O romance católico e o apego aos seres de “exceção

Marcelo Tadeu Schincariol(*)

Sobre o romance católico 

Ao tratar de Cornélio Penna, Temístocles Linhares toca em uma questão que constitui o ponto de partida deste artigo. Descarta, na obra do romancista, a possibilidade de um compromisso religioso ou militância de base católica, com a veemência de quem pretende por fim à discussão sobre um conceito literário controverso:

O catolicismo pode impedir o pleno desenvolvimento do romancista? Esse é outro assunto, que não cabe discutir aqui, pois, para nós, a despeito de seu catolicismo, o autor quis ser apenas romancista. Um católico romancista então? Talvez, mas nunca um romancista católico, sempre fiel ao seu sentimento religioso, fazendo mesmo, implícita ou explicitamente, qualquer tipo de proselitismo ou de literatura católica militante, ainda que sejam sem conta os rumos dados em suas explorações pelos romancistas católicos. (LINHARES, 1987,42)

Considerando que o rótulo de “católico romancista” caberia com mais propriedade ao  escritor, Linhares leva a entender que a combinação oposta, “romancista católico”, implica algum tipo de proselitismo ou de literatura militante, manifestado implícita ou explicitamente. Sugere-se, assim, que a obra de umromancista católico”, dado seu engajamento, seria mais facilmente identificada ou definida comoliteratura católica”. Fica entretanto um ponto obscuro: em que medida seria possível chamar de católica a literatura posta em prática por umcatólico romancista”?

Ao contrário do que as considerações de Linhares podem sugerir, o conceito de “romance católico” apresenta-se ainda extremamente nebuloso no campo dos estudos literários; sobretudo quando se extrapola a perspectiva do sentimento religioso manifestado pelo escritor e parte-se para  uma análise precisa das implicações desse sentimento no próprio fazer romanesco. Exemplo disso é que, diante do risco de imprecisão - inerente, aliás, a todo tipo de rótulo -, ou mesmo na tentativa de evitar um debate a cuja conclusão não se chega, recorre-se muitas vezes a uma solução alternativa, como é o caso de Adonias Filho quando trata de Octavio de Faria:

O romancista, que abre o ciclo com Mundos Mortos, e em conseqüência da reprojeção cristã na devassa social, logo se integra no grupo de vértice dos ficcionistas católicos. As aproximações justificam as afinidades e por isso não se discute o entrosamento, quando não com o romance católico, pelo menos com a catolicidade. Não interessa, agora, referência ao debate sempre aberto se há ou nãoromance católico”. (ADONIAS FILHO, 1985, 34)

Não obstante, não se apresente de modo claro, o conceito de romance católico funciona de alguma forma entre os críticos de literatura, certamente porque estes reconhecem nas obras em questão temas caros ao catolicismo, que, de certa forma, aproximam os romancistas. Entre eles o pecado, o perdão, a reincidência, a culpa, a Queda, enfim, o percurso da Graça. Nossas leituras têm mostrado que, articulados a tal recorrência temática, aspectos de ordem estrutural definem os rumos do romance católico, apontando para uma postura filosófica que parece determinar-lhe as feições: a constatação da impossibilidade de explicar a realidade de forma inteira, o que somente seria possível a Deus. Definir os limites do romance católico não constitui, entretanto, o objetivo deste artigo, que tem como propósito mais imediato alimentar essa discussão sempre aberta por meio de um enfoque particular: sua recepção crítica.

Entre os romancistas estudados, estão os brasileiros Cornélio Penna, Octavio de Faria e Lúcio Cardoso. A extrema recorrência, nos textos que tratam de tais autores, de uma aproximação com alguns nomes do “romance católico francês” levou-nos a considerar as obras de Julien Green, Georges Bernanos e François Mauriac(1). A opção pelo chamado  romance católico francês justifica-se ainda pelo fato de, na França, essa tendência literária  ter sido bastante marcante, constituindo-se canônica.

 

Personagens pecadoras: romancista e leitor pecadores? 

