Fazer filosofia como romancista, ser
romancista
em filosofia”: Gilles Deleuze
(1)

Osvaldo Fontes Filho(2)


Cumpre,
inicialmente, perguntar: como falar de um autor que recusa o apelativoAutor” e que escreve para não ter mais que dizer EU, para chegar “ao ponto em que não tem qualquer importância dizer ou não dizer EU”? (Deleuze,1996,11) Deleuze sustenta que atribuir um livro a um sujeito é negligenciar o que ali é do registro de um trabalho de circulação das matérias, dos seres, dos valores. Trabalho de um coletivo anônimo, de “um bloco, que não é de ninguém, mas está ‘entre todo mundo” (Deleuze 1998,17). Se modernamente o livro deixou de serbela interioridade orgânica”, todo biografismo virá pontuar indevidamente o que ali de fato é da ordem de uma multiplicidade caótica. Por isso mesmo Deleuze propõe substituir, com proveito, a figura circunscrita do Autor - e os ismos que servem a esclarecê-lo - pelas linhas de articulação ou circulação que toda escritura dispõe, e pelas velocidades de devir que traduzem as idéias e as sensações em rítmicas de viscosidade, de precipitação e de ruptura. Todo pensamento e toda escritura são agenciamentos, de modo que importaria antes saber com o que tal e tal autor ou livro funciona, “em conexão com o que ele faz ou não passar intensidades, em que multiplicidades ele se introduz e metamorfoseia a sua [intensidade]” (Deleuze 1998,12).

Isto posto, com toda pertinência perguntar-se-á pela operação filosófica em Deleuze tendo por objeto, não a nossa identidade presente, o nosso ser, mas os nossos devires. A esse respeito, o que tem ele, enquanto filósofo, a nos dizer, a nós, hoje? Que conceitos ele alinhava, e de que maneira, mediante que linhas de recomposições ou mesmo de desvirtuações necessárias, de modo a encontrar os nossos impedimentos e nos ajudar a passar a outros registros, a nutrir outras intensidades. Pois que, e é fundamental apreendê-lo de imediato antes de prosseguirmos, há um pragmatismo do pensamento deleuzeano que propõe implicar modos de existência alternativos, liberar possibilidades de vida inatuais na contra-efetuação dos devires presentes oficiais. Para uma primeira estimativa da intensidade dessa pragmática, e dos modos como ela entende fazer irrupção nos processos atuais de subjetivação, bastaria verificar a avaliação que Deleuze faz da psicanálise, essa instância de legitimidade de nossos tempos:

“uma empresa contra a vida, um canto de morte, lei e castração [...] uma fantástica empresa para arrastar o desejo para impasses e para impedir as pessoas de dizerem o que têm a dizer” (Deleuze,1992,180).

Sobre impedimentos, aliás, não cansa de alertar Deleuze. De imediato, constate-se que eles são congênitos ao pensamento, que incessantemente produz seus aparelhos de poder. A filosofia, a propósito, está repleta de reflexões que se propõem pensar por nós, dar-nos uma conformidade, normas e regras às quais nos submetermos. A história da filosofia é mesmo uma “formidável escola de intimidação” ao nos indagar a cada vez, não sem petulância: “como você quer pensar sem ter lido Platão, Descartes, Kant e Heidegger, e o livro de fulano ou sicrano sobre eles?” (Deleuze 1998, 21) Assim, ao produzir o pensamento como apanágio de alguns tantos especialistas, mestres de cerimônia das conformidades a este ou aquele procedimento reflexivo, a história da filosofia dispõe-se como uma máquinaque impede perfeitamente as pessoas de pensarem” (Deleuze, 1998, 20). A filosofia o faz, mostra Deleuze, a cada vez que sufoca a vida ao lhe procurar seus princípios primeiros. Os filósofos são aqueles que “se deixam enganar de bom grado,  e  discutem  em torno  do  que  deve  ser  primeiro princípio  (o Ser, o Eu, o Sensível?...)” (Deleuze, 1998, 68). Contudo, procurar por um princípio abstrato explicativo das multiplicidades do mundo e da vida é se iludir sobre a maneira pela qual as coisas começam a se mover e a se animar, elas que começam a viver no meio” (Deleuze, 1998, 68), ou seja, nas obliqüidades, nos nomadismos de suas relações que as reportam por vezes longe de suas fronteiras canônicas. Razão, pois, para forçar o pensamento a ali pensá-las; ali, no ponto de cruzamento das heterogeneidades, cumpre fazer um ponto de alucinação do pensamento, uma experimentação que surta  violência ao pensamento e o demova de suas linhas pacificadas para vir ter com o que de fato dá a pensar.

