Cazuza: a Bricolagem Crítica do Rock

Leandro Garcia Rodrigues(*)
Introdução

Disparo contra o sol, sou forte, sou por acaso, minha  metralhadora cheia de mágoas, eu sou mais um cara.  Assim Cazuza começa uma das suas canções mais emblemáticas – O Tempo não Pára, gravada em 1988 no auge da sua doença e da sua deterioração pública em virtude das complicações com a Aids. Instável e desafiador, mas também extremamente sedutor, Cazuza soube unir, durante uma fase da sua produção artística, a rebeldia e a meiguice, o Rock e uma dócil MPB; suametralhadora” destilou “mágoas” e amores sobre uma geração que ainda buscava sua identidade Tais aspectos da sua obra o tornam um artista singular, o maior poeta da sua geração, nas palavras de Caetano Veloso. 

Em várias entrevistas e abordagens públicas, o cantor nunca escondeu a sua verve melódica advinda da MPB: Dalva de Oliveira, Cartola, Lupicínio Rodrigues, Maysa e outras estrelas povoam a sua criação musical. Tal verdade foi uma das tantas razões para sua separação do seu grupo musical de origem, o Barão Vermelho. Estes defendiam o rock autêntico, meio “pauleira”, enquanto o cantor demonstrava uma nítida vontade de seguir caminhos próprios, “misturando tudosegundo ele mesmo e, acima de tudo, “bricolando” muita coisa. 

Analisar criticamente este processo é o objetivo principal deste trabalho Mas para tal intuito, não deixaremos de falar suas outras linguagens estilísticas, especialmente aquela relacionada à performance, à estetização do seu corpo, lócus privilegiado de exposição pública numa época em que sua doença significava uma “sentença de morte” a curto prazo, bem como um intenso preconceito por ser considerada o “câncer gay”.


I - A
Cena Carioca
 

As avaliações acerca da década de 80 fazem parte de acalorados debates e tentativas de se estabelecer conceitos interpretativos sobre esta época. Cada vez mais, esta geração é colocada no divã desesperado dos analistas culturais; todos têm demonstrado uma certa unanimidade em reconhecer um paradoxo: por mais que seja considerada uma geração ideologicamente “vazia em relação aos politizados anos 60, foi responsável por uma produção artístico-cultural criativa e tensa em suas experimentações culturais. 

Testemunhas pessoais da Ditadura, esses jovens personagens iniciavam os anos 80 ávidos por encontrar a sua identidade cultural, aquela que tivesse a “cara” do seu momento, que expressasse o seu estar no mundo. Em termos de rock, os anos 70 apresentaram um caráter particular: houve uma considerável produção musical, todavia o próprio meio cultural (especialmente a mídia) não proporcionou a devida repercussão, certamente pelo pouco apelo pop desta produção. Esta década testemunhou o surgimento de bandas como O Terço, A Bolha, Terreno Baldio, Casa das Máquinas, Secos e Molhados, A Barca do Sol dentre outras; isto sem falar na faseprogressiva” dos Mutantes e também da criação musical de Raul Seixas, um dos principais ícones desta geração. Vale lembrar que os anos 70 também foram marcados pela realização dos mais diversos festivais de música, fato que muito contribuiu para o “aquecimento”  cultural que “preparava o terreno para os anos 80. 

Nesta mesma época, a “febre” das Discotecas invadiu as pistas de dança embalada pelos sucessos de John Travolta no lendário Embalos de Sábado à Noite e aqui no Brasil pelo fenômeno que representou a novela Dancing Days. Os últimos anos desta década presenciou uma interessante onda de experimentalismos: no rock com o grupo Vímana(1); na poesia com os poetas rebeldes, especialmente Chacal, Chico Alvim, Ana Cristina César e outros; no teatro com o Asdrúbal Trouxe o Trombone. Tais iniciativas traziam novas linguagens que chamavam a atenção para as novas possibilidades de criação, uma espécie de pontapé inicial para o rock brasileiro que se configuraria de forma definitiva alguns anos depois. 

Falar do Rock Brasil e da Geração 80 ou Geração Coca-Cola é uma tarefa trabalhosa, digna de uma tese ou então uma considerável publicação sustentada por inúmeras páginas. Este trabalho não possui tal intuito, levando em consideração a sua natureza e extensão. Todavia, não é possível falarmos de Cazuza sem levantar alguns dados importantes da época que o revelou ao Brasil, especialmente de alguns aspectos da cena carioca. 