Quando está em questão o romance católico, uma característica em particular chama a atenção da crítica: a atração dos autores pelas situações-limite, encenadas por personagens tidas como fora do normal, ou de exceção. Entre homicidas, suicidas, psicóticos, estupradores e linchadores, algumas delas sobressaem, tornando-se mundialmente célebres, o que tão bem ilustra Thérèse Desqueyroux, criada por Mauriac, a qual envenena letargicamente o marido sem saber ao certo o porquê. É preciso atentar que se trata de um discurso que parte, não raro, de uma crítica católica, constituindo-se quase sempre em condenações ferozes, de que talvez tenham sido os alvos principais François Mauriac e Cornélio Penna. Quanto a este, a recepção de sua obra é paradigmática entre os romancistas católicos: parece mesmo haver um consenso quanto ao caráter excepcional de suas personagens. Para citarmos apenas alguns exemplos, aos olhos de Massaud Moisés, são seresesquivos e incorpóreos(MOISÉS, 1996,514), ao passo que, para Oscar Mendes, “são criaturas semi-loucas e absurdas”, “seres estranhos e fantásticos, mais símbolos e abstrações, muitas vezes, que criaturas humanas” (MENDES, 1982). Luís Bueno as enxerga comocriaturas de exceção, com uma vida interior tão profusa quanto estéril(BUENO, 1996).(2)

Em meio às cobranças, identificam-se dois motivos de insatisfação: o de que as personagens, mergulhadas no pecado, não seriam dignas de figurarem como centro de dramas supostamente católicos; ou então de que soariam artificiais demais ou inverossímeis. Atravessando esses dois motivos, a idéia de que o romancista denunciaria, por meio dos seres que cria, sua atração pelo comportamento desviante, o que se agravaria por uma certa perda de limites entre criador/Criador e criaturas.

Charles Moeller possibilita pensar a questão de modo interessante. Tendo em conta a obra de Georges Bernanos, observa que no universo católico verifica-se uma forte relação entre o amor divino e o sofrimento humano. A esperança, configurando-se em sua mais alta tensão, a que termina por nos consumir, como explica, é a mesma que nos transfigura e nos dá o amor divino em troca de nosso pobre sofrimento humano. Assim, a idéia do sofrimento como caminho necessário à redenção por si justificaria o apego dos romancistas às situações extremas em que se encontram suas personagens, todas desenhando - imagem utilizada pelo próprio Moeller -, misteriosamente, um ícone, o do corpo de Jesus, no qual se perfaz a paixão redentora (MOELLER, 1964,398).

Tratando também da obra de Bernanos, Emmanuel Mounier permite que se explique tal apego por meio de viés complementar, que engloba inclusive as cobranças realistas de que as personagens se expliquem aos olhos do leitor. O crítico desenvolve a idéia de que Deus se manifesta como paradoxo das almas, mais que como luz dos espíritos, como escândalo, mais que como pensamento, como provocação, mais que explicação. A ignorância, a obscuridade, a ambivalência, a confusão, a insegurança do espírito e do coração viriam a nós em toda a parte em que Deus é verdade. Nesse sentido, a teologia teria em nosso mundo de hoje uma vocação especial, não a de tranqüilizar, mas de assegurar-nos porque não segurança se não for a da e na (MOUNIER, 1972, 153). Mounier ressalta que, ainda que as personagens de Bernanos sejam chamadas de “santos” - e, complementamos, talvez por isso não tenham despertado tantas críticas -, não são isolados; a riqueza sobrenatural que lhes é peculiar cria-lhes um dever: arriscá-la. Risco    de não escutar o apelo, ou escutando-o, recusá-lo; ou, seguindo-o, desviar-se dele (MOUNIER, 1972, 164). Não são por isso tranqüilos, no sentido que desejaria a crítica.

