Um autor necessário, um romance de urgência: acerca de
O amor é fodido
, de Miguel Esteves Cardoso
Luis Maffei(*)

POR QUE?

Porque sim, mas não posso ser tão taxativo, não posso ser tão pouco. A isso, então:

os problemas de se estudar um autor que é visitado de forma tão tímida pela academia são diversos: não entro neste mérito ainda, mas entro noutros: que será feito aqui, num estudo que se debruça sobre um romance-problema como O Amor é fodido?

O amor, claro, tema mestre do texto que se vai analisar frontalmente. E a situação do amor-paixão numa contemporaneidade massacrante, pouco amorosa, pouco afeita a coisas passionais. Por que? Porque o mundo tem mais o que sugerir, é uma ordem, e isso desde muito, não tanto como agora, mas desde muito.

Que mais? Um amor que se inscreve na lógica do verbo que figura no título do romance, foder: fode-se polissemicamente, o mundo fode o amor que se fode, para o bem e para o mal, para as delícias e para a angústia.

Mais: e essa literatura que conta de um amor assim, amor que mata, morre mas se mantém, de algum modo, imorredouro, não poderia, sob o risco de não ser literatura, esquivar-se de seus próprios limites, de sua própria impossibilidade. Por que? Porque o relato a ser significativamente desdobrado confessa-se um inventário daquilo que se perdeu, daquilo que não tem lugar. 

Portanto, preparações cumpridas, ao texto, porque é texto, e à leitura.

 

O AMOR FODE, FODE-SE E VAI PARA O INFERNO

Negócios e alianças 

Mostra-se O Amor é fodido como um texto de amor logo em sua abertura. E é nessa mesma abertura (seduz o uso de um termo musical, ataque, pois o romance começa com uma espécie de staccato, surpreendendo o leitor desavisado de estevescardosianismos) que se claramente a ambiência romântica desse amor (1995(a): 9): 

Quanto mais vou sabendo de ti, mais gostaria que ainda estivesses viva. dois ou três minutos: o suficiente para te matar. Merecias uma morte mais violenta. Se eu soubesse. Não te tinha deixado suicidar com aquelas mariquices todas. Aposto que não sentiste quase nada. Não está certo. Eu não morri e sofri mais do que tu. Devias ter sofrido.

Apresentado está o tema do romance: trata-se dum amor encerrado pela morte, e o ataque inicial sugere que, mesmo a morte da amada estando consumada, resta o sofrimento do amante, o narrador, aquele que sobrevive e, desse modo, acaba por sofrer ainda mais: romanticamente, sofre-se porque a vida sem amor semelha-se à miséria mesma, e a morte a uma possível liberdade. Mas não deixa de surpreender que, em pleno fim do século XX, uma obra literária adote como norte o tema do amor-paixão, afinal o próprio tema migrou das belas-letras (e não , de quase toda a considerada grande arte) para a cultura de massas. Ressalte-se, apenas (talvez apenas) de passagem, que Miguel Esteves Cardoso é um autor de considerável êxito comercial. 

De todo modo, a constatação de que existe um novo locus, ou um novo topos para o amor-paixão, ao menos no universo da(s) linguagem(ns) artística(s), surge logo após o parágrafo recém-citado (1995(a): 9): “Quando tomaste os comprimidos sabias que estavas a safar-te. De boa. Confessa. Foi um bom negócio”. Sabe-se que na música, ao menos na “música séria” (1998: 127), para falar com Adorno, nenhuma nota é vã; do mesmo modo, na literatura nada deixa de concorrer para a composição orgânica da obra; sim, quero deixar claro o suicídio ser umbom negócio”, uma localização nada ingênua de que, nestes tempos de negociação em massa, ou de massificação da negociação, até mesmo um ato de amor pode ser... umnegócio”. 

Nada é ingênuo? Nada é ingênuo: este personagem que sobrevive à perda de sua amada, mesmo que num momento de delírio, revela (1995(a): 147): “Contei o meu dinheiro. Tinha trinta e sete mil contos e o cartão Multibanco da conta conjunta dos meus pais. Levantei mais quarenta contos com ele”. É fodido o amor, claro, mas a vida é também fodida (sim, começo aqui a exploração do multissema que é o adjetivo que comparece no titulo do romance): precisam-se de contos, precisa-se sobreviver. E como sobrevive este narrador-protagonista? Ele é, não porque haver surpresas, algo como um agente de arte (1995(a):125): “Depois, descobri que a Teresa ia abrir uma galeria de arte, financiada pelo meu único inimigo de infância, e que estava a negociar diretamente com os meus artistas, incluindo o José, de quem eu gostava sinceramente como pessoa, com o objectivo de tornar obsoletos os meus serviços de agente, intermediário e ama-seca”. Ressalto, antes de mais, que O Amor é fodido realiza-se como um rascunho dessa personagem feminina, Teresa, bússola da vida do narrador em primeira pessoa. Pois bem, este narrador que, enquanto o romance segue, descobre sucessivas faces de sua amada, e conseqüentemente de si mesmo, negocia com arte, sendo “agente” de artistas: nada é ingênuo? “gostava” ele do “José (...) como pessoa”: não como artista? Não importa tanto, pois o que importa é a explícita separação que se faz aqui: uma coisa é o artista, outra a pessoa, uma coisa é a arte, outra a vida. A arte, talvez, ainda imite a vida, mas a realidade circundante não possibilita aos indivíduos qualquer prática passional-amorosa que se lhe escape, pois nada lhe escapa, nem Teresa, nem a mulher amada: ela negocia (de novo o negócio) com José a fim de abrir uma galeria de arte, umnegócio” a partir da arte: umbom negócio”: se há um multissema, fode-se a arte por causa de um corrosivo mundo, mundano e desapaixonado mundo: mundo fodido, pois não. 