Vir ter com o que de fato dá a pensar”: a invocação deleuzeana é de uma perfeita atualidade. “O pensamento filosófico - argumenta Deleuze - nunca teve tanto papel como hoje, porque se instala todo um regime não político, mas cultural e jornalístico, que é uma ofensa a todo o pensamento” (Deleuze, 1992, 46). Em seu último texto, toda a exasperação do filósofo está vertida contra a tristemente hegemônica imagem mediática do pensamento como troca de idéias ou discussão de opiniões. Desastre absoluto para o pensamento, garante Deleuze (1992a, 18), porque o presente regime de cultura - com seus novos sacerdotes, o jornalista cultural à proa com sua imensa competência opinativa -, ao favorecer o consenso como superior diretriz cogitativa e a homogeneização como efeito esperado do pensamento tornado comunicação, é o perfeito impedimento do que de fato caracteriza a operaçãopensar”, qual seja: singularizar, inventar acontecimentos ou renovar suas intensidades, desfazer relações estabelecidas entre os seres e conceber outras, não dependentes do opinativo; enfim, relançar possibilidades de vida inabituais e inatuais. Perfeita atualidade, pois, da função filosófica de criar Conceitos. Inconfundível faculdade de criação a sua, sobretudo ao reconhecer que suas personagens conceituais não têm a eficiência comunicativa de seus hodiernos rivais despudorados. O Conceito é justamente o que impede o pensamento de ser simples opinião, um parecer, uma discussão, uma tagarelice. Mesmo porque ele é forçosamente um paradoxo, no sentido em que sua fecundidade eventual vem da corrente de ar que faz passar entre domínios heterogêneos, com o que faz pensar, ver e sentir. Particular pragmatismo este, de uma filosofia para tempos de crispação dos possíveis: o Conceito intervém como reação às opiniões, aos fluxos ordinários de idéias, de modo a criar pregnâncias inéditas, novas singularidades ou um novo sistema de circulações singulares, enfim, uma redistribuição inesperada dos lugares, uma cartografia insólita para inopinados caminhos entre as idéias, as  coisas e os seres. “Nada de idéias justas, justo idéias”, Deleuze não pára de ressoar a frase de Godard. Nenhum método, nenhum procedimento lógico, nenhuma complacência com um bom senso universalmente partilhado virá aqui dirimir o pensar moderno de sua condição de “ato perigoso” (Foucault), condenado a tatear, a avançar às escuras, a inventar a cada vez uma orientação inaudita, ou uma “desorientada” experimentação, seus caminhos ametódicos necessariamente paradoxais.

Deleuze espera que a insensata inflação informativo-comunicativa dos tempos presentes - a conseqüente propagação de modos vergonhosos de existência e de pensamento-para-o-mercado (cf. Deleuze 1992a,103) - venha reforçar no pensar a consciência de que a sua dificuldade é congênita, de que seus adversários não são tanto os erros e as ilusões quanto a estupidez ou a banalidade. A modernidade, esclarece Deleuze, desperta para uma impotência interna do pensamento, para sua consciência de que pensar se faz sobretudo contra o próprio pensamento, contra essa fenda interior que faz com que as idéias, surgidas em infinita rapidez, percam velocidade, passem a exigir parcas dobras cerebrais e, por fim, se nos escapem. Nesse tocante, as imprecações deleuzeanas contra os tempos presentes não fazem senão prosseguir Heidegger.

Não, nós não pensamos, não aprendemos ainda a pensar, ainda não sabemos o que pensar significa, o pensamento permanecerá em nós uma possibilidade irrealizada enquanto não se der por tarefa o que eminentemente dá o que pensar” (apud Dias,1995, 36).

O que dá a pensar, complementaria Deleuze, é o que faz viajar o pensamento, o que o torna móvel (cf. Deleuze,1996,424), de um movimento sinuoso, reptilíneo (cf.Deleuze 1992a, 179), o que dele faz uma máquina de traçar novos circuitos neurobiológicos, afetivos, perceptivos, novos modos de idear e sentir em velocidade/intensidade incompatíveis com as cristalizações dos circuitos mentais impostas pelos atuais conformismos programados.

