A interlíngua de Atrás da Catedral de Ruão

Luciana Salgado(*)

Que faz isso aqui? Isso serve para ser observado.
Só para ser visto, só se passa isso. Aqui dá muito disso.

Aqui é a zona disso. Agora se alguém desconfiar, ninguém duvide.
Isso muda muito.


Paulo Leminski, Catatau – um romance-idéia.

Introdução

Este artigo reúne observações sobre um conto de Mário de Andrade baseadas no conceito de interlíngua. Na verdade, nasceu como um exercício que proporia em aula para despertar uma reflexão sobre a língua. Os debates atuais são muitos, as vertentes de estudos da língua e da linguagem se desenvolveram ao longo do século XX, se multiplicaram, se multifacetaram, se interpenetraram e, enfim, há um universo riquíssimo de especulações e pesquisas. Era como um convite à aproximação desse universo que eu preparava esta leitura.

Assim, estabeleci uma concepção fundamental sobre a qual, depois, poderíamos alçar outros vôos, teóricos e analíticos: o conceito de interlíngua desenvolvido por Dominique Maingueneau (2002).

Maingueneau é um autor bastante conhecido dos analistas de discurso, especialmente os de orientação francesa, e sua obra, se muito bem recebida por tantos, é rechaçada por outros, que vêem algumas de suas propostas como muito próximas das questões pragmáticas e da análise da conversação, consideradas incompatíveis com o quadro da chamada AD – a Análise de Discurso de linha francesa, ligada a Michel Pêcheux. Seja como for, é um autor inspirado, em torno do qual se desdobram polêmicas e, principalmente, muito exercício analítico.

Aos interessados em um aprofundamento, remeto a seu livro Gênese dos Discursos (2005; o original é de 1984) e ao Dicionário de Análise do Discurso (2004), organizado por Charaudeau e Maingueneau. Mas, para prosseguir nestas reflexões, penso que seja suficiente apresentar uma noção fundamental desse quadro teórico: os discursos são sistemas de restrições semânticas (de condicionamentos dos sentidos) indissociáveis das práticas sócio-históricas. As práticas discursivas estão indissociavelmente ligadas a outras práticas e desse modo delimitam os dizeres certos discursos podem e devem dizer certas coisas de certas maneiras, e não podem ou não devem dizer outras, ou valerem-se de outras maneiras de dizer, sob pena de se diluírem ou se desfigurarem.

Evidentemente, embora delineadas por regularidades semânticas, ligadas aos temas de que tratam e ao modo como os tratam, as práticas discursivas não são monolíticas e uniformes; sua heterogeneidade é constitutiva: as práticas discursivas delimitam-se no encontro, no confronto com outras práticas discursivas, e é dessa dinâmica que relevam os discursos. No interdiscurso, dizeres contemporâneos, que se compõem irredutivelmente também de suas historicidades, tocam-se, contagiam-se, repelem-se, distorcem-se, interpenetram-se. Na interlocução discursiva, no convívio e no conflito entre discursos, deslocam-se (ou pelo menos movimentam-se) as balizas semânticas dos dizeres.

Um dos atuais desdobramentos teóricos das questões relativas à produção dos sentidos na AD é a proposta de uma semântica global (de Dominique Maingueneau, em Gênese dos Discursos, 1984), que procura refletir sobre os efeitos de sentido em diversas instâncias de sua constituição, considerando as condições de produção dos discursos e também uma certa circunstância mais imediata, uma cenografia(1) em que se dão as enunciações e, assim, as manifestações dos discursos.

Essa instanciação analítica é uma possibilidade de discriminar elementos entretecidos, constituintes de uma totalidade construída interdiscursivamente. Neste trabalho, apresento um percurso que se desenha com base em uma dessas instâncias, a interlíngua. Percorro um conto de Mário de Andrade ("Atrás da Catedral de Ruão") em que podemos observar que a tessitura de certos códigos linguageiros produz certos sentidos e é, dessa maneira, constitutiva desse dizer. Noutros termos: é essa tessitura, e nenhuma outra, a que constitui esse dizer, seus sentidos.