Assim (1995(a): 15),

Se soubesses como me senti quando fiz batota e não engoli os comprimidos...! Um verme. Chamaste-me muitas vezes verme, mas nunca me tinha sentido um. Via-te desfalecer ao meu lado, a noiva do nosso lindíssimo duplo suicídio, e sentia-me tão culpado que sofri muito mais do que tu. A cabeça estalava-me, o peito parecia rebentar. Pensei que ainda ia morrer duma paragem cardíaca. Imagine-se a vergonha: um duplo suicídio em que ela morre com cento e vinte comprimidos e ele de enfarte do miocárdio. A falta de simetria. Onde estaria o  romantismo?

Não estaria. Ou melhor, seduz-me pensar onomasticamente: estaria em Teresa, mas numa Teresa outra, de outros tempos, Teresa romântica que estava onde estava mesmo o romantismo: evidente, falo da principal personagem feminina de Amor de perdição, romance que se mantém, indubitavelmente, ao fundo de O Amor é fodido. Mas adio um pouco a Teresa camiliana, pois sobrevive o agente de arte, o negociante, após o bom negócio, o suicídio, que Teresa pratica. Pois isto de amantes matarem-se não é tão assim deste mundo, digo melhor, deste tempo, por exemplo, de arte em galeria e de galerias de arte: vamos ao medievo pelas confiáveis mãos de José Miguel Wisnik (1995: 195): “Tristão e Isolda é a matriz das histórias de amor em que os apaixonados se amam loucamente e morrem de amar, contra tudo e todos, contra o mundo”: se há dúvidas de que, se não romântico, certamente romantizável, romanticíssimo o texto anônimo medieval, palavra dada a, e música escrita por, Wagner: seu Tristão e Isolda, sua ópera, é decerto um dos exemplares mais românticos de que se tem notícia, mesmo porque principia uma superação, por excesso, do romantismo; mas mais Wagner seria, aqui, um demais excesso: volto ao de agora: logo, não é apenas o mundo capitalista e capitalizável que se mostra incapaz de ser palco e cenário para uma estória de amor-paixão: desde a Idade Média, por outras razões, o mundo não aceita o amor, por isso há a morte. E, saliento ainda com Wisnik, que o casamento tampouco é, enquanto condenação ao embotamento amoroso, novidade (1995: 221):

Durante muito tempo, de uma maneira que remonta às mais antigas relações entre a idéia de amor e a de casamento, o princípio da paixão se opõe ao desgarramento e à ruptura. Os teólogos da Igreja chegaram a dizer que o marido ardente, que se comporta com sua esposa como amante, trai o próprio princípio do casamento desde dentro, constituindo-se numa estranha forma de adultério (não se estranhe portanto que o amor-paixão e o casamento passional sejam figurados como antítese e transgressão do matrimônio). 

Estranha, pois, ao casamento isto que Dª Amália poderia chamar (caso lograsse um casamento passional, claro), em texto seu musicado por Alfredo Duarte, “estranha forma de vida que “vive este meu coração”: estranha porque passional, estranha cada vez mais porque cada vez mais perto da impossibilidade de transgressão este fim do século XX, que agoniza mas não morre, infelizmente. Não? Se não, vejo: assim é o casamento que se em O Amor é fodido (1995(a): 160):

Esposa má. Má de manhã à noite. Agora manhã. Dia quase. Esposa acorda. Pernas suadas a escalfar as minhas. Objectivo: enfiar a língua seca num dos meus orifícios naturais. Narinas desprevenidas, o forte dela. Tudo depende da posição em que estou a dormir. Protejo-me como posso, mas sempre uma aberta. Esposa sabe. Não havendo boca disponível, avia-se na orelha. Enche-a de cuspo e mergulha a língua na piscina que criou. Acordo de repente: sonhei que estavam a arrancar-me os cabelos.

Esposa má”, insalubre, malfadadamente deslocada, sequer tem acesso à boca que é canto (por que não seria?) e beijo. “Esposa” é “de manhã à noite”, esposa é a razão para que esteja na ordem do dia do narrador uma amante (1995(a): 164): “Amante: arranjar”, como fosse a obtenção de um mero objeto, melhor, como fosse uma obediente resposta a uma demanda, ainda na mesma ordem do dia, socialmente masculina. Cabe uma pequena digressão que conta do próprio verbo arranjar, e quem a faz é o próprio Miguel Esteves Cardoso, numa crônica de nome, precisamente, “Arranjar” (1986: 23):

Em Portugal, como todos os portugueses sabem, é muito raro conseguir seja o que for. Em contrapartida, tudo se arranja. O arranjar é hoje a versão portuguesa do conseguir. É verdade queQuem espera sempre alcança”, mas, como ninguém está para esperar, em vez de alcançar o que se quer, arranja-se outra coisa qualquer.

No fundo talvez, por não se terem as coisas que elas se têm de arranjar. Não se tem tempo, mas arranja-se. não bilhetes, mas conhece-se alguém que os arranja. Ninguém tem dinheiro, mas vai-se arranjando para o tabaco.

