavra
Sejam apenas um, para sempre
Na coisa simples.(25)

E se as Pranchas trazem esse instante de união com o outro, no exílio materno da maison natale, na criança que se agarra ao pescoço do barqueiro, no retorno à noite amorosa, é porque o sentido do erotismo se modifica. É a união sem sonho, como negação de qualquer outro modo de alienação. O espaço de luta permanente, pelas formas de alteridade, do interdito, visados em Douve, não rescindem à violência primeira, como nos túmulos de Ravena, ao sangue espargido. Ganham um quase silêncio e a solidão, em que se misturam os timbres, no encontro e nas vozes bem mais roucas.(26)

Apreensão da voz, suficiência no nada

Para ouvidos atentos, é preciso notar a multiplicação de ruídos nessa poesia das Pranchas. Ruído ligeiro, da criança que se aproxima do homem, trazendo em sua mão uma peça de cobre. Com suavoz clara, mas que tremia”. Das pedras lançadas na água, debaixo das árvores, no último poema. “E estávamos , na noite, arremessando pedras.” Das rãs do mato que abrem o conjunto, sugerindo a música de Bashô.

Roucas eram as vozes
Das rãs à tarde,
onde a água da bacia, correndo sem ruído,
Brilhava na
erva.(27)

Tal é o sentido buscado por Michèle Finck e Patrick Quillier, à procura dessa fine écoute. Observam a necessidade de se demarcar uma linha que viria separar a poesia moderna. Dupla postulação da poesia, “tida entre um parti-pris da matéria, da finitude, da aliança entre a falha e a forma (rouquidão) e o desejo do ideal, da eternidade(28). Expressa-se talvez na morada que a jovem criança viria buscar no barqueiro, nas tentativas do poeta de “restituir o que fôramos/ diante da chama do céu mais vasto da tarde”. Para Quillier, trata-se de observar o valor crucial do som na construção do sentido da poesia de Yves Bonnefoy, ouvindo sua disseminação e suas pedras miúdas.(29) Recusando a idealidade do conceito, para afirmar um outro absoluto. No conjunto do poema em oito partesQue esse mundo permaneça!”, é o olhar para a evidência e o desejo de sua eternidade.

Ó, que tanta evidência
Não cesse
Como se extingue o céu
Na poça seca.(30)

Ouve-se a mistura das vozes, que falam desde Douve e Hier régnant désert, para evocar a voz da contralto Kathleen Ferrier. Vozes roucas e cinzas, mescladas, como proposição de uma única voz pura, além do timbre.

Celebro a voz mesclada de cor cinza
Que hesita ao longe do canto que se foi
Como se além de toda a forma pura      
Tremesse
um outro canto e o absoluto.(31)

Alteridades do canto, essa voz misturada. Há, por trás dela, seu iminente apagamento, também uma anamnese, nas palavras de Pierre Brunel, remontando à infância e à voz materna(32), como em “O Egito”. Para Michèle Finck, trata-se, sobretudo, de entender essa pretensão da poesia de Yves Bonnefoy de se fazer voz. Investigar sua rouquidão, na materialidade da palavra e da música, na hipótese de que constituiria uma “encarnação acústica da matéria”, na aliança do timbre “rauque” e da cor “rouge”, da terra. Patrick Quillier soma a essa abordagem a necessidade de se ouvir uma musica reservata: cromatismo secreto, acessível somente a iniciados.(33) 

A leitura das Pranchas se desvia da forma pura tanto mais, todavia, desde Douve, pela profusão dessas vozes e ruídos. Correspondem menos à apropriação daquilo que Mallarmé julgou participar do signo, em sua sonoridade e materialidade extrema, do que abertura a uma outra relação. Buscar na sonoridade uma apreensão do mundo mais baixa, quase sem ruído, esse é o sentido não da recusa e assunção do absoluto de Douve. Tomar as vozes ao nada de nossa condição, na medida em que elas constituiriam o seu médio

E talvez não fossem mesmo palavras,
Apenas o som de que elas querem nascer,
O
som tanto de sombra, tanto de luz
Nem a música, nem mais o ruído.(34) 

Pretendendo, em vez de riscar o conceito com sua morte, tomar a suficiência plena que é o encontro com o outro, a escuta de sua voz, misturada à mesma que fala. Esperança, termo central à poética de Yves Bonnefoy, de uma habitação do mundo aberta desde o início a seus improváveis. Mas também, com essas novas Pranchas, a uma plenitude do encontro e da música (souffles mêlés), expressos em seu quase nada, com um pouco de voz. Suficientes. Engajando-nos no silêncio, para retomar Bataille, que é a mescla mais pura e a origem do erotismo

Ela diria: nossas vozes
Que se tomam ao nada,
Uma da outra sejam
Nossa suficiência.(35)

(...)