Sem dúvida, o Rock Brasil foi um fenômeno visto e sentido em diversas regiões do país, com uma infinidade de variantes que enriqueceram o estilo, com propostas as mais diversas, todas com o objetivo de criar umjeito novo” de ser jovem e de aparecer no cenário de então; o que dizer de todo a atmosfera musical do Planalto Central?  Brasília foi “dominada” pelas mais diferentes tribos de roqueiros, punks e metaleiros.  São Paulo se tornou a capital nacional do Punk Rock e das mais variadas formas do Rock Underground; até a “bem-comportada” Minas Gerais deu a sua contribuição: em 1983 foi formada a banda Sepultura, nossa maior representante do Heavy Metal. 

Contudo, escolheremos o Rio de Janeiro e suas dinâmicas culturais nos primeiros anos da década de 80: praia, teatro, gravações, rádios, personagens de narrativas que agora temos noção do que representaram. Cazuza é um autêntico exemplo desta “obra” cultural produzida pela Cidade Maravilhosa.


1.1 - Uma
Loucura Teatral: Asdrúbal Trouxe o Trombone
 

Idealizado pelo ator e produtor cultural Perfeito Fortuna e sempre dirigido por Hamilton Vaz Pereira, o Asdrúbal inicia sua história em 1974 com a montagem da comédia O Inspetor Geral, de Gogol.  Mas foi em maio de 1977 com a peça Trate-me Leão, montada no Teatro Dulcina (RJ), que o grupo se estabeleceu como sucesso de público e de criatividade Seu irreverente nome foi inspirado numa brincadeira que anunciava a chegada de uma pessoa chata e indesejada. Sua característica principal foi fazer um teatro desengajado politicamente, o que o colocava na contramão de certas vanguardas teatrais marcadas pela politização de algumas produções, como o Teatro Oficina e o TUCA, ambos de São Paulo. 

As produções do grupo sempre foram marcadas pelo humor, espontaneidade e improvisação, o que era uma forma libertária de expressão artística.  A esse respeito, Caio Fernando Abreu afirmou num artigo do jornal porto-alegrense Folha da Manhã, de 27 de agosto de 1977:

Muitas coisas podem ser ditas sobre os Asdrúbals e seu Trate-me Leão. Por exemplo, que é um espetáculo alienado e alienante, que nada tem a ver com a realidade brasileira.  A proposta de Trate-me Leão é a da luta pela alegria e se isso não é uma proposta política, desculpem, não sei exatamente o que seria política. (BRYAN: 2004)

Ou seja, a alegria e o deboche também são atitudes políticas, ainda que não o seja considerado por determinados setores da Indústria Cultural.  Nesta produção, o personagem vivido por Luis Fernando Guimarães tem uma fala que sintetiza não apenas a proposta do Asdrúbal, como também revela um pouco do pensamento reinante entre muitos jovens daquele momento:

Não me mande ir à luta que eu não gosto.  Tá legal?  Vai à luta você.

É a reação contrária e explícita àquelas máximas que exortavam a juventude a “mudar o seu destino”, a “transformar a sua realidade”, tão comuns em anos anteriores e que agora não ressoavam com o mesmo ímpeto de outrora. Neste momento as “revoluções são outras, especialmente aquelas de caráter comportamental, onde a liberdade será buscada em todas as possíveis dimensões. 

O elenco original de Trate-me Leão era composto por Perfeito Fortuna, Hamilton Vaz Pereira, Luis Fernando Guimarães, Regina Casé (que ganhou o prêmio Molière de melhor atriz com apenas vinte e dois anos), Evandro Mesquita e Patrícia Travassos.  Na maioria das vezes, os cenários das produções eram exageradamente pobres e montados com tábuas mal alinhadas e todas pichadas, o que levava os atores à necessidade de uma grande expressão corporal no momento da atuação. 