Perceba-se: “arranja-se” é um modo de dizer, na mirada estevescardosiana, algo como improvisa-se, no limite falseia-se, mas jamais é um modo de dizer consegue-se, logra-se. Essa amante, logo, não será um conseguimento amoroso, sequer uma fazedora, ou uma inventora, do amor, que o casamento, como sempre porém cada vez mais, opõe-se ao “princípio da paixão”: será qualquer uma, ou uma qualquer (1995(a): 164): “Uma mulher qualquer, desde que diferente. Um nome. Uma tromba. O resto deixo ao critério.” (de quem o critério? Sim, talvez sem critério, sem amor; siga a citação do ponto onde parou:) “Não quero saber. Umas boas mamas. Ou mesmo más. Um cheiro. Novos problemas. Roupa sem ser a de esposa. Mesmo suja. Não pedir muito”: é de fato fodida uma existência que tem os recém-nomeados nomes como algumas de suas melhores opções. E por falar em foda, exponha-se uma razão a mais paraAmante: arranjar” (1995(a): 161):

Finalmente vindos, tento voltar a dormir. Esposa radiante. Dia à frente. Filhos à espera. O emprego giríssimo, a fazer filmes. Abre a persiana. Esposa má. Desde quando luz necessária? Conhecêmo-nos no escuro, casámo-nos no escuro, fodemos no escuro. Sempre que desponta um raio de luz é um desastre ainda pior.

A cara dela. vista. Mais velha ainda do que se esperava. O que é que tem a luz? troca de lugar com a mãe quando amanhece.

É fundamental perceber um aspecto: esta escrita que, mesmo no universo fragmentário dum romance que se poderia subintitular, por exemplo, “Rascunho, em hipótese, de Teresa”,  vinha, até o relato das experiências casadas do narrador, fluida, ao menos no interior de cada um dos relatos, ou desabafos, do protagonista, agora sofre um breque: se em perspectiva ao quase musical staccato da abertura do romance, aqui, de algum modo, autorizo-me a ver um tema de ritmo soluçante, de andamento indefinido, um antiandante, portanto. Casar, como não?, pode ser isto: a absoluta ausência de fluidez: mesmo os fluidos (“Finalmente vindos”, finalmente tendo tido seus orgasmos) são apenas um intervalo entre uma má vigília e um sono que é escape (nada poético, assinalo) da realidade: aquilo que Bataille chama de pequena morte, o orgasmo, não fornece aos “vindos” a fusão que seria (não haverá um certo romantismo, ao menos um sotaque romântico nessa reflexão de Bataille?) uma experimentação da morte enquanto experimentação, por sua vez, da totalidade, do fim (termo, conclusão) do sujeito individuado: é cada vez mais individuado – em meio, claro, a uma realidade opressora – o narrador de O Amor é fodido.

Portanto, não é nadaestranha” ao casamento, tanto no sentido histórico das “antigas relações que Wisnik expõe, como no sentido hodierno, a “forma de vida que adota o angustiado e desesperançado protagonista do romance de Miguel Esteves Cardoso. Mesmo porque o sexo feito com Teresa é de benfazeja memória, mesmo depois da morte da amada, mesmo em tempos de melancolia (1995(a): 48):

me lembro do sexo. É a única memória que pode ter utilidade póstuma. Durante todos os anos em que estivemos separados, devo ter batido uma média de cinco punhetas por cada foda que demos. As que me dão mais tesão são as que lhe deram mais tesão a ela. Ela diz o mesmo de mim. Deve ser a única coisa em que sou moderno. Não nada mais desinteressante que o meu próprio tesão, sobre o qual não tenho mão, por assim dizer.

É isto: à pequena morte totalizante do indivíduo amante sucedem-se “punhetas”, sucedem-se práticas de acentuado caráter individuado. Mas talvez seja o próprio mundo das galerias de arte, mundo este visto e vivido por um agente de arte, ou seja, um negociante (que descobre, sem embargo, que seunegócio” é ruim, pois segue vivendo, e vivendo sem amor), que, de tão incrustado que está neste mesmo homem, o impede de escapar, fugir, morrer a pequena e, romanticamente, a grande morte (1995(a): 56): “Chegaste” (o tu, claro, é Teresa) “a dizer uma vez: ‘ Tens de escolher entre mim e o mundo’. Foi a primeira vez que percebi que se podia separar mentalmente as duas coisas. Ia morrendo de medo. E fugi”. Fugiu, diga-se de passagem, para dentro o narrador, mas não para dentro de si ou de seu amor, o que encerraria um escape do mundo: fugiu ele para dentro do mesmo mundo que o circunda e oprime, que faz dele um agente não apenas de artistas, mas também, e sobretudo, dos valores mesmos que o impedem de amar, que o impediram de suicidar-se. Opta, enfim, o narrador-protagonista pela fraqueza, se leio com Nietzsche não uma reflexão sobre o amor, mas sim sobre a multidão, logo sobre o mundo em seu sentido, evidentemente, mais mundano (1999: 33): “Todo homem seleto procura instintivamente seu castelo e seu retiro, onde esteja salvo do grande número, da maioria, da multidão; onde possa esquecer a regrahomem’, enquanto exceção a ela”. Num desdobramento talvez desmedido (o que me permito, pois descomedimento, ou desmedimento, não é uma idéia com a qual Nietzsche antipatizaria), por que não ver o “homem seleto como aquele que consegue viver o amor, longe da “multidão”, retirado para vivenciar seqüências de pequenas mortes? Desdobro assim porque este mundo que impede o amor exige, por ser o que é, que o ser amante seja, efetivamente, “seleto”, distinto, peculiar, capaz de “esquecer a regrahomem’” por ser exceção a ela, por ser exceção.