No Prefácio à sua tradução de Thérèse Desqueyroux, Carlos Drummond de Andrade articula um ponto de vista  interessante sobre essa discussão, levantando uma hipótese para explicar por que Mauriac teria encontrado no catolicismo seus amigos fervorosos e seus detratores cruéis:

O zombeteiro professor Thibaudet observa, a propósito de sua obra [de Mauriac] que “a Igreja, por muito tempo hostil ao teatro, nunca viu com bons olhos o romance, mesmo o católico”, abominando neste não a descrição deleitosa do pecado, mas o próprio pecado original do romance. De resto, esclarece Jean Prévost, não é em nome da ou da pureza, mas como ordem estabelecida e poder oficial que a Igreja censura certas tendências de Mauriac, tão avesso ao constrangimento das fórmulas sociais. Por sua vez, o próprio romancista, nas páginas do seu pungente Journal, registra o fato: “Os que fazem profissão de crer na queda original e da corrupção da natureza não suportam as obras que dão testemunho dessas coisas”. Em traços muito sumários, ficou definido o conflito entre o romancista religioso e sua religião, entre Mauriac e o catolicismo. O escritor versa matéria proibida, matéria de escândalo; pintar o pecado é convidar a pecar. Mas quando se tem o gosto da profissão e essa profissão é a de romancista, não se pode fugir ao romanesco, ou seja, ao pecaminoso. O citado Jean Prévost procura resolver a questão em proveito de Mauriac; na sua opinião o conflito existe menos entre o cristianismo e a coisa literária do que entre elementos cristãos: “no próprio interior da ; entre um pensamento essencialmente cristão e certos pontos da conduta cristã”; “é escandaloso, aos olhos dos cristãos, pintar o mundo tal como ele é aos olhos dos cristãos”. (MAURIAC,2002, 9-10)

Se o balanço crítico esboçado por Drummond permite-nos entender o posicionamento resistente da crítica católica dentro das contradições internas ao próprio cristianismo, leva-nos a questionar por que alguns romancistas católicos foram mais bem aceitos quanto ao modo como  são caracterizadas as personagens. Acreditamos que o escândalo dos cristãos quando se deparam com o mundo retratado tal qual o vêem agrava-se quando se verifica, na obra de um determinado autor, uma visão pessimista, que normalmente se concretiza na impossibilidade de salvação. Essa hipótese permite entender, por exemplo, a maior condescendência da crítica em relação à obra de Bernanos, que foi chamado por Moeller de “profeta da alegria (joie) divina”. Outra idéia que merece destaque na passagem acima é a de que, pintando o pecado, o romancista não somente pecaria, como também convidaria a pecar, a qual desemboca em uma noção de romance (católico) como atividade inerentemente pecaminosa. De fato, essa é uma das maiores preocupações que sustentam as cobranças da crítica, que parece não conceber a literatura como uma atividade cuja linguagem permitisse um distanciamento entre criador e criaturas.

Entre os romancistas católicos verifica-se uma tendência a construir as personagens por meio de elementos retirados da própria experiência pessoal, que constituem, como é patente em Julien Green, Mauriac e Octavio de Faria, por exemplo, o ponto de partida necessário para a criação literária. Uma vez que todos os homens são pecadores, como não se tornar cúmplice do pecado das personagens no próprio ato de criá-las, sobretudo quando se acredita que, nesse ato, a cumplicidade entre romancista e personagens seria o próprio fator a conferir-lhe verdade?