E que unidade tome e guarde a vida
Na quietude da espuma, em que reflete
Seja
beleza, outra vez, seja verdade, as mesmas

Estrelas que crescem no sono.

Beleza, suficiente beleza, beleza última
De estrelas sem marca, sem movimento.(36)


Notas
 

(*) Pablo Simpson é doutorando pelo Iel-Unicamp. 

(1) Georges Bataille. L’Érotisme, Les Éditions de Minuit, 1957. “É a vida mesclada à morte, mas nele (no sacrifício), no mesmo momento, a morte é signo de vida, abertura ao ilimitado.”, p. 102.

(2) Id., p. 22.

(3) Id., p. 56.

(4) Yves Bonnefoy. “L’Égypte”, in Rue traversière, Gallimard, 1977.

(5) Jean Starobinski. “La poésie, entre deux mondes”, in Yves Bonnefoy. Poèmes, Gallimard, 1982, p. 27.

(6) A mesma sugestão, de maneira abreviada, pode-se encontrar em Arnaud Buchs “Les Planches courbes” in Revue de Belles-Lettres, no 1-2, 2002, pp. 108-110: “la poésie a trouvé sa juste place entre les mots et le monde”.

(7) Yves Bonnefoy. Les Planches courbes, Mercure de France, 2001. “Que ce monde demeure!”: “Je redresse une branche/ Qui s’est rompue. Les feuilles/ Sont lourdes d’eau et d’ombre/ Comme le ciel, d’encore/ Avant le jour. Ô terre,/ Signes désaccordés, chémins épars,/ Mais beauté, absolue beauté,/ Beauté de fleuve.”, p. 25.

(8) Bonnefoy foi crítico e tradutor de Georges Séféris. Cf. Poèmes, 1933-1955, Gallimard, 1998. Cf. poema XII de Mitologia, trad. de Darcy Damasceno, Opera Mundi, RJ, 1971, “Aqui lançamos âncoras para reparar nossos remos partidos./ Matar a sede, dormir”, p. 67.

(9) Planches, “Et si demeure/ Autre chose qu’un vent, un récif, une mer,/ Je sais que tu seras, même de nuit,/ L’ancre jetée, les pas titubants sur le sable,/ Et le bois qu’on rassemble, et l’étincelle,/ Sous le branches mouillées, et, dans l’inquiète/ Attente de la flamme qui hésite,/ La première parole après long silence,/ Le premier feu à prendre au bas du monde mort.”, p. 80.

(10) Yves Bonnefoy. in L’Improbable et autres essais, Gallimard, 1959, pp. 39-40.

(11) Id., p. 81.

(12) Yves Bonnefoy. A tradução dos poemas de Douve, de Hier régnant désert e Pierre écrite foi cotejada com a tradução de Mário Laranjeira (Iluminuras,1998), na tentativa, todavia, de preservar a ordenação sintática e um sentido mais literal. Close la bouche et lavé le visage,/ Purifié le corps, enseveili/ Ce destin éclairant dans la terre du verbe,/ Et le marriage le plus bas s’est accompli./ Tue cette voix qui criait à ma face/ Que nous étions hagards et séparés,/ Murés ces yeux: et je tiens Douve morte/ Dans l’âpreté de soi avec moi refermée./ Et si grand soit le froid qui monte de ton être,/ Si brûlant soit le gel de notre intimité,/ Douve, je parle en toi; et je t’enserre/ Dans l’acte de connaître et de nommer.”, Ed. Franc., p. 77.

(13) Douve, “Et des yeux à facettes, des thorax pelucheux, des têtes froides à becs, à mandibules, l’inondent.”, p. 58.