Por isso o suicídio dos amantes: por que o casamento os mataria, não concretamente, mas em vida, o que pode ser a mais terrível maneira de se morrer (1995(a): 19):

Maneira que víamo-nos todos os dias e noites e ai de quem se ausentasse durante um segundo, ou alugasse um vídeo sem o outro saber, ou tivesse o telefone interrompido. Foi um amor enorme. E tinha de acabar mal. De preferência, com a nossa própria morte.

Não aguento mais viver assim. Eu amo-te de mais.”

“É doentio. Eu também.”
“Vamos casar.”
Mais valia morrer.”
“Estás a falar a sério?”
“Alguma vez me viste brincar?”

]“Víamo-nos todos os dias”, mas numa realidade que é doentia  porque se opõe a certos ditames que sugerem a não adoção deste tipo de amor, desta “estranha forma de vida”. O casamento é, sim, a morte, a morte do amor-paixão, e isso é um bom pré-texto para que, afinal, se cumpra a prometida convocação da outra Teresa das letras portuguesas e do outro amor que se perde, este no século XIX.

Amou, perdeu-se e nem morrer pôde

Amor de perdição é, sem dúvida, um incontornável marco na linhagem portuguesa das estórias de amor. Sua peculiaridade principia na peculiaridade que é própria de seu autor, e quem a enxerga de modo precioso é Eduardo Lourenço (1993: 219):

A situação de Camilo Castelo Branco na nossa própria perspectiva de portugueses é bastante singular. Falo da sua situação histórica e da sua situação no interior da evolução das formas e ficção no século XIX. Em todas as épocas, pode sempre dizer-se de alguém que ele é um homem entre dois mundos. Mas pensamos, com todos aqueles que se debruçaram sobre o destino literário de Camilo, que essa caracterização convém de maneira particular ao autor do Amor de perdição.

Por que estehomem entre dois mundos” é um particularhomem entre dois mundos”? Talvez por sua recusa do próprio destino português que se cristalizava, de modo tortuosamente liberal, em seu tempo: o único projeto possível era, sem dúvida, o pessoal, e nisso o amor cumpria papel protagonista, talvez o único. Claro está que aproximo o amor camiliano do estevescardosiano a partir logo do suicídio que abre O Amor é fodido e que encerra Amor de perdição. Em ambos os casos o(s) mundo(s) circundante(s) não era(m) capaz(es) de servir de cenário à própria experiência do amor-paixão, ao amor mesmo. No caso camiliano, as questões envolviam shakespereanas honras de família, sendo que honra, na mirada do autor que se mete, por vezes, romanticamente, a tomar a pena de seu narrador em terceira pessoa, é outra coisa. Não me parece demasiado dar um exemplo de como a honra poderia ser um valor para Camilo Castelo Branco, e desta vez quem a defende, situando-a, não é o narrador num momento em que se torna alter ego do autor, mas um personagem, desembargador que invalida o pedido do pai de Teresa, Tadeu de Albuquerque, de que Simão, o amado da moça, seja executado (2002: 131):

Se vossa senhoria tivesse consentido que sua filha amasse Simão Botelho Castelo Branco, teria poupado a vida ao homem sem honra que se lhe atravessou com insultos e ofensas corporais de tal afronta, que desonrado ficaria Simão se as não repelisse como homem de alma e brios. Se vossa senhoria se não tivesse oposto às honestíssimas e inocentes afeiçoes de sua filha, a justiça não teria mandado arvorar uma forca, nem a vida de seu sobrinho teria sido imolada aos seus caprichos de mau pai. E, se sua filha casasse com o filho do corregedor de Viseu, pensa acaso vossa senhoria que os seus brasões sofriam desdouro? Não sei de que século data a nobreza do senhor Tadeu de Albuquerque, mas do brasão de D. Rita Margarida Preciosa Caldeirão Castelo Branco posso dar-lhe informações sobre as páginas das mais verídicas e ilustres genealogias do reino. Por parte de seu pai, Simão Botelho tem do melhor sangue de Trás-os-Montes, e não se temerá de entrar em competências com o dos Albuquerques de Viseu, que não é de certo o dos Albuquerques terríveis de que reza Luís de Camões...

Pronto: se não deixa de passar pela família – e seus antepassados e seus brasões – a idéia de honra que se presentifica em Amor de perdição, esta é uma questão que vai além, muito além: a fala do desembargador é explícita, pois honrados são os jovens que se amam, honrado seria esse casamento e o equívoco reside naquele que impetra a proibição.

Mas o casamento não se realiza, realiza-se, por outro lado, um termo trágico. E se há tragicidade no romance de Camilo Castelo Branco, há, evidentemente, a idéia de destino ali: por que não, portanto, pensar em um amor como o que uniria Teresa a Simão como um amor impossível, não no sentido a que o senso comum arremessou esse termo, mas sim como uma impossibilidade mesma  na medida em que o mundo ressalto, qualquer mundo – é incapaz de aceitá-lo, de com ele conviver? Por isso o lugar da vivência deste amor poderá ser o céu, um extramundo; é Teresa quem escreve (2002: 162): “Morrerei, Simão, morrerei. Perdoa tu ao meu destino... Perdi-te... Bem sabes que sorte eu queria dar-te... e morro, porque não posso, nem poderei jamais resgatar-te. (...) Estou tranqüila. Vejo a aurora da paz... Adeus, até ao céu, Simão”. 