 

Considerações sobre interlíngua 

Desde Genèses du discours (1984), Maingueneau vem formulando uma noção de interlíngua que, ultrapassando as noções correntes de intertextualidade e de interdiscurso, articula os códigos linguageiros à semântica global das enunciações. Em artigo recente, o autor propõe um paradoxo constitutivo: "é por seu próprio enunciado que um fiador deve legitimar sua maneira de dizer" (2002:s/p). 

Nesse trabalho, Maingueneau discute intertextualidade nos seguintes termos: vivendo hoje seu auge como objeto de estudo, a formulação do conceito parece coincidir com a "morte do autor" e, desde os anos 1960, difundiu-se em interpretações diversas, sendo que a muitas delas não interessa o que para a análise do discurso de linha francesa é crucial: a convivência (ou co-ocorrência) de textualizações (de discursos) que se regulam umas às outras, constitutivamente. 

Esse primado do interdiscurso implica uma intensa dinâmica de tessitura dos discursos, sempre em relação uns com os outros, sempre balizados por cenografias. Nesse contexto, a noção de interlíngua propõe considerar que não um uso (ou usos) d´"a" língua. A norma culta ou a norma padrão, aquilo que se considera default ou o que se define como idioma oficial não é algo à disposição de usuários que, tomando essa referência, podem desdobrá-la conforme suas necessidades, habilidades ou genialidades; a língua não é exterior e posterior à formulação de um algo a dizer: ela é constitutiva da formulação dos dizeres. 

Segundo Maingueneau, "em todo posicionamento, ao lado de investimentos em tais ou tais gêneros do interdiscurso, há também o investimento da interlíngua, por meio do qual uma obra se inscreve no espaço das práticas linguageiras e dos idiomas. Trata-se de um duplo investimento: entrada num espaço que se pretende ocupar e atribuição de valor" (2002:s/p). Assim é que podemos entender que a interlíngua supõe as línguas dos textos, melhor seria dizer das textualizações, que põem em relevo certos sentidos, certas possibilidades de leitura (de co-enunciação) e uma corporeidade que advém delas ao mesmo tempo que as forja. 

Os textos literários, entre outros, parecem ter uma textura propícia à verificação desse investimento da interlíngua; em seu trabalho, um escritor "não é confrontado com a língua, mas com uma interação de línguas e de usos" (1995: 104), seu dizer é tecido sempre numa dada conjuntura em que se entrecruzam as relações "entre as variedades de uma mesma língua, mas também entre essa língua e as outras, passadas e contemporâneas" (1995:104). Desse modo, ele trabalha uma língua numa língua, "escava um hiato irredutível com relação à língua materna" (1995:105), trafegando entre as perilínguas, fronteiras delineáveis apenas como funções. Uma delas, a infralíngua (ou hipolíngua) – uma pretendida "origem", difusa, uma espécie de instância primeva, personalizante; a outra, a supralíngua (ou hiperlíngua) – numa direção inversa, uma utópica representação ideal do pensamento, suposta estabilidade racional e transparente dos sentidos em uma língua, institucionalizante (2002:s/p). 

Assim, escavar um hiato, que é o próprio enunciar, não é buscar adequação formal para um enunciável prévio; o enunciar participa da semântica global do enunciado, constitui seu modo de coesão, que, constituído talvez até por elementos indiscrimináveis, trama-se não por haver uma costura de elementos lingüísticos específicos, com função predeterminada, mas pela força de uma energeia (2005a:102), uma totalidade da qual relevam os sentidos, sempre negociados, de algum modo, entre interlocutores – co-enunciadores: sujeitos históricos, heterogêneos, constitutivamente dialógicos, que textualizam certos discursos em certos códigos linguageiros.