Nesse sentido, não escapa a Deleuze a convicção que todo pensamento bem  conformado está penetrado pelo projeto de tornar-se a língua oficial de um puro Estado (cf. Deleuze, 1998,21). A aproximação entre o pensamento e o Estado tem razão de ser, uma vez que se tome o aparelho de Estado como o que de fato ele é: “um agenciamento concreto que efetua a máquina de sobrecodificação de uma sociedade”. Essa máquina, explica Deleuze lembrando a lição foucaultiana, é a “máquina abstrata [porque disseminada no social] que organiza os enunciados dominantes e a ordem estabelecida de uma sociedade, as línguas e os saberes dominantes, as ações e sentimentos conformes, os segmentos que prevalecem sobre os outros” (Deleuze, 1998,150). Sabe-se como as linhas de vida são segmentárias: da família à profissão, da escola ao trabalho, da fábrica à aposentadoria, há sempre uma palavra de ordem a nos dizer: agora você não é uma criança, isto não é mais a escola, agora você não é um trabalhador, e assim ininterruptamente (cf. Deleuze,1992, 219). Pode-se então entender as razões pelas quais Deleuze investe contra a imagem do Estado para o pensamento. É no decurso de uma longa história de soberania e controle que o Estado tem-se revelado modelo do livro e do pensamento: o logos, o filósofo-rei, a transcendência da Idéia, a interioridade do Conceito, a república dos espíritos, o tribunal da razão, os funcionários do pensamento, o homem legislador e sujeito, toda uma máquina conceitual e suas personagens históricas traem a pretensão do Estado de ser a imagem interiorizada de uma ordem do mundo, e de enraizar pour cause o homem (cf. Deleuze, 1996, 36). Pensar comotoda a gente”, segundo um suposto senso comum, sempre foi para o indivíduo comum o requisito prévio de todo assentimento à realidade estabelecida. Como se esta, de fato, não começasse a se mover, a se animar na multiplicidade de relações e de intensidades de que se investem seus seres e coisas, que lhes dota de uma errância anormativa. Ora, a importância na filosofia tradicional de noções como as de universalidade e de método, de idéias justas e de senso comum, é demonstrativa de um esforço pela adequação do exercício, cogitativa às significações dominantes e às exigências da ordem existente, enfim, aos desígnios dos Estados. Em outros termos, o aparelho estatal tem fornecido ao pensamento sua organização, suas formas de consolidação e de consistência. Autocomplacência de uma vida normativa de que Deleuze fala em termos de uma generalizada “distribuição sedentária que engloba os seres e as coisas, os homens e as idéias, os agires. Todo um enraizamento, um imperativo de globalização ou de unificação, de captura de movimentos e intensidades sob princípios universais. Toda uma submissão das linhas diagonais ou transversais da vida - aquelas que levam a “pensar em termos incertos, improváveis” (Deleuze,1992,21), entre a razão e a loucura (cf. Deleuze, 1990,141) - a um sistema de coordenadas fixas, na submissão da diagonal à vertical e da linha ao ponto. Em suma, tanto o Estado quanto o pensamento geral cerram-se as mãos na mesma operação de fundação, unificação, estabilização, enraizamento, sedentarização. No mesmo empenho por controlar os devires anárquicos, determinar-lhes uma “medida”, fazer as multiplicidades dizerem-se a partir de uma unidade iminente, e a realidade a partir de uma logicidade essencial, de modo a administrar por regulação na forma do unificante ou do totalizante (cf. Dias, 1995,128).

Surpreendemos aqui Deleuze no ato de recolher aqueles raros exemplos que, na história do pensamento, deram-se por objetivo libertar, nomadizar. Os denunciadores da esquizofrenia do Conceito a serviço da Ordem. Os que não se deixaram penalizar por esse princípio único (o Estado) “que faz a partilha entre sujeitos rebeldes, remetidos ao estado de natureza, e sujeitos dóceis, remetendo por si mesmos à forma do Estado [...] organização racional e razoável de uma comunidade” (Deleuze, 1980,465). Nesse tocante, Nietzsche é referência obrigatória Contra a imagem do pensamento como uma forma de interioridade, e desta interioridade como uma forma de universalidade, Nietzsche dispõe “o pensamento em relação imediata com o fora, com as forças do fora” (Deleuze, 1996,46), de modo a que ele se faça como uma máquina de guerra. Nietzsche é o paroxismo de um empenho, moderno por excelência, em exigir que um pensamento se exponha a forças exteriores capazes de subvertê-lo de sua subordinação a modelos do Verdadeiro, do Justo ou do Direito. O pensamento sob a égide da exterioridade caótica situa-se em um spatium intensivo que nenhum método, nenhuma cartografia virá esgotar ou reduzir aos caminhos da conveniência. Ele o ocupa sem poder medi-lo, sem poder reproduzi-lo; forçosamente, é pensamento porrevezamentos, intermezzi, relances” (Deleuze, 1996,47). Assim, ele se investido de um pathos, de uma dramaticidade próprios: como desmoronamento central, na impossibilidade de criar sua própria consistência, sua centralidade, como em Artaud, desenvolvendo-se “perifericamente, em um puro meio de exterioridade, em função de singularidades não universalizáveis, de circunstâncias não interiorizáveis” (Deleuze, 1996,48); ou então, caminho que mostra Kleist, como litígio e processo, como inarticulação que termina por produzir um descontrole no interior da própria língua, algo como sua clandestinidade.