Por tudo isso, não é menos que decisiva a escolha de epígrafe ao ensaio laurentino aqui citado: “Situação de Camilo” tem como a primeira das duas epígrafes (a segunda cita Amor de perdição) uma afirmação de Roland Barthes (1993: 219): “...quel Lucifer a créé en même temps l’amour e la mort”: não preciso clarificar que não existem idéias claramente satanistas nem em Camilo Castelo Branco nem em Miguel Esteves Cardoso, nenhum dos dois se chama, por exemplo, Fradique Mendes. É com o auxílio de Herberto Helder que posso compreender a dimensão desse “Lucifer” que Lourenço põe, via Roland Barthes, de braços dados a Camilo: e compreendo por Herberto Helder esse “Lucifer” ao compreender o Deus que figura em Os Selos, poema-livro herbertiano de 1990 (1996: 549): 

Será que Deus não consegue compreender a linguagem dos artesãos?
Nem música nem cantaria.
Foi-se ver no livro: de um certo ponto de vista de:
terror sentido beleza
acontecera sempre o mesmo – quebram-se os selos aparecem
os prodígios

O Deus, claro, quenão consegue compreender a linguagem dos artesãos”, Deus opressor, não deixa de ser um modo de falar naquilo que o mundo tem de opressor, de regra, de valor estanque e proibitivo: “o marido ardente, que se comporta com sua esposa como amante,” não “trai o próprio princípio do casamento desde dentro”? Assim sendo, casar é Deus (ao menos este Deus, “Nem música nem cantaria”, Deus cujosprodígios que “aparecem” não são da ordem do amor-paixão), amar é Lúcifer.

Neste sentido, o céu de Teresa e Simão, claro, luciferino, convida, por sua vez, aquele que nomeou Lúcifer pela primeira vez na literatura: John Milton, o cego que, em 1667, publicou Lost Paradise. Ainda que por vias tortas, nada impede de ver em Lúcifer (ao menos no Lúcifer visto por Lourenço na dicção de Camilo) a figura que, afastada do Deus incapaz de “compreender a linguagem dos artesãos”, possibilita que o céu dos amantes da novela camiliana seja um paraíso achado após a perdição de uma moral que muito bem se pode exemplificar pela conduta próxima do ridículo de Tadeu de Albuquerque.

E é nesse terreno que se move o amor fodido de João e Teresa no romance de Miguel Esteves Cardoso: como desobediência. Mas os tempos de agora são outros, e o mundo recrudesce seus impedimentos: na época do “negócio”, bom ou mau, o casamento segue sendo a domesticação do amor, a impossibilidade de se vivenciá-lo apaixonadamente, e dá-se a radicalização dessa condição, pois nunca foi tão necessária ao mundo a manutenção de uma ordem burguesa que se modifica em termos, mas se mantém em essência desde antes mesmo dos tempos vistos de modo tão agudo e incontornável por Herbert Marcuse (1972: 54): “O princípio de prazer foi destronado não porque militava contra o progresso na civilização, mas também porque militava contra a civilização cujo progresso perpetua a dominação e o trabalho esforçado e penoso”: civilização aqui, prazer acolá, civilização capitalista aqui, prazer? de for o do domesticado e retro-alimentador exercício da compra, do consumo.

Desse modo, cabe tratar de outra das hipóteses de estória que se conta em O Amor é fodido: Teresa não se suicidou romanticamente, como o fez sua homônima do Amor de perdição, mas sim se suicidou em vida, casando-se com outro que não seu amado João. E é o marido quem condena amada e amante à imobilidade física, baleando-os ao flagrá-los juntos (1995(a): 87):

É graças a ela que sou hoje um inválido por falta de pontaria. Uma bala fodeu-me a neurologia toda da cintura para baixo. A segunda, que se supunha fatal, apanhou-me de raspão, no lombo, e foi alojar-se na espinal-medula de Teresa, que estava, obviamente, agachada atrás de mim, a gritar “Bernardo! Imploro-te!” tal o instinto cego de me proteger da ira do marido. Não me façam rir, que me dói. Mal entrou o marido com a pistola, colou-se-me às costas como um súcubo, com as unhas afiadas a fincar-me a carne. Um salto olímpico. Eu sem medo nenhum.

Claro está: é o marido, metonímia do casamento, que mata o amor bem fodido de Teresa e João, e fode-o no mais desgraçado dos sentidos. Mata até mesmo a possibilidade do suicídio duplo, arremessando os amantes à condenação da invalidez. E é essa invalidez que decretará, indiscutivelmente, a falência da possibilidade de o amor seguir sendo bem fodido, seguir sendo amor-paixão: quem fala é o médico (1995(a): 105):

Quando acordei, o cirurgião que nos “operou” informou-me que o sexo e a motricidade não são tudo na vida. “Quer dizer, senhor doutor”, disse eu deliciando-me com a sina que vinha a caminho, “que nunca mais vou poder fazer amor...?” O cirurgião, que tinha outros doentes para ver, respondeu “Fazer amor, pode fazer à vontade – esqueça é o tesão e o foder.”

Enfim, fica evidente que o mundo não simpatiza muito com o amor fodido, estabelecendo uma dicotomia insuportável para quem ama eroticamente: de um lado a paixão, território da foda, do sexo, do tesão; do outro o amor, território de outras coisas que não a foda, o sexo, o tesão.