 

Código linguageiro no conto Atrás da Catedral de Ruão(2) 

Antes de mais nada, com base no corpo teórico desenvolvido por Maingueneau, é possível propor que o texto literário se caracteriza por ser textualização de um discurso constituinte – o discurso literário.

Assim como o discurso filosófico ou o religioso, por exemplo, enuncia-se como se nada houvesse para além de si mesmo. Ainda que o discurso literário recorra à sociologia, à psicologia, à filosofia..., configura-se como uma instância-limite, pois cria um mundo cujas fronteiras ele mesmo estabelece em seu curso, de modo que seja impossível dizer de onde ele vem. Ele não vem: instaura-se como dizer último e primeiro. "Os discursos constituintes têm efetivamente um estatuto singular: são zonas de palavras entre outras e palavras que se pretendem marquise de todas as outras. Sendo discursos-limites, localizados num limite e tratando do limite, devem gerar textualmente os paradoxos que seu estatuto implica. Com eles, colocam-se, em toda sua acuidade, as questões relativas ao carisma, à Encarnação, à delegação ao Absoluto: para autorizarem-se por si mesmos, devem apresentar-se como ligados a uma Fonte legitimadora." (1999:46).

Mas, posto que algo sempre fala antes e alhures, e que a interatividade basilar dos discursos é irrevogável (2002:s/p), os discursos constituintes não são propriamente fundantes, mas são discursos que se apresentam como fundantes.

Pois bem, "Atrás da Catedral de Ruão" é um texto literário, é textualização de um discurso literário. Sobre essa condição, pensando em termos de discursividade, podemos dizer que institui um modo de dizer que requer uma interlíngua específica (um código linguageiro específico), mas não firma, com isso, um padrão; antes, provoca essa idéia de padrão, instaurando um mundo que se dá a ver ao construir, nesse mesmo mundo, a necessidade de se dar a ver do modo como se dá a ver (2002:s/p). Mais: no que diz respeito à língua, ele "não tem relação natural com qualquer uso lingüístico; mesmo quando a obra parece empregar a língua mais 'comum', existe confronto com a alteridade da linguagem, vinculada a um posicionamento determinado no campo literário" (1995:111).

Assim é que no conto "Atrás da Catedral de Ruão" encontramos uma experiência de práticas linguageiras ligadas ao modernismo paulistano do início do século XX, certas marcas de um fazer antropofágico cujo fim último é uma (re)invenção do nacional calcada numa apropriação dos símbolos/mitos/ritos locais por práticas discursivas investidas de brasilidade moderna e, portanto, inelutavelmente, em busca do que seja essa brasilidade.

Freqüentemente encontramos observações sobre tais condicionantes mesmo em sinopses mais sucintas desse conto, nas quais, aliás, costuma-se registrar que se trata de um texto "bilíngüe" (português/francês). Isso é especialmente interessante, se levamos em conta que a língua francesa há muito saiu da escola brasileira regular e não foi habitar os tantos cursos livres que ensinam, sobretudo nos últimos 20 anos, inglês e, mais recentemente, espanhol. Por isso, em geral esse registro do "bilingüismo" do conto é uma advertência. Eventualmente, essa advertência é acompanhada de notas de tradução frase a frase que, todavia, não dão conta de delimitar os sentidos, por exemplo, do termo "afrosa", que aparece já no primeiro parágrafo do conto.

Mademoiselle, personagem central, com sua "blusa alvíssima de rendinhas crespas" e o pó-de-arroz que "não disfarçava mais o desgaste", dá aulas de francês às filhas (de 15 e 16 anos) de D. Lúcia, esposa de um longínquo personagem, um marido muitíssimo ocupado em viajar pelo mundo a trabalho. Muito viajadas também, as meninas, nesta altura, superam Mademoiselle (há 30 anos no Brasil) em muitas línguas estrangeiras e até mesmo no francês, mas D. Lúcia tem certa "caridade viciosa" e toma a "solteirona" como uma "espécie de dama-de-companhia das filhas".