Não é, pois, casual que na apologia dessa empreitada moderna do pensamento Deleuze faça continuada menção à literatura e aos literatos. Já que pensar é contra-efetuar o tempo presente no que ele tem de impedimento ao pensar, tratar-se-ia de produzir “o livro-máquina de guerra contra o livro-aparelho de Estado” (Deleuze, 1996,18). Afinal, um livro é um agenciamento, uma multiplicidade, que suscita a questão não tanto dos significados materializados quanto dos fluxos liberados, das conexões com que faz ou não passar intensidades, enfim, dos encontros através dos quais funciona nesta ou naquela velocidade.

Um livro existe apenas pelo fora. Assim, sendo o próprio livro uma pequena máquina, que relação, por sua vez mensurável, esta máquina literária entretém com uma máquina de guerra, uma máquina de amor, uma máquina revolucionária etc. [...] A única questão, quando se escreve, é saber com que outra máquina, a máquina literária, pode estar ligada, e deve ser ligada, para funcionar. Kleist é uma louca máquina de guerra, Kafka é uma máquina burocrática inaudita... (e se nos tornássemos animal ou vegetal por literatura, o que não quer certamente dizer literariamente?)” (Deleuze, 1996,12).

Tornar-se animal ou vegetal, devir-outro, por efeito da contra-efetuação de toda máquina de identificação, de sedentarização: eis o programa para uma modernidade conjunta do pensamento e da escritura que não se compraz em compartimentar a riqueza do sensível por obra dos especialistas, mas aceita vir “fazer filosofia como romancista, ser romancista em filosofia” (Deleuze, 1998,68), isto é, chegar ao ponto de subtração aos processos sociopolíticos de subjetivação para promover anonimamente (coletivamente) “o trabalho das matérias e a exterioridade de suas correlações” (Deleuze, 1996,11). Subtrair-se ao Eu, suprimir a subjetividade, traçar linhas incontroláveis de devir - aquelas “que operam em silêncio, que são quase imperceptíveis” (Deleuze, 1998,10) -, abrir-se às multiplicidades que nos atravessam de ponta a ponta: todo um programa para a criatividade, não só estética, literária, filosófica, como imediatamente prática ou existencial. A vida como “obra de arte”, vivida em intensidade.

Perder a identidade é perder o rosto, adquirir uma clandestinidade. É o problema, salienta Deleuze, de Henry Miller (como já o era de D.H. Lawrence): “como desfazer o rosto, liberar em nós as cabeças exploradoras que traçam linhas de devir?” A literatura mostra-nos, mais que a filosofia, como atravessar o “muro das significações dominantes”, nós que

“estamos sempre mergulhados no buraco de nossa subjetividade, o buraco negro de nosso Eu que nos é mais caro do que tudo [...] buraco onde nos alojamos, com nossa consciência, nossos sentimentos, nossas paixões, nossos segredinhos por demais conhecidos, nossa vontade de torná-los conhecidos” (Deleuze, 1998,58-59).