É por essas e outras que não surpreende ser Miguel Esteves Cardoso o autor de uma crônica intitulada “Em nome do amor puro” (1995(b): 101):

Hoje em dia as pessoas apaixonam-se por uma questão prática. Porque jeito. Porque são colegas e estão ali mesmo ao lado. Porque se dão bem e não se chateiam muito. Porque faz sentido. Porque é mais barato. Por causa da calça. Por causa da cama. Por causa das cuecas e das calças e das contas da lavanderia.

Hoje em dia as pessoas fazem contratos pré-nupciais, discutem tudo de antemão, fazem planos e à mínima merdinha entram “em diálogo”.

Sim, é esta a prática mais freqüente neste mundo que impede a concretização do camiliano suicídio que se em O Amor é fodido; é esta a realidade dos neo-amantes, incapazes, por um lado, da colagem do amor na paixão e da paixão no amor, por outro daquilo que Miguel Esteves Cardoso comenta mais à frente na mesma crônica (1995(b): 102):

ninguém se apaixona? ninguém aceita a paixão pura, a saudade sem fim, a tristeza, o medo, o desequilíbrio, o custo, o amor, a doença que é como um cancro a comer-nos o coração e que nos canta no peito ao mesmo tempo?

O amor é uma coisa, a vida é outra. O amor não é para ser uma ajudinha. Não é para ser o alívio, o repouso, o intervalo, a pancadinha nas costas, a pausa que refresca, o pronto-socorro da tortuosa estrada da vida, o nosso “dá um jeitinho” sentimental.

“O amor é uma coisa, a vida é outra”: o amor que se nega a ser impuro, não saudoso, finito em sua própria ambição, destemido, equilibrado, não custoso e são, não pode ser amor; em contrapartida, esse é o amor que tem lugar hodiernamente, amor prático, amor-pancadinha-nas-costas, amor sem amor, portanto. Por isso os que se recusam ao neo-amantismo, Teresa e João, têm a falência como destino, pois sequer o suicídio duplo que consagra Teresa e Simão está acessível nestes tempos de agora: “Onde estaria o romantismo?” Não estaria, esta é uma etapa vencida da humanidade, irresgatável, irrecuperável: morta. Não creio ser demasiado citar um agoniado poema de Joaquim Manuel Magalhães, presente em Alta noite em alta fraga, cuja amantíssima vocação é uma detecção de morte (2001: 45-46-47):

Tudo o que se diz ou faz
sem o amor ter chegado ou porque partiu
é um trabalho desconjunto
pronto para a saliva do arrependimento.
A qual em massa com cada regra esquecida
nada consegue nunca vedar. 
(...) 
Mas entenderei depois que na madrugada
o pavor não queira senão entender
a sabedoria fantasma das glândulas
que tanto assusta quando a alba tarda em rompem;
e depois de vinda nos obriga a agir
com os lençóis pousados na cabeça
à espera da dissolução e do porvir.
Com tanto túmulo para visitar. 

O amor, neste poema, não está, não é: “sem (...) ter chegado” é uma das possibilidades, “partiu” é outra. E, numa liberdade de leitura, posso supor quecada regra esquecida” é aquilo que se buscou superar para a concretização em vida dum tipo de amor que não se cristaliza “Por causa da calça”, mas sim como um efetivoamor puro”. O que sobra dessa realidade massacrante e antiafetiva é, enfim, “tanto túmulo para visitar”, mortos sem que ao amante que canta, ao sujeito lírico, seja possível ocupar o mesmo túmulo, ou, ao menos, um adjacente que permita aquilo que restou a Simão e Teresa, aquilo que pôde, enfim, ser vivido por Pedro e Inês num poético além-mundo. Assim, cabe que se feche este capítulo com um novo Herberto Helder, que modifica a história e a estória de amor entre Pedro e Inês para situar, miltonianamente, camilianamente, e, por que não?, estevescardosianamente, o amor como da ordem do demoníaco: diz o assassino de Inês, narrador do contoTeorema” (1997: 119): “Matei por amor do amor – e isso é do espírito demoníaco”: também o seriam Teresa e João, pena que seu mundo não lhos permita.

 

ALGUMAS LETRAS MORTAS 

(Re)começo com Kafka, sempre um modo fascinante de se começar (Apud Manguel, 1997: 113): 

No fim das contas, penso que devemos ler somente livros que nos mordam e piquem. Se o livro que estamos lendo não nos sacode e acorda como um golpe no crânio, por que nos darmos ao trabalho de lê-lo? Para que nos faça feliz (...)? Meu Deus, seríamos felizes da mesma forma se não tivéssemos livros. Livros que nos façam felizes, em caso de necessidade, poderíamos escrevê-los nós mesmos. Precisamos é de livros que nos atinjam como o pior dos infortúnios, como a morte de alguém que amamos mais do que a nós mesmos, que nos façam sentir como se tivéssemos sido banidos para a floresta, longe de qualquer presença humana, como um suicídio. Um livro tem de ser um machado para o mar gelado de dentro de nós. É nisso que acredito. 

Um problema, talvez, se levante a partir de tal kafkiana afirmação presentificar-se num estudo que se debruça sobre um autor: 1- que tem, como afirmei, êxito comercial; 2- conhecido, entre outros aspectos, pelo humor: assim, que relação pode haver entre o tipo de livro que nos atinge como “o pior dos infortúnios” e um autor que vende? Que relação pode haver entre o livro que “tem de ser um machado para o mar gelado dentro de nós” e o humor, marca de Miguel Esteves Cardoso?