Mauriac trata diretamente dessa questão em “Le romancier e ses personnages”(3), numa postura que assume, na relação entre romancista, personagens e seres reais, um distanciamento possível pelo processo de ampliação por que passam esses últimos ao atravessarem a “lupa” da criação ficcional. Retomando sempre a tese de que o romancista é um imitador do Criador, questiona de que parte de si mesmo nutriria suas personagens. Revela que por muito tempo aceitou a idéia de que as personagens seriam bodes-expiatórios dos pecados que não cometemos ou dos atos heróicos que não ousamos executar. O romancista seria, nesse sentido, herói ou pecador por procuração. Entretanto parece-lhe que essa interpretação não conta suficiente do formidável poder de deformação e ampliação que seria um elemento essencial da arte do romancista: “Nada do que vivem nossos heróis tem as mesmas proporções do que sentimos nós mesmos” (MAURIAC, 2002,164). Como quem se isenta em parte dos atos de heroísmo e de pecado das personagens que cria, Mauriac reforça a idéia de que o romancista é uma lupa que tem o poder de transformar seres em monstros. Novamente aqui se tem a idéia de “complicar” as personagens, no caso “ampliá-las”, sugerindo pela contramão que o pecado destas seria sempre maior que o imaginado pelo romancista, o que significa dizer que inevitavelmente as personagens trairiam o artista, observação que torna o aspecto de “defesa em seu texto mais explícito nesse ponto:

E não apenas ele amplifica desmedidamente e de um nada faz um monstro, mas também isola, destaca sentimentos que em nós são enquadrados, contidos, suavizados, combatidos por uma multidão de sentimentos contrários. E é por isso que nossas personagens não apenas nos representam, mas ainda nos traem, pois ao mesmo tempo que amplifica, o romancista simplifica. (MAURIAC, 2002, 165)

Adotando o ponto de vista da teologia, Charles Moeller acredita que Julien Green teria tentado uma solução para esse problema no romance Varouna. Ao revestir de si a personalidade de uma santa, Jeanne, uma romancista, Green atenderia ao apelo da conversão. Notando bem que os santos também são pecadores, Green teria apresentado como solução a coexistência do Bem e do Mal, do pecado e da Graça no mundo descrito no romance - o escritor cristão teria descoberto na alma de seus heróis mais que os pecados destes, a Graça divina que os solicita. Moeller, na longa mas imprescindível passagem abaixo, lança mão de argumentos tomistas para convencer-nos de que o romancista cristão pode descrever o pecado sem se tornar seu cúmplice. Suas considerações desembocam em Santo Agostinho, mais precisamente na importante distinção entre detestar o pecado e amar o pecador:

Digamos melhor: o que o romancista reveste, aquilo com que se identifica, não é um mundo uniformemente pecador ou santo, mas um universo misturado, aquele pelo qual Cristo morreu; “tornando-se” esteuniverso”, o romancista une-se à verdade cristã integral; a luz da graça que se encontra nele existe também nos homens que descreve; ela é mesmo a luz de Deus. Além disso, um ponto central da doutrina tomista clareia-se aqui. A inteligência eleva a seu nível espiritual as coisas que são inferiores ao seu  próprio ser; as realidades superiores à inteligência discursiva são melhor conhecidas, ao contrário, pelo amor. A inteligência eleva a ela, fazendo-as penetrar no íntimo do seu ser, as coisas que ela conhece; a vontade nos tira de nós e nos faz aderir às coisas. É preciso portanto evitar amar as coisas inferiores, e contentar-se em conhecê-las pelo espírito; é preciso, ao contrário, amar as coisas superiores ao espírito, por exemplo Deus, mais que reduzi-las ao nível de conceitos discursivos. O romancista cristão pode então descrever o pecado, sem ser cúmplice dele, por meio de sua inteligência artística; ele deve sercúmplice”, por seu amor, das coisas unicamente divinas. Conhecer o “mal pela inteligência não é ter dele um conhecimento abstrato; a inteligência num sentido estrito conhece o sensível por referência às species impressae, sensíveis; a fortiori, o espírito do artista, trabalhando sobre o sensível, atinge, evitando a cumplicidade malsã, uma verdade concreta toda poderosa. Se a experiência do pecado, uma vez realizada, pode ser útil ao romancista, ela é utilizável quando transposta ao nível do espírito. O pecador no momento em que peca, não escreve romances; ele se perde, por uma identificação com o nada [néant]. Compreende-se melhor agora a necessidade de “purificar a fonte”, de que fala Mauriac. Não nos esqueçamos de Santo Agostinho: é preciso que o romancista “deteste o pecado e ame o pecador”; de mais, o risco de cumplicidade com o pecado  não existe somente para o romancista, mas para cada um de nós, em nossa vida cotidiana. Amando os “pecadores”, detestando o pecado, o romancista fará da “metamorfose” romancesca uma “transfiguração”. (MOELLER, 1964,366).