O conto se abre com uma revelação sobre Mademoiselle: "Às vezes até mesmo com pessoas presentes, lhe acontecia receber aquela sensação 'afrosa', como diriam as meninas na meia língua franco-brasileira que se davam agora por divertimento." "Meia língua franco-brasileira" não é uma língua meio francês e meio brasileira, coisa distinta. Uma "meia língua" será daquelas de meias palavras? Espantosa malícia de mocinhas sabedoras "em excesso coisas imaginosas e irrealizáveis, que ficaríamos bem estomagados de saber, nós usadores do mundo", face ao modo constrangido e cioso da professora, que pede desculpas por "se tromper de lisière", entendendo confusamente as pistas dúbias das duas, pegando trilhas erradas, extrapolando fronteiras sociais.

O caso foi que uma das moças replicara a revelação feita por Mademoiselle assim: "ça vous fait mal!", entre solidária e provocativa; e a professora corrigiu prontamente a pronúncia – "mâle", ma chère enfant, mâle!" De repente, se deu conta de que não era de "macho" ou "másculo" que falava a moça, mas de mal, a aluna falava "du Bien et du Mal", como registra, então, Mademoiselle desconcertada.

Desde aí podemos seguir um certo percurso da sensação "afrosa" que Mademoiselle "recebe" – o ataque fricativo, formulado possivelmente com base no termo francês affreuse (espantosa, horrenda, indigna), ecoa ao longo do texto em termos como frôler (roçar, encostar, tocar de leve), por exemplo na revelação enunciada por Mademoiselle: "Il y a des jours ou je sens à tout moment qu´un 'personnage' me frôle!", ou numa flexão em português do verbo francês, na voz do narrador: "Ela sentia masculinos 'ces personnages' que a frolavam no escuro do quarto..."

Mademoiselle está vivendo uma espécie de surto duradouro, cujos delírios se expressam em associações tecidas ao longo do conto no jogo entre um certo francês em cena, um certo português em cena e um certo dizer franco-brasileiro em cena.

O narrador, terceira pessoa onisciente, desenha-se num distanciamento do francês que caracteriza as personagens. Usa aspas para retomar alguns usos delas ou para fazer crer que se trata da retomada de um uso delas –"Era melhor fingir desinteresse por aqueles dois 'personnages gluants', se dando a mão com tanta imoralidade". Mas vai, no desenrolar da trama, assumindo (sem aspas) cada vez mais alguns desses termos aportuguesando-os – "...se lhe pusessem as mãos gluantes nos ombros, ela havia de berrar".

Usa termos aportuguesados sempre transmutados num dizer peculiar a esse texto – "Pois elas não tinham visto o que se passara atrás da catedral de Ruão! Deu um daqueles muxoxos, meio nojo, meio desnorteamento, que lhe mereciam todas as cochonerias dessa vida". Cochonerias, de cochonneries (porcaria, imundície), não é um aportuguesamento dicionarizado ou incorporado nas práticas ordinárias do português brasileiro. É um aportuguesamento que faz sentido nessa cenografia.

Sobretudo nos momentos de transe das personagens, marcados pela confusão intensificada entre os idiomas (num plurilingüismo externo), dá-se uma mescla de línguas cujo efeito é uma certa profanação recíproca, da qual resulta uma ambiência de lascívia – "Mademoiselle tirou a mão dos olhos, muito envergonhada, refeita de súbito com a pergunta [do guarda]: 'Non, merci', mas se percebendo noutra 'lisière', consertou: Não, obrigada. E agora, já sem sustos mais, num desalento vazio, termina de contornar o 'derrière' da catedral. Já não era mais ela que 'bousculava' os outros, como diriam as meninas, a multidão é que a busculava..."; e também há mesclas dentro de cada idioma (num plurilingüismo interno); neste caso, inclusive, conforme uma certa filiação estética – desdobramento do chamado modernismo de 1922, certos registros ortográficos, certos usos pronominais, inspiração em prosódias populares, preferências lexicais, entre outras propostas do período.