Antes de mais, creio ser importante salientar que o êxito comercial de um autor por vezes não se explica de modo auto-evidente: se há autores que vendem porque se propõem a isto, porque praticam uma escrita (?) que ocupa certas lacunas abertas pelo mercado (?), este não será, decerto, o caso de Miguel Esteves Cardoso. A explicação para o sucesso comercial estevescardosiano talvez esteja no fato de que este autor é figura presente na grande mídia, sobretudo em jornais e na televisão. Assim sendo, o público (?) pode querer comprar o livro daquele indivíduo que viu na televisão, que leu no jornal: simples assim? Não, mas é uma suspeita.

Ademais, sempre cumpre referir, em reflexões assim, o episódio que cerca o êxito avassalador de O Nome da rosa: pesquisou-se, entre diversos compradores do livro, quais o tinham, efetivamente, lido; resultado: poucos, muito poucos. No caso do romance de Umberto Eco, sua venda foi catapultada, claro, pelo fato de ter havido um filme que adaptou para o cinema essa estória. Mas ler? Poucos leram. Por que não supor que algo assim possa ocorrer também com as publicações de Miguel Esteves Cardoso? Na sociedade de consumo, a compra tornou-se uma atividade que ganhou autonomia em si mesma: não é mais necessário que se use o que se comprou, pois o ato da compra tende a encerrar-se em si mesmo. Existe, portanto, uma nova configuração daquilo que Marx, em outro mundo, chamou de “valor de uso”. Assim, compra-se o livro, adquire-se um objeto, mas não se o , não se lhe vida.

Desse modo, nada há de contraditório entre o sucesso comercial de Miguel Esteves Cardoso e seu caráter mordedor, picador. Quanto ao humor, não como negar ser esta uma das características não apenas da crônica estevescardosiana, mas também de O Amor é fodido; se não, vejamos (1995(a): 10):

“Adoro matar animais de todas as espécies.” Era o género de frase que me apaixonava. Uma vez estávamos a jantar e disseste “Se pudesse, matava um panda.” “Como?” Matava-o com uma pedrada.” “O que é que tens contra os pandas?” “Odeio animais amorosos.” Pensei que estivesses a defender os animais que não têm a sorte de ser giros ou de estar à beira da extinção, que vivem em condições atrozes, sem serem tema de documentários ingleses ou logotipos de organizações mundiais. Como os frangos. Pensei que a tua atitude contra os tigres era uma cruzada a favor das ratazanas. Mas enganaste-me. 

O humor, aqui, verifica-se não apenas no absurdo do diálogo que se trava entre Teresa e João, que conversam, enquanto jantam, acerca de assassínio de animais, mas também na seqüência exemplar que o narrador empreende, que causa surpresa na medida em que não é habitual que se vejam defesas entusiasmadas de “frangos ou ratazanas. De todo modo, é um humor que morde e pica a partir mesmo de seu tema, o assassínio. E é assim que se constrói o humor em todo o romance, sempre com afiados dentes, sempre com ferrões.

Vencidas, enfim, as aparentes contradições entre Miguel Esteves Cardoso e o Kafka citado, que se verifique também a infelicidade que O Amor é fodido pratica, num movimento que extrapola a mera estória contada (plena, se sabe, de algo como “o pior dos infortúnios”) para chegar ao infortúnio mesmo que é a prática literária, pois o romance confessa-se como um inventário do que se viveu (1995(a): 25-26):

Acordo às cinco da tarde e o meu dia, sem que eu deixe, começou – as páginas felizes por ficarem brancas, as pessoas aliviadas por eu não lhes falar. Um dia o meu dia há-de ter um atalho à minha beira, um caminho por onde eu possa seguir mas duvido.

Sou um eremita. Tornaste-me num perito da saudade. Não posso estar contigo. Não consigo viver. Sou impróprio para consumo um incomestível peixe grande, fora do seu habitat, que nem sequer se conhece. Serei um lembrador, uma conservatória, com os meus assentos de mortes e nascimentos. Tenho jeito para recordar – é a única coisa que me resta fazer desde que nasci. Tive sempre consciência que os momentos e as experiências eram matérias-primas, primeiros passos – os únicos.

Serei o teu lembrador, quem te lembra, quem te aproxima de quem eras. Não falarei com ninguém, mas ai de quem vier falar comigo. Hei-de chatear toda a gente com a tua pessoa. Ai, as histórias que vou contar, nunca mais acabarão, serão feitas de coisas simples, como cafés e cinemas, nada de íntimo ou de interessante, banalidades, daquelas que dão cabo de mim, que não consigo esquecer por mais uma – meu Deus, como vou chorar! Ninguém se poderá ir embora. Vai ser uma tortura. É bem feito, para não se meterem com que não foi feito para viver. 