A idéia de detestar o pecado e amar o pecador atravessa de modo quase sempre evidente a obra dos romancistas católicos. O que a crítica não demonstra reconhecer na atividade artística são os mecanismos de cumplicidade e afastamento concomitantes de que trata Moeller, muito embora seja mais condescendente com os escritores em que o caminho da Graça, ainda que nebuloso, concretiza-se de alguma forma num nível mais superficial da narrativa.

 

Personagens excepcionalmente humanas 

Anatol Rosenfeld, ao tratar da personagem do romance, lança luz sobre a questão de que  tratamos. O crítico observa que o que caracteriza o ser real, individual, é a multiplicidade infinita de suas determinações, das quais não dão conta nossas operações cognoscitivas, que, embora sejam capazes de atingir alguns de seus predicados, são sempre finitas. Daí  o caráter inefável do ser humano, sobre o qual nossa visão é extremamente fragmentária e limitada. Tratando da personagem na literatura, considera que, apesar de projetada como um ser totalmente determinado - como é o ser humano -, não tem a mutabilidade e a infinitude das determinações destes. Sendo objetividades puramente intencionais, as personagens seriam inevitavelmente marcadas por zonas indeterminadas, embora o leitor normalmente não as note, que se atém ao que é positivamente dado, “encobrindo zonas indeterminadas”, tendendo, além disso, a atualizar certos esquemas preparados, ultrapassando o que é dado no texto, ainda que geralmente guiado por ele (ROSENFELD,1976,33). Sendo assim, como explica Rosenfeld, as personagens são mais coerentes que as pessoas reais - e mesmo quando incoerentes, revelam, pelo menos nisso, coerência. Além disso,  têm maior exemplaridade - mesmo quando banais -, maior significação e, paradoxalmente, maior riqueza - em decorrência da concentração, seleção, densidade e estilização do contexto imaginário, “que reúne os fios dispersos da realidade num padrão firme e consistente”. Em suas palavras, “As personagens, portanto, adquirem um cunho definido e definitivo que a observação das pessoas reais, e mesmo o convívio com elas, dificilmente nos pode proporcionar a tal ponto.” (ROSENFELD, 1976, 34-5)

Ao observar que as personagens, como seres puramente intencionais e projetados por orações, revelam-se mais transparentes à nossa visão que os seres reais, Rosenfeld ressalta que isso acontece a tal ponto que se pode levar “a ficção ficticiamente às suas últimas conseqüências”, refazendo-se assim “o mistério do ser humano, através da apresentação de aspectos que produzem certa opalização e iridiscência, e reinstituem, em certa medida, a opacidade da pessoa real” (ROSENFELD, 1976, 35). Algo semelhante diz Antonio Candido, quando considera que “O romance, ao abordar as personagens de modo fragmentário, nada mais faz do que retomar, no plano da técnica de caracterização, a maneira fragmentária, insatisfatória, incompleta, com que elaboramos o conhecimento dos nossos semelhantes.” (CANDIDO, 1976, 58)

As personagens do romance católico normalmente não se explicam ou são explicadas pelo narrador ou pelo autor. A impalpabilidade continua sendo a característica marcante: em meio à realidade que se configura através do olhar destas, não é possível reunir elementos que dêem conta de um retrato psicológico preciso, sobretudo quanto ao seu aspecto comportamental. Se é dado acesso aos seus conturbados estados internos, apenas se vislumbra a possibilidade de definir-lhes aquilo que os determina.