As construções integralmente em francês aparecem apenas no discurso direto, nas falas das personagens, que, ao falarem em francês, autorizam-se como as personagens que são – a professora, cujo francês, língua de sedução e prestígio, é o único bem que possui, e as alunas, burguesas que podem pagar por esse francês (e por outros) e usar com deleite. Aí está desenhada a cenografia.

Nesse jogo, os dizeres das alunas Alba e Lúcia orientam-se na direção da infralíngua: "As meninas inventavam-se palavras pra se conversar. Eram como onomatopéias pressentidas, sem nenhum sentido nítido, próprias daquele mundo vago em que viviam." Os dizeres de Mademoiselle, "ciosa de sua pronúncia", mesmo nos momentos extremos de sua tragédia emocional, seguem (ou parecem tentar seguir) na direção da supralíngua.

Ela reformula ditos como quem, afinal, procura esclarecer o que diz – "É que estava no hol de seu hotelzinho quando entrou um homem de cartola, cavanhaque, fraque, óculos escuros, o cavanhaque era 'pointu, pointu! Je me suis dit: Ce personnage vient tuer quelqu´un. Il monta au salon, pas une minute ne s´était passée, nous entendimes les cinq coups du pistolet. Dans le ventre!' E se auxiliou desvairada do gesto homicida: 'Poum! poum! poum! poum!...' Olhou Dona Lúcia, olhou as meninas, assustada, indecisa. E numa das reconsiderações leais, de quando se enganava de 'lisière', 'J´ai manqué un poum: ça fait cinq!'". Ou ela é referida como um ser em descontrole, num jogo de termos racionalizante: "E Mademoiselle estava... um verbo irracional dirá no que Mademoiselle estava: Mademoiselle estava no cio."

As passagens em discurso indireto livre são especialmente marcadas pelo tom desse franco-brasileiro lúbrico que está em cena: "Mademoiselle soltava "des petits cris" excitadíssima, pedindo mais detalhes, mais detalhes, 'ces norvégiens!', e esses catalões, e os árabes, e 'les tuaregs'!..." É como se a turbulência das jovens convidasse a virgem-quarentona a afastar-se da rigidez da institucionalidade, mergulhando nas fissuras e distorções da interlíngua, aproximando-se do que seria a singularidade. E é toda essa a vertigem: "Agora as meninas tinham chegado, era o vendaval, tão estalantes de experiências próximas, que puseram tuaregues no corpo de Mademoiselle". Veja-se que tuaregues funciona como uma espécie de hiperônimo que inclui les tuaregs (o povo berbere, nômade, que se desloca entre o centro e o oeste do deserto de Saara). E, afinal, a própria "Catedral de Ruão" funciona como um hiperônimo de todas as catedrais, capelas e paróquias, atrás das quais tradicionalmente se dão (ou se dava até há bem pouco) os encontros mais reservados ou secretos; funcionada até mesmo como hiperônimo de todos os lugares onde a luxúria pode acontecer. Talvez se pudesse arriscar até que Ruão (em vez de Rouen, o nome da catedral parisiense) sugere bem mais o iminente ataque sexual perpetuamente imaginado por Mademoiselle, rude como toda a mundanidade das coisas que a excitam.

Creio que um levantamento de semas, a observação dos recursos de referenciação ou associações fonético-fonológicas, por exemplo, podem ser reveladores de instâncias mais minuciosas do código linguageiro em que a "Catedral de Ruão" significa, mais que quaisquer fundos de quaisquer catedrais, o lugar da impudicícia desejada por Mademoiselle, a iminência de um encontro anônimo na multidão em clandestino gozo: " ... e reticenciava mais claro que tudo: – Et alors... c´était comme derrière la cathédrale de Rouen. A catedral contava tudo. E era deliciosamente punidor o tudo que contava a catedral."