O sucesso do Asdrúbal foi tão grande a partir de Trate-me Leão que em 1979 montaram a peça Aquela Coisa Toda, em cujo enredo uma equipe de comediantes refletia a respeito de si e do próprio trabalho artístico, num claro processo de metalinguagem crítico-reflexiva em relação aos dois anos “iluminados” de Trate-me Leão. É interessante salientar o intercâmbio do grupo com os chamados poetas marginais, especialmente Chacal; inclusive, o personagem de Hamilton Vaz Pereira se chamava Pena, uma caricatura do poeta que ajudou na criação do espetáculo. Sobre esta fase, Chacal lembra:

Chega de temas filosóficos e importantes.  A gente queria falar do dia-a-dia, da polícia no calcanhar, do pastel que comia no botequim da esquina.  E falávamos isso como se fosse um discurso político, tal era a comoção que havia pela repressão e por reunir grupo de pessoas para ouvir poesia, numa época que ainda não tínhamos, como tivemos depois, a base do rock para sustentar nossas letras e que, portanto, tínhamos que sair berrando-as no meio da rua Sair reclamando poesia. (CHACAL: 1998)

Chacal fazia parte de um grupo de poesia vanguardista chamado Nuvem Cigana, formado por Bernardo Vilhena, Ronaldo Santos, Ronaldo Bastos, Charles Peixoto e Guilherme Mandaro. O Nuvem Cigana chegou a fazer algumas mini-apresentações durante os intervalos de apresentação do Asdrúbal, entre um ato e outro. 

No início dos anos 80, o Asdrúbal Trouxe o Trombone “profissionalizou-se” de vez. Após uma longa temporada no Teatro Ipanema, o grupo decidiu montar um curso de teatro que se realizaria no Parque Lage. Tal iniciativa foi importante pois atraiu o patrocínio de grandes empresas e a procura foi tão grande que foram obrigados a limitar as matrículas dos interessados. Seus sete integrantes se dividiram em pequenos grupos, ficando cada um deles responsável pelas aulas e produções das peças. Com isso, cada grupo adquiriu a “cara” do seu coordenador, especialmente quanto aos enredos estudados e encenados. 

Desta forma, Luis Fernando Guimarães e Regina Casé ficaram responsáveis pelo grupo Sem Vergonha, famoso pelas conotações sexuais dos seus espetáculos.  Hamilton Vaz Pereira criou o Vivo Muito Vivo e Bem Disposto (nome retirado de um verso de Chacal), formado por Fausto Fawcet, Fernanda Torres, Ricardo Waddington e Lídia Brondi (uma das musas da sua geração). Outro grupo (o que durou mais tempo) foi o Banduendes Por Acaso Estrelados, era o maior de todos com vinte e cinco alunos coordenados por Evandro Mesquita e Patrícia Travassos. Nesta época, Evandro Mesquita cantava durante as aulas os seus principais sucessos da Blitz (especialmenteVocê não Soube me Amar”) que viriam à luz meses mais tarde com a formação deste grupo. 

Entretanto, o último grupo a ser formado a partir do Asdrúbal foi o Corpo Cênico Nossa Senhora dos Navegantes, comandado por Perfeito Fortuna. Era o mais debochado, provocador e musical de todos, tinha como principais representantes Leo Jaime, Ricardo Barreto (futuro Blitz), Carla Camuratti, Bebel Gilberto e Cazuza.  Montaram no Circo Voador a peça Pára-quedas do Coração, onde Cazuza interpretou uma sátira ao personagem Capitão Von Trapp de A Noviça Rebelde. O “capitão” cantou e encenou a canção Edelweiss para a “noviça que, após a música, revelava sua verdadeira identidade: era um travesti. Nesta apresentação (mesmo sem possuir sequer uma fala, cantava), Cazuza demonstrava o cerne do estilo que mais tarde o eternizaria: o deboche provocador. 

Com essesfrutíferos” sub-grupos de criação e atuação, o Asdrúbal Trouxe o Trombone conheceu o seu fim Porém um fim glorioso pois foi dividido em núcleos tão produtivos quanto aquele que deu origem a tudo.  O Asdrúbal entrou para a História do Teatro Brasileiro responsável não somente por uma intensa renovação artística, como também por servir de celeiro de novas vocações e fornecer à cena cultural importantes talentos, alguns brilhando até hoje.


1.2 - O
Circo Voador
 

O Circo pousou nas areias do Arpoador em 15 de janeiro de 1982.  Idealizado por Perfeito Fortuna e a turma do Asdrúbal, a idéia era criar um espaço alternativo para aquela nova linguagem poético-musical-teatral que estava sendo concebida, servindo como endereço para todos os cursos de teatro do Asdrúbal. Com capacidade para oitocentas pessoas, logo se tornou um ponto de encontro das mais diferentes tribos que habitavam o cenário artístico daquele momento. Sua inauguração foi feita com um grande evento – a Surpreedamental Parada Voadora – uma espécie de caminhada circense que saiu da Praça General Osório e contava com a presença de vários grupos teatrais e de dança: o Abracadabra, o Manhas & Manias, a Cia. Aérea de Dança e o Coringa, liderado por Débora Colker que na época estava montando o espetáculo Disque M. para dançar. 