O modo como somos levados a percebê-las, ou seja, como seres contraditórios que não compreendem o que os cerca, tampouco a si mesmos e ao outro, nos quais comumente não se verifica uma relação clara de causalidade entre o que lhes vai à mente e a maneira como se comportam, por si sugere uma intenção de imitar a opacidade do ser humano. Além disso, tal procedimento se dá a tal ponto que faz com que as zonas indeterminadas dessas personagens comecem de alguma forma a funcionar, num processo intenso que resulta no seu caráter inesgotável e insondável - ainda que construído e apenas aparente. Daí a impressão de nunca podermos dar conta de suas determinações. Se a impressão de que as personagens são infinitamente determinadas é, como observa Rosenfeld, comum no romance, no caso da vertente católica ela é levada ao extremo, sendo intencional e literariamente construída com o intuito de reproduzir uma visão de ser humano como criatura que não é fundamentalmente inteligível. Como bem observa Antonio Candido, ao tratar dessa “ilusão do ilimitado”, a natureza aberta e sem limites da personagem é uma estrutura limitada: não se trata, esclarece, de admitir um sem-número de elementos de maneira caótica, mas, ao contrário, da escolha de alguns elementos, que são organizados segundo uma determinada lógica de composição, ainda que a aparência seja a de uma ausência de lógica.

Ainda com Antonio Candido, uma das funções capitais da ficção é proporcionar um conhecimento mais completo e mais coerente que o conhecimento fragmentário que temos dos seres: “Na verdade, enquanto na existência cotidiana nós quase nunca sabemos as causas, os motivos profundos da ação dos seres, no romance estes nos são desvendados pelo romancista, cuja função básica é, justamente, estabelecer e ilustrar o jogo das causas, desvendando as profundidades reveladoras do espírito” (CANDIDO, 1976,66). No caso do romance católico, conhecer mais profundamente o ser humano não implica necessariamente atingir o fundo do poço na sua escavação do terreno psicológico, mesmo porque esse poço pode não ter fundo ou este não nos ser acessível ao nosso conhecimento. O conhecimento que se tem das personagens no romance católico é, paradoxalmente, tão decepcionante, fragmentário ou limitado quanto o que temos dos seres humanos, mais próximo, assim, da própria experiência humana.

Somos levados a crer, portanto, que o caráter excepcional de tais  personagens deve-se, em grande parte, ao seu aspecto humano, sendo a sua inefabilidade, ao contrário do que a crítica observou, o fator primeiro responsável por essa proximidade com os seres reais; o que faz pensar que quando a crítica refere-se ao “ser humano” - do qual as personagens se afastariam - na verdade teria em mente uma visão deste determinada pelo método realista e naturalista.

Considerando-se a prioridade da estética realista na história da literatura ocidental, é possível entender melhor a dificuldade de aceitação de que se trata, a qual acreditamos ser uma resistência quanto a um método de composição de personagem, e, num sentido mais amplo, também de romance.

Leo Bersani tece as seguintes considerações a respeito da  psicologia das personagens na literatura realista:

Na literatura realista, o esforço para obter uma forma significante privilegia uma psicologia dos personagens significante e estruturada com coerência. Os incidentes reveladores ajudam a tornar inteligível o caráter dos personagens; os verdadeiros princípios e os fins definitivos permitem um enquadramento temporal em que os indivíduos não se limitam a existir, deslocam-se de um estádio da consciência para outro, cumprindo um destino completamente traçado.(...) A complexidade é tolerada na medida em que não põe em perigo uma ideologia para a qual o sujeito é uma estrutura fundamentalmente inteligível, que  permanece inalterável perante uma história feita de desejos fragmentados e descontínuos. (BERSANI, 1984, 57-8)