Aqui, porém, faço apenas uma primeira aproximação do conto, com vistas a refletir sobre seu código linguageiro e, com isso, sobre o conceito de interlíngua proposto por Maingueneau. Então, por ora, se aceitamos que o código linguageiro é condicionado pela interação dos registros e variantes das línguas acessíveis em uma dada conjuntura, a interlíngua, e que ela "é, portanto, o espaço máximo a partir do qual se instauram os códigos linguageiros" (Charaudeau & Maingueneau: 2004,97), entendemos que o frisson de Mademoiselle se agita no código linguageiro em que é enunciado. Essa maneira de enunciar, e nenhuma outra, é a necessária ao mundo que constrói.

 

Notas

(*) Doutoranda IEL-Unicamp e integrante do núcleo Confraria de Textos.

(1) "A cenografia, como o ethos que dela participa, implica um processo de enlaçamento paradoxal: desde sua emergência, a fala supõe uma certa cena de enunciação que, de fato, se valida progressivamente por essa mesma enunciação. A cenografia é, assim, ao mesmo tempo, aquela de onde o discurso vem e aquela que ele engendra; ela legitima um enunciado que, por sua vez, deve legitimá-la, deve estabelecer que a cena de onde a fala emerge é precisamente a cena requerida para enunciar, como convém..." (Maingueneau, "Ethos, cenografia, incorporação", p. 77.)

(2) O texto sobre o qual proponho observações é um conto de Mário de Andrade considerado parte de um projeto do autor (escrito entre 1927 e 1944), que foi publicado postumamente sob o título Contos Novos.

 

Bibliografia

ANDRADE, Mário de, "Atrás da Catedral de Ruão", in Contos novos. 11 ed. Edição revista por Maria Célia Paulillo. Belo Horizonte: Itatiaia, 1983, pp. 47-60.

CHARAUDEAU, P. e MAINGUENEAU, D. Dicionário de análise do Discurso. Trad. Fabiana Komesu (coord.). São Paulo: Contexto, 2004.

MAINGUENEAU, Dominique. (1984) Gênese dos discursos. Trad. Sírio Possenti. Curitiba: Criar, 2005.

__________.(1999) "Ethos, cenografia e incorporação", in AMOSSY, R. (org.). Imagens de si no discurso Trad. Ferreira, Komesu e Possenti. São Paulo: Contexto, 2005b, pp. 69-92.

__________."Discours, intertextualité, interlangue", in Champs du signe n. 13/14, 2002, pp.197-210. (aqui, consultamos uma versão mimeo sem paginação).

__________."L'analyse des discours constituants", in Fundamentos e dimensões da análise do discurso, MARI, H.et al.(eds). Belo Horizonte, 1999, pp.45-59.

__________.(1993) O contexto da obra literária enunciação, escritor, sociedade. Marina Appenzeller. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

 

Resumo

Um dos desdobramentos atuais das questões relativas à produção dos sentidos é a proposta de uma semântica global (de Dominique Maingueneau), que permite refletir sobre os sentidos em diversas instâncias de sua constituição. Essa instanciação analítica é uma possibilidade de discriminar elementos entretecidos, constituintes de uma totalidade construída interdiscursivamente – portanto dinâmica, interlocutiva, heterogênea, histórica. Neste artigo, proponho uma reflexão sobre uma dessas instâncias, a interlíngua, que parece bastante operacional nas análises que focalizam a língua (ou as condições de produção das práticas linguageiras). Essa reflexão se desdobra em observações sobre um conto de Mário de Andrade, em que a tessitura de certos códigos linguageiros produz certos efeitos de sentido e é, assim, constitutiva desse dizer. Noutros termos: é essa tessitura, e nenhuma outra, a que constitui esse dizer, seus sentidos.

 

Palavras-chave: interlíngua, produção dos sentidos, semântica global.

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