Nessa denúncia do inibitório e do sedentarizante da forma-sujeito, Deleuze mostra como a literatura vem cerrar fileiras com a filosofia no comum trabalho de desenraizamento do verbo ser. Os literatos, sobretudo os ingleses e os americanos, possuiriam a arte de se mover pelo meio, não começar nem terminar, mas se mover entre as coisas, instaurar com isso uma lógica do E - isto é, contra a localização do verbo ser, a multiplicação da conjunção “e ... e ... e”. Thomas Hardy, Melville, Stevenson, Virgínia Woolf, Thomas Wolfe, Lawrence, Fitzgerald, Miller, Kérouac, todos estes souberam fazer o que é impossível para a literatura francesa, demasiadamente comprometida com os dramas da psique que o cultural vem sempre respaldar: destituir o fundamento, anular o fim e o começo, retraçar a cartografia dos sentires de modo a descobrir mundos através de linhas de ruptura, de linhas de fuga. “Partir, se evadir, é traçar uma linha. O objeto mais elevado da literatura, segundo Lawrence: ‘Partir, partir, se evadir... atravessar o horizonte, penetrar em outra vida...” (Deleuze, 1998,49)(3). Uma verdadeira pragmática para tempos de sedentarização, e que é igualmente uma rítmica. Isto porque o meio

“é o lugar onde as coisas adquirem velocidade. Entre as coisas não designa uma correlação localizável que vai de uma para outra e reciprocamente, mas uma direção perpendicular, um movimento transversal que as carrega uma e outra, riacho sem início nem fim, que rói suas duas margens e adquire velocidade no meio” (Deleuze, 1996,37).

Assim, segundo a particular cartografia deleuzeana, “há força suficiente para sacudir e desenraizar o verbo ser” no livro que se agencia com o fora (com o heterogêneo) em vez de reproduzir um mundo: “o livro agenciamento com o fora contra o livro-imagem do mundo” (Deleuze, 1996,34). O livro, enfim, em que a língua gagueja, como deveria gaguejar toda expressão de subjetividade. “E ...e ... e”. Pois que Deleuze fala aqui da conjunção E como “o traçado de uma linha quebrada que parte sempre em adjacência, uma espécie de linha de fuga ativa e criadora” (Deleuze, 1998,17). Os literatos comumente a propõem na forma de umuso estrangeiro da língua, em oposição a seu uso conforme e dominante fundado sobre o verbo ser” (Deleuze, 1992,60). Com que interessar o filósofo, para quem é familiar o fato de o pensamento invariavelmente se mostrar modelado pelo verbo ser, pelo É, entulhado de discussões sobre o juízo de atribuição (“o céu é azul”, “Descartes é racionalista”) e o juízo de existência (“Deus é”). Nesse tocante, é forçoso constatar, como o faz Deleuze, como ingleses e americanos, na literatura, liberaram as conjunções, refletiram sobre as relações. É que sua é uma lógica diversa; eles não a concebem como uma forma originária que contivesse os princípios primeiros; ao contrário, eles sabiam que se não abandonassem a lógica teriam de inventar uma. Sabiam, ainda, que não basta produzir uma lógica das relações, pois nada as impede, tais como são detectadas nas conjunções (ora, portanto, etc), de permanecerem subordinadas ao verbo ser.

“É preciso ir mais longe: fazer com que o encontro com as relações penetre e corrompa tudo, mine o ser, faça-o vacilar. Substituir o E ao É. A e B. O E não é sequer uma relação ou uma conjunção particulares, ele é o que subtende todas as relações, a estrada de todas as relações, e que faz com que as relações corram para fora de seus termos e para fora do conjunto de seus termos, e para fora de tudo o que poderia ser determinado como Ser, Um ou Todo. O E como extra-ser, inter-ser [...] Pensar com E, ao invés de pensar É, de pensar por É [...] Tentem, é um pensamento totalmente extraordinário, e é, no entanto, a vida” (Deleuze, 1998,70-71).

A gagueira da linguagem em si mesma é capacidade de usar de modo minoritário uma língua, por necessidade de desenraizamento da vida. Nesse sentido, insiste Deleuze, é surpreendente que os exemplos mais notáveis estejam na língua inglesa. Língua hegemônica, imperialista; vulnerável, porém, ao trabalho subterrâneo dos dialetos que a minam por todos os lados e a arrastam a uma linha de variações desenfreadas. Surpreendente atitude a da língua americana: a de “se pôr a serviço de minorias que a trabalham por dentro, involuntariamente, oficiosamente, roendo essa hegemonia à medida que se estende: o inverso do poder” (Deleuze, 1998,72). O que não tem a ver tanto com a criação de dialetos ou jargões de guetos, mas com o trabalho infinitamente mais eficaz de fazer a língua se mover a ponto de produzir naqueles que a freqüentam o sentimento da estranheza, necessário sentimento de todo aquele que, criador, sente que a língua, sem fundações oficiais, cultua seus próprios contra-sensos (cf. Deleuze, 1998,13).