(14) Yves Bonnefoy. “Les tombeaux de Ravenne”, L’improbable. O ensaio é originalmente escrito no período da publicação de Douve, cf. Lettres nouvelles, no 3, maio de 1953.

(15) Id., p. 30.

(16) Georges Bataille. Op. Cit., p. 26.

(17) Ashaf Noor. “Terre et inscription chez Bonnefoy et Heidegger”, in Yves Bonnefoy – poésie, peinture, musique, textos reunidos por Michèle Finck, Presses Universitaires de Strasbourg, 1995, pp. 51-65.

(18) Douve, “Il fallait qu’ainsi tu parusses aux limites sourdes, et d’un site funèbre où ta lumière empire, que tu subisses l’épreuve.”, p. 52.

(19) Georges Bataille. Op. Cit., p. 103.

(20) Id., p. 26.

(21) Id., p. 32.

(22) Planches, “Une hâte mystérieuse nous appelait./ Nous sommes entrés, nous avons ouvert/ Les volets, nous avons reconnu la table, l’âtre,/ Le lit; l’étoile grandissait à la croisée,/ Nous entendions la voix qui veut qu l’on aime/ Au plus haut de l’été/ Comme jouent les dauphins dans leur eau sans rive./ Dormons, ne nous sachant. Sein contre sein,/ Souffles mêlés, main dans main sans rêves.”, p. 17.

(23) Pierre écrite, “Et nous étions deux pays de sommeil (...) La main pure dormait près de la main soucieuse”, p. 221.

(24) Konstantinos Kaváfis. Poemas, trad. de José Paulo Paes, Nova Fronteira, RJ, 1998, p. 131.

(25) Planches, “Que ce monde demeure!/ Que l’absence, le mot/ Ne soient qu’un, à jamais/ Dans la chose simples.”, p. 27.

(26) Ashraf Noor tem razão ao afirmar a recusa de Yves Bonnefoy à auto-destruição a que Bataille destina a poesia. Esta não pode ser o silêncio mesmo, porque é preciso que haja palavras para que o silêncio tenha um sentido de transgressão rumo ao indizível. Op. Cit., p. 65.

(27) Planches, “Les Rainettes, le soir”: “Rauques étaient les voix/ Des rainettes le soir,/ Là où l’eau du bassin, coulant sans bruit,/ Brillait dans l’herbe.”, p. 11.

(28) Michèle Finck. “Poétique de la voix rauque” in Yves Bonnefoy – poésie, peinture, musique, Op. Cit., pp. 7-21.

(29) Patrick Quillier, “Entre bruit et silence: Yves Bonnefoy Maître de Chapelle? (esquisses acroamatiques)”, in Littérature, L’oreille, la voix, 127, set. 2002, pp. 3-18.

(30) Planches, “Que ce monde demeure!”: “Oh, que tant d’évidence/ Ne cesse pas/Comme s’éteint le ciel/ Dans le flaque sèche,” p. 28

(31) Hier régnant désert, “À la voix de Kathleen Ferrier”: “Je célèbre la voix mêlée de couleur grise/ Qui hésite aux lointains du chant qui s’est perdu/ Comme si au delà de toute forme pure/ Tremblât un autre chant et le seul absolu.”, p. 159.

(32) Pierre Brunel. “Yves Bonnefoy: L’évocation d’une voix”, in Yves Bonnefoy – poésie, peinture, musique, Op. Cit., pp. 23-32.

(33) Patrick Quillier. Op. Cit., p. 18.

(34) Planches, “La voix lontaine”: “Et parfois ce n’étaient pas même des mots,/ Rien que le son dont des mots veulent naître,/ Le son d’autant d’ombre que de lumière,/ Ni déjà la musique ni plus le bruit.”, p. 58.

(35) Id., “Que ce monde demeure!”: “Elle dirait: nos voix/ Qui se prennent au rien/ L’une de l’autre soient/ Notre suffisance.”, p. 31.

(36) Id., “Dans le leurre des mots”: “Et qu’unité prenne et garde la vie/ Dans la quiétude de l’écume, où se reflète,/ Soit beauté, à nouveau, soit vérité, les mêmes/ Étoiles qui s’accroissent dans le sommeil./ Beauté, suffisante beauté, beauté ultime/ Des étoiles sans significance, sans mouvement.”, p. 74.

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