No universo do romance católico, palavras e gestos nem sempre podem ser interpretados com exatidão, o que, como as observações de Bersani levam a crer, vai de encontro à ideologia realista e naturalista segundo a qual o sujeito é uma estrutura fundamentalmente inteligível. Há evidências suficientes para se acreditar que os romancistas católicos pretendiam mostrar que não são ou devem ser considerados naturais ou necessárias às intenções do romancista de unificar o sujeito numa totalidade  ordenada. A dificuldade em aceitá-los, bem como o mundo a que se tem acesso através dos seus olhos, deve-se certamente ao fato de não proporcionarem a satisfação de contemplar seres bem organizados e, como sustenta Bersani, uma sociedade organizada. Em seu texto, Bersani defende a idéia de que, escolhendo personagens psicologicamente estruturadas, ou seja, optando pela legibilidade constante do ser humano, “a literatura realista e naturalista oferece constantemente à sociedade, que parece ser julgada tão severamente, o conforto de uma visão sistemática de si própria e a segurança de um sentido estruturado” (BERSANI, 1984, 63). No domínio do desejo, como acredita Bersani, encontra-se o triunfo da estabilidade social. Nos romancistas católicos provoca-se a  consciência da desestrutura, do heterogêneo, da fragmentação, dos quais se constituem as personagens e também o mundo em que vivem, justamente porque o conhecimento profundo do mundo e dos seres humanos caberia a Deus. Num sentido extremo, a própria noção de literatura edificante, associada normalmente à literatura católica, é posta em xeque, que nem sempre o bem é recompensado e o mal castigado de modo visível.

A contradição de que tratamos remete à discussão de Mauriac em “Les romancier e ses personnages”, que permite encarar a resistência da crítica em aceitar personagens do romance católico, no caso aquelas tidas como supostamenteartificiais ou pouco verossímeis, como fruto de uma contradição entre as leis da realidade e as leis do romance quanto à verossimilhança. É patente como Mauriac, refletindo uma atitude que parece iluminar a dos demais romancistas católicos, expõe sua angústia frente à constatação de que o fazer romanesco como ato de criação existe, porém marcado pela impossibilidade de atingir aquele que seria seu maior objetivo: apreender a realidade em seu todo:

nossas personagens raciocinam, têm idéias claras e distintas, fazem exatamente o que querem fazer e agem segundo a lógica, ao passo que, na realidade, o inconsciente é a parte essencial de nosso ser e a maioria de nossos atos tem motivos que escapam a nós mesmos. Se descrevemos num livro um acontecimento assim como o observamos na vida, é quase sempre isso que a crítica e o público julgam inverossímil e impossível. O que prova que a lógica humana que rege o destino dos heróis de romance não tem quase nada a ver com as leis obscuras da vida verdadeira. (MAURIAC, 2002, 180)

Nesse ponto, Mauriac toca em uma questão absolutamente importante: o esforço dos romancistas católicos por reproduzir as leis obscuras da vida verdadeira - ainda que cientes dessa impossibilidade -, esforço esse que normalmente não é aceito porque as leis do romance não seriam compatíveis com aquelas: mais se tenta reproduzir o irreproduzível segundo uma lógica que é deste, e menos o resultado é tido como verossímil.

Não se pode deixar de atentar que as considerações de Rosenfeld e Candido, iluminadas pelo ensaio de Mauriac, adquirem outra dimensão quando se considera que, no universo do romance católico, romancista e Criador igualam-se, num certo nível, no ato do fazer ficcional, o que traz como corolário questões éticas particulares.