A língua que gagueja, porque está sempre a inventar novas forças ou novas armas, não faz senão acompanhar a vida na sua potência mais fulgurante, quando se traduz em instância não pessoal. Se Deleuze afirma que “a escritura tem por único fim a vida” (Deleuze, 1998,14), é porque ela lhe inventa combinações, acasos, que a retiram da condição “mutilada, rebaixada, personalizada, mortificada” que é a sua quando se restringe a remoer suas complacências neuróticas. “A literatura francesa é, no mais das vezes, o elogio mais desavergonhado da neurose” (Deleuze, 1998,62)(4). Cumpre, antes, retorcer a linguagem, arrancá-la ao vivido, de modo a inscrevê-la em particular poética engajada na invenção de modos inatuais e intempestivos de existência. Toda fabulação é isso: composição de seres de sensação que excedem todo vivido, ricos de todos os campos de possível. Ela não tem outra finalidade a não ser a de suscitar percepções e paixões desconhecidas, de “tornar sensíveis as forças insensíveis que povoam o mundo, e que nos afetam, nos fazem devir” (Deleuze,1991,235). Assim,

“há devires-negro na escritura, devires-índios, que não consistem em falar como índio ou crioulo. Há devires-animais na escritura, que não consistem em imitar o animal, a ‘bancar’ o animal [...] O capitão Achab tem um devir-baleia que não é de imitação. Lawrence e o devir-tartaruga em seus admiráveis poemas. Há devires-animais na escritura, que não consistem em falar de seu cachorro ou de seu gato. É, antes, um encontro entre dois reinos, um curto-circuito, uma captura de código onde cada um se desterritorializa” (Deleuze, 1998,57).

Devires não humanos do homem que se fundem em paisagens não humanas da natureza: efeito notável do esforço literário em repossibilitar, em relançar possíveis. O possível como categoria estética! Tal seria a profunda significação da filosofia, e a sua secreta comunhão com as letras, com a vontade criadora em geral. A Vida como força ativa do pensamento e da escritura, e estes como poderes alternativos da vida. De fato, a obra deleuzeana é uma poderosa afirmação da necessidade de “libertar a vida lá onde ela é prisioneira”. Libertá-la das nossas percepções correntes e vividas; vir ter com o que é demasiado vivo para ser vivível ou vivido (cf. Deleuze,1992a,151). E se Deleuze concebe a criação em geral como invenção de devires, de “linhas de fuga” ou de resistência, é porque nos movimentos de arrancamento aos fantasmas do vivido, território terrivelmente congestionado de interpretações, ocorrem efetuações concretas de uma linha abstrata de vida onde esta se faz por experimentação.

Sobre as linhas de fuga, pode haver uma coisa, a experimentação-vida [...] ‘Eu sou assim’, acabou tudo isso. não fantasmas, mas apenas programas de vida [...] Cada linha onde alguém se solta é uma linha de pudor, por oposição à sacanagem laboriosa, pontual, presa, de escritores franceses. não há o infinito relatório das interpretações sempre um pouco sujas, mas processos acabados de experimentação, protocolos de experiência. Kleist e Kafka passavam seu tempo fazendo programas de vida: os programas não são manifestos, e menos ainda fantasmas, mas meios de orientação para conduzir uma experimentação que ultrapassa nossas capacidades de prever [...] A literatura inglesa ou americana são um processo de experimentação. Acabaram com a interpretação” (Deleuze,1998,61-62; grifos do autor).