“Sou um eremita”: a realidade deste narrador que amou, perdeu-se e sequer teve o direito de morrer amando é esta, fria, solitária. Resta-lhe a escrita, o relato que busca rascunhar Teresa, ou melhor, a sua Teresa, a Teresa agora possível: restam, para falar com Luís Miguel Nava (1994: 9), “do extinto amor os ecos”, aquilo que escrita, em sua impossibilidade de ser o vivido, pode ainda ecoar. Talvez por uma ânsia de vida, as “páginas” encontram-se “felizes antes de serem ocupadas por um relato desafortunado no que conta e desafortunado pelo mero fato de existir, pois sua existência é o inequívoco sinal de que nada mais há a ser vivido: “Ninguém se poderá ir embora. Vai ser uma tortura ler este relato que é ummachado”, “um golpe no crânio”, pois quem o escreve “não foi feito para viver”, não pode viver, renunciou como o sujeito lírico de um dos mais notáveis poemas de Mário de Sá-Carneiro (1995: 126): “Nada a fazer, minha rica. O menino dorme. Tudo o mais acabou.”: o verso final de “Caranguejola” revela que, do mesmo modo que no caso do narrador de O Amor é fodido, a vida “acabou” para que pudesse ter lugar o texto escrito.

E o desespero desta escrita não se dá apenas se a hipótese considerada for a do suicídio de Teresa: se estiverem os amantes inválidos num sanatório, tudo fica ainda mais desesperador pois, neste caso, o corpo será substituído por palavras, a prática do amor bem fodido dará lugar a uma espécie de masturbação oral (não, claro, no sentido do uso bucal para o sexo, mas no sentido da simples fala) (1995(a): 130):

No sanatório falamos incessantemente de fazer amor. Inventamos as nossas vidas anteriores. Como não podemos ter vinte anos, somos porcos mais uma vez.
“Lembras-te das nossas conversas de ir ao cu?”
“Vamos ter uma. Aqui no lar. Começa tu.”
Queres no rabo, não queres?”
Típico.
Não não sejas porco.”
Tu é que és porca. Dás-me o teu rabo para eu lamber.”
Gosto que me lambas ...”
“Gostas?”
“E eu abria as nádegas, mostrando o buraco do rabo, para te dar acesso.”
Obrigado.”
“É tão porco!”, diz ela.
Confusão de pessoas.
Nunca vi uma mulher abrir-se assim...”
Não digas isso!”
“Abre-te mais, para te lamber o olho do cu.”

Resultado: o amor deixa de ser fodido para ser falado, a foda não se concretiza senão no discurso, e a literatura não deixa de ser uma possibilidade, ainda que a mais nervosa, ainda que a mais transgressora, ainda que a mais vital, de discurso: words, words, words, parole, parole, parole: nada de amor se faz num dos caminhos de leitura do romance estevescardosiano, e a própria escritura deste texto é a prova mais cabal do fracasso, da perda,da necessidade de se inventariar um passado que é perdido. 

E o encerramento de O Amor é fodido, melancólico, renunciante, encerra também esta reflexão, pois confessa ele mesmo a morte, triste, que vitima o narrador, sobretudo naquilo que ele possui de mais simbolicamente amoroso, o coração: cito inteiro o último capítulo do romance (1995(a): 187), que acaba sem o mais remoto fio de esperança, e se encaminha, indubitavelmente, para “o mar gelado dentro de nós”: 

Falamos de fazer amor. Inventamos as nossas vidas anteriores. Esquecêmo-nos de tudo.
A Teresa é o meu amor. Eu sou o amor dela. Damos as mãos. Não fazemos mais nada. Mas não reparamos. Não vamos a lado nenhum. Não podemos. Não fazemos planos. Não temos. Estamos juntos de vez em quando. É a única coisa com que nos importamos: estarmos juntos de vez em quando, como agora estamos.
Dois velhos ou nem dois velhos sequer. São nove horas da noite. Cada um no seu quarto. Ela não me ama como eu a amo.
Mas eu também não a amo como amei. Mas falamos como se nos amassemos mais que nunca. Nada mais é importante. Nove horas da noite. Ninguém.
O meu coração morre sozinho, como Deus quiser.


AFINAL

Não sei se ainda vem ao caso a discussão do cabimento de se estudar academicamente um autor como Miguel Esteves Cardoso, o autor Miguel Esteves Cardoso. Um dos meus alvos no presente escrito foi este, alvo que tentei atingir enviesadamente, através de uma leitura que se pretendeu, enfim, leitura.

Mas cabe uma observação final, cabe a insistência na espécie de tom menor que O Amor é fodido assume e que contraria não apenas os preconceitos que se possam ter em relação ao romance, mas também a própria idéia de que um autor comercialmente exitoso é, necessariamente, praticante duma literatura desprezível: não é verdade, mesmo porque o mercado (?) não é tão legível assim, não é tão claro assim; se o fosse, muitas das angústias que tomam o indivíduo situado em alguma periferia mercadológica não existiriam. 

Assim, afirmo: que se leia Miguel Esteves Cardoso como se dever ler: com olhos situacionais, claro, pois a literatura é um organismo interminável e interminavelmente auto-referencial. Mas, também, que se leia Miguel Esteves Cardoso com a contemporaneidade que merece um autor que se debate, apesar de tudo, com um tempo que, se não o oprime, é graças, talvez, a algum tipo de sorte, algum tipo de estrela, algum tipo de benfazeja coincidência. 

Apesar de tudo, encerram-se os trabalhos com palavras do próprio autor (2001: 277), que, repito, aqui fiz uma leitura, e leituras são falíveis, ou melhor, abertas: logo, “no entanto, pode não ser bem assim...”.

 

NOTAS 

(*) Professor Substituto de Literatura Portuguesa da UFRJ, Mestre em Doutorando em Literatura Portuguesa pela UFRJ, músico e compositor, autor, em parceria com Marcelo Gargaglione, do disco na mesma situação de blake, lançado em 2005.

 

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