Ainda tendo em conta o caráter supostamente inverossímil das personagens no romance católico, acreditamos que uma observação se faz necessária. De um modo geral, os romancistas, não obstante tocarem em temas caros ao universo cristão e utilizarem-se de procedimentos de construção romanesca por vezes comuns, constroem atmosferas muito particulares que, nesse nível, distanciam-nos. Acreditamos que a construção e a manutenção de tais atmosferas devem-se em grande parte ao modo uniforme como configura a linguagem nos romances. Ainda que as personagens sejam de classes sociais e possuam níveis intelectuais distintos, não se verifica da parte dos escritores uma intenção de conferir-lhes um modo de expressão que seja condizente com a origem ou formação destas, tampouco que as distancie do modo como se expressa o narrador. Em outros termos, não existe qualquer tentativa de mimar a linguagem das personagens de acordo com elementos intrínsecos a um universo que pode não ser social, cultural e intelectualmente o mesmo do narrador ou do próprio escritor. Poderíamos cogitar que a intenção em manter uma uniformidade de linguagem dever-se-ia a uma tentativa de ruptura com esses que seriam alguns limites impostos ao conhecimento mais profundo do ser humano em sua verdade, na região em que se pode estabelecer um diálogo com Deus. O que nos interessa particularmente é o resultado desse procedimento: a impressão de que as personagens possuem um poder de refletir sobre si mesmas que não somente não condiz, por vezes, com sua origem, como também nos parece maior que o que poderíamos ter a nosso respeito. Ainda assim - ou melhor, também por meio desse procedimento - ao mergulharmos no interior dos seres ficcionais do romance católico - e a intenção deve justamente ser essa - atingimos os conflitos existenciais mais profundos dos seres humanos  por meio de uma linguagem que os universaliza, fazendo com que se mostrem aos nossos olhos, não raro, como grandes revelações. Nesse sentido, mais uma vez a crítica demonstraria um apego aos procedimentos realistas de composição romanesca.                    

Ao privilegiar a construção de uma atmosfera uniforme por meio da linguagem, os romancistas convidam leitores e críticos a jogar o seu jogo, partilhar de certas regras, muitas das quais fazem sentido num universo ficcional fechado, ainda que este sirva de porta a uma grande verdade e simule a própria vida. Da aceitação dessas regras dependeria, num certo nível, a maior ou menor aceitação da verdade das personagens. Quando delas faz parte o caminho da salvação, por mais tumultuoso ou nebuloso que ele se mostre, a resistência da crítica (católica) parece diminuir, atitude essa que não deixa de remeter a uma concepção ainda limitada de romance católico, segundo a qual seu objetivo primeiro é a edificação do leitor, o que se daria necessariamente por meio de uma mensagem clara de esperança.

 

Notas 

(*) Doutorando em Teoria e História da Literatura na UNICAMP. Bolsista da FAPESP.

(1) Restringindo-nos a apenas alguns exemplos relativos a Cornélio Penna, aproximações com Julien Green encontram-se em Tristão de Ataíde (Nota Preliminar (Fronteira) in: Romances completos de Cornélio Penna. Rio de Janeiro: Aguilar, 1958, pp. 3-4) e também em Sérgio Milliet (Nota Preliminar (Repouso) in: Romances completos de Cornélio Penna. mesma edição, p. 379). Léo Schlafman acredita, além de Green, na filiação de Cornélio Penna a outros escritores católicos europeus, sobretudo os franceses, como Bernanos, Péguy, Bloy, Mauriac e Graham Greene. (SCHLAFMAN, Léo. A verdade e a mentira: novos caminhos para a literatura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998, p. 196).

(2) Sobre a recepção crítica de Cornélio Penna, consultar SCHINCARIOL, Marcelo T. Em busca da alma de Itabira: uma leitura de Cornélio Penna. Campinas, 2001. Dissertação de Mestrado em Letras (Teoria Literária), Universidade Estadual de Campinas.

(3) Conferência proferida em 1932 e publicada pela primeira vez em 1933. Tomamos aqui como referência a versão em português incluída na edição de Thérèse Desqueyroux pela Cosac & Naify em 2002.

 

Referências Bibliográficas 

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MAURIAC, François. Thérèse Desqueyroux. São Paulo: Cosac & Naify, 2002.

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MOELLER, Charles. Littératue du Xxe. siècle e christianisme (vol. I- Silence de Dieu). Paris: Casterman, 1964.

MOISÉS, Massaud. A literatura através dos textos.19 ª ed., São Paulo: Cultrix, 1996,  p. 514.

MOUNIER, Emmanuel. A esperança dos desesperados: Malraux -Camus -Sartre - Bernanos.Rio de Janeiro: Paz e Terra,1972.

ROSENFELD, Anatol. Literatura e personagem. In: CANDIDO, Antonio e outros. A personagem de ficção. 5a. ed., São Paulo: Perspectiva, 1976.

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