A potência da vida atravessa uma obra, o que a impede de se tomar como fim: “miséria do imaginário e do simbólico” (Deleuze,1998,64). Por outro lado, “não obra que não indique uma saída para a vida [...] Tudo o que escrevi era vitalista, pelo menos assim o espero [...]” (Deleuze,1992,179). Esse vitalismo corresponde, como se viu, a um pragmatismo preciso: expressão de possibilidades inusuais de existências. Nessa perspectiva, um pensamento ou uma escritura não será uma simples questão de teoria, de simbologia, mas de vida, de estilo de vida implicado. “O estilo, num grande escritor, é sempre também um estilo de vida, não qualquer coisa de pessoal, mas a invenção de uma possibilidade de vida, de um modo de existência” (Deleuze,1992,138). Assim os estados crepusculares dos cavaleiros no romance de Chrétien de Troyes; os estados de  catatonia em Madame de Lafayette; o amor como paixão violenta em Emily Brontë; o ciúme como finalidade do amar em Proust. Ou então as paixões do naturalismo, a mediocridade, a perversidade, a bestialidade, e assim por diante. Todas paixões desconhecidas ou menosprezadas, que o grande romancista faz emergir como o devir das suas personagens, comonovas variedades ao mundo” (Deleuze, 1992a, 154). Mas todas, insiste Deleuze, que não se deixam confundir com o vivido. Ao privilegiar uma escritura que se conduz sobre “uma pura linha que cessa de representar o que quer que seja” (Deleuze,1998,88), Deleuze não poderia deixar de considerar como um grande mal entendido o romance do jornalista, feito de suas particularidades, de seus fantasmas, “[das] personagens interessantes que ele teve oportunidade de encontrar e sobretudo [da] personagem interessante que ele próprio forçosamente é (quem não o é?)” (Deleuze,1992a,150). A escritura somente por equívoco se confunde com o vivido. De fato, o artista, em particular o romancista, excede os estados perceptivos e as passagens efetivas do vivido. “É um vidente, alguém que devém” (Deleuze,1992a,157). Não se faz literatura com as opiniões das personagens segundo os tipos sociais a que pertencem. Antes, são as percepções, paixões e opiniões de seus modelos psicossociais que, nos bons romances, passam inteiramente em acontecimentos de uma intensidade supra-pessoal. “Caso exemplar de Thomas Hardy: nele as personagens não são pessoas ou sujeitos, são coleções de sensações intensivas. Cada um é uma coleção, um pacote, um bloco de sensações variáveis” (Deleuze,1998,53). Eis, portanto, a tarefa maior da composição artística segundo Deleuze: abrir, urdir, desfazer e refazer compostos de sensações cada vez mais ilimitados onde fazer as personagens evoluírem, nos seus devires, de modo a  dessubjetivar vidas, contra-efetuá-las, extrair dos acidentes vividos o puro acontecimento impessoal, aquele invivível que pode ser experimentado como pacto com uma perpétua metamorfose (cf.Deleuze,1992a,166). Nesse tocante, Deleuze aprecia ressaltar como em Charlotte Brontë, as coisas, as pessoas, os rostos, os amores e as palavras são modos de “ventilar”, tudo se apresenta em termos de acontecimento-vento.

“A escritura não tem outro objetivo: o vento, mesmo quando nós não nos movemos, ‘chaves no vento para que minha mente fuja do espírito e forneça a meus pensamentos uma corrente de ar fresco’ - extrair na vida o que pode ser salvo, o que se salva sozinho de tanta potência e obstinação, extrair do acontecimento o que não se deixa esgotar pela efetuação, extrair no devir o que não se deixa fixar em um termo. Estranha ecologia: traçar uma linha de escritura [...] São correias agitadas pelo vento. Um pouco de ar passa. Traçar-se uma linha, e tanto mais forte quanto for abstrata, se for bastante sóbria e sem figuras” (Deleuze,1998,89).

Proust, outro exemplo caro a Deleuze, que não é um escritor psicologista, soube fazer o tempo vivido e rememorado passar em um Tempo puro, soube erguer um monumento que diz respeito antes ao devir-criança do presente que à conservação de um passado. O “vento” proustiano é esse Tempo puro que, pela arte, encontra o seu sentido, eleva-se à condição de idealidade impessoal, em que percepções e paixões tornam-se “seres autônomos e suficientes que não devem nada àqueles que os experimentam ou experimentaram” (Deleuze,1992a,148). Em outras palavras, Proust soube arrancar dos seres, dos indivíduos, dos lugares, das situações e dos sentimentos vividos sua parteideal”, infactível, a parte não vivível das suas vivências pessoais, e dela fazer o objeto mesmo da criação literária. Assim, ainda, Lawrence ou então Faulkner, escrituras em queum grau de calor, uma intensidade de branco são perfeitas individualidades que recolhem em si rítmicas de existência, equações entre velocidades e lentidões. Isso porque nos grandes romancistas as personagens não são mais subjetividades, masseres de fuga”, “puras relações de velocidades e de lentidões, nada mais” (Deleuze,1980,332). Por que, então, não dizerque o romance atingiu sua perfeição quando tomou por personagem um anti-herói, um  ser absurdo estranho e  desorientado  que erra continuamente, surdo e cego” (Deleuze,1998,88)? Pois que ali tudo tende a girar em torno de um devir que é “o elemento demoníaco por excelência” (Deleuze,1998,55). É o que arrasta o Achab de Melville a um devir-baleia, a Pentesiléia de Kleist a um devir-cadela ou a Mrs. Dalloway de Virgínia Woolf a um devir-imperceptível. Todos exemplos da função-Anômalo de que fala Deleuze, a vida vivida na fronteira, sobre as bordas de uma multiplicidade, quando não mais se alia a palavras de ordem estabelecidas, mas traça linhas de fuga ao trair, por um fluxo de escritura moderno, “as potências fixas que querem nos reter, as potências estabelecidas da terra” (Deleuze,1998,53)(5).

Eis o que constitui a substância mesma do romance moderno, e que motiva o filósofo a ali vislumbrar o lugar de experimentação de um projeto ambicioso da modernidade: atingir uma individuação não-subjetiva, uma individualidade não por “dramas” particulares, mas por acontecimentos que nos apanham e nos arrastam, nos alteram até ao irreconhecimento. “A escritura, meio para uma vida mais que pessoal” (Deleuze, 1998,64).

 

NOTAS

(1) Uma primeira versão do presente texto foi objeto de comunicação em 9 de outubro de 2003 no II Congresso Internacional TODAS AS LETRAS: Linguagens na Universidade Presbiteriana Mackenzie. 

(2) Professor de Estética e Filosofia Contemporânea no Departamento de Filosofia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo desde 1987. Atualmente, é pós-Doutorando CNPq no IBILCE - UNESP - S.J do Rio Preto.

(3) Lê-se ainda: “A linha de fuga é uma desterritorialização. Os franceses não sabem bem o que é isso [...] Fugir é traçar uma linha, linhas, toda uma cartografia. se descobrem mundos através de uma longa fuga quebrada [...] Tudo [nos literatos americanos e ingleses] é partida, devir, passagem, salto, demônio, relação com o de fora. Eles criam uma nova Terra, mas é possível que o movimento da terra seja a própria desterritorialização. A literatura americana opera segundo linhas geográficas: a fuga rumo ao oeste, a descoberta de que o verdadeiro léxico está no oeste, o sentido das fronteiras como algo a ser transposto, rechaçado, ultrapassado [...] Não existe o equivalente em francês” (Deleuze,1998,49-50). 

(4) Se a literatura inglesa e americana “é atravessada por um processo sombrio de demolição, que arrasta consigo o escritor” - alcoolismo de Fitzgerald, desencorajamento de Lawrence, suicídio de Virgínia Woolf, triste fim de Kérouac -, ao menos ela ensina o que se pode aprender na linha de fuga, ao mesmo tempo em que é traçada: os perigos que se corre, a paciência e as precauções que é preciso ter, as retificações que é preciso fazer todo o tempo para livrá-la das areias e dos buracos negros” (Deleuze, 1998,52). Por isso mesmo há nas “rupturas” de americanos e ingleses a luta continuada “contra as reterritorializações que as espreitam”, ao passo que os franceses mantêm-se crédulos de uma primeira certeza, de um ponto de origem, de um ponto firme. Que não se busque nos grandes autores o indício de uma nevrose ou de uma psicose. “Não são doentes, esclarece Deleuze, ao contrário, são médicos”. Assim, Masoch não fornece seu nome a uma perversão tão antiga quanto o mundo porque dela “padece”, “mas porque lhe renova os sintomas [...]” (Deleuze, 1992,178). 

(5) Na cartografia deleuzeana, “é preciso criar um lugar à parte para a América”, onde todos os movimentos criativos - beatniks, underground, subterrâneos, bandos e gangues - sãoempuxos laterais sucessivos em conexão imediata com o fora”. Histeria do oeste americano, onde a identidade põe-se à prova dos “limites sempre fugidios”, das “fronteiras movediças e deslocadas” (Deleuze, 1996,30).

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DELEUZE, Gilles. Pourparlers. Paris: Minuit, 1990; ed.brasileira Conversações. Rio de Janeiro: Ed.34, 1992.

___. Qu’est-ce que la philosophie? Paris: Minuit, 1991; ed.portuguesa O que é a filosofia? Lisboa: Editoral Presença, 1992.

___. Dialogues. Paris: Flammarion, 1977;  ed. bras.  Diálogos. São Paulo: Editora Escuta, 1998.

___. Mille Plateaux. Paris: Minuit, 1980; ed.bras. Mil Platôs. Rio de Janeiro: Ed.34, 1996.

DIAS, Sousa. Lógica do acontecimento. Deleuze e a filosofia. Porto: Edições Afrontamento, 1995.

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