O Circo também foi um espaço privilegiado para os grupos de poesia, principalmente o Nuvem Cigana com Chacal e Os Camaleões, liderado por Pedro Bial; foi nesta época que aconteceu o I Festival Nacional de Poesia, quando o Circo foi representado por esses dois grupos e seus integrantes. Havia também uma intensaatividade jornalística com o periódico Expresso Voador, editado pela Nuvem sem Grana (Chacal, Cafi e Maria Juçá) e patrocinado pelo Banerj, Jornal do Brasil e Rádio Cidade. O jornal era distribuído gratuitamente em bares, restaurantes, points nas praias, cinemas e na entrada do Circo; sempre trazia como título um verso de Chacal: Grave-se isso: o circo está . Voando, voador como uma gaivota no Arpoador. 

Outra importante contribuição do Circo foi o de propagador de novas bandas; uma marcou definitivamente aquela época: a Blitz Sua formação inicial foi Evandro Mesquita, Márcia Bulcão e Fernanda Abreu (vocais), Ricardo Barreto (guitarra), William Forghieri (teclados), Antônio Pedro (baixo) e Juba (bateria). Tudo era novo no visual da Blitz: as roupas com cores berrantes e chamativas, as letras falando dos “dramas vividos pela juventude, os ritmos das músicas, a coreografia um tanto escandalosa, tudo na contramão da intelectualizada MPB de então. Seu primeiro contato foi com a gravadora EMI, que na época assinou contrato para a gravação de um single – o formato usado pela indústria fonográfica para testar novos talentos, sempre desconfiada das diversas “novidades” do mercado. Foi gravado um single de um único lado, com a canção Você Não Soube Me Amar. O primeiro show profissional da Blitz ocorreu em 21 de fevereiro de 1982 no bar Caribe, em São Conrado; era o primeiro sinal de que estava nascendo algo novo, o que hoje chamamos de Rock Brasil.  Entram em cena as gírias cariocas do momento, especialmente aquelas ambientadas nas praias da Zona Sul comodar uma geral” e “ver qual é”, eram jovens falando das suas próprias experiências com uma linguagem marcadamente coloquial e explorando o seu universo de bares, chopes, batata frita e muitos amores. 

Por motivos financeiros, a “lona voadora” foi despejada do Arpoador em março de 1982. Em outubro do mesmo ano, o Circo Voador instalou-se nos Arcos da Lapa, antigo e conhecido reduto da boêmia carioca. Foi que surgiu o projeto Rock Voador, dirigido por Maria Juçá. A proposta era realizar encontros semanais com as bandas que estavam surgindo, foram lançados os grandes nomes do rock brasileiro, com exceção do RPM que estouraria somente em 1986. O Rock Voador reunia até quinhentas pessoas em jornadas com a apresentação de seis ou sete bandas por noite, por passaram no início de suas carreiras os seguintes grupos: Kid Abelha, Paralamas do Sucesso, Legião Urbana, Plebe Rude, Ira!, Camisa de Vênus, Ultraje a Rigor, Capital Inicial e é claro, a Blitz. 

Uma importante parceria foi feita entre o projeto Rock Voador e a Rádio Fluminense FM, de Niterói. A Maldita (como era chamada), entrou no ar em 01 de março de 1982 e foi um dos mais importantes pilares do rock nacional. Comandada pelo jornalista Luis Antônio Mello e por Samuel Wainer Filho (o Samuca), a rádio tinha uma proposta audaciosa e revolucionária para a época: tocar somente rock brasileiro e os antigos clássicos do rock’n’roll. Uma outra inovação foi a equipe feminina formada por Mônika Venerabille, Liliane Yusim, Selma Bairon, Edna Mayo, Selma Vieira, Milena Ciribelli e Cristina Carvalho. Dois programas fizeram história: o Rock Alive, dirigido por Maurício Valladares e o Espaço Aberto, que ia ao ar às oito da noite e tocava fitas demos de grupos e cantores novatos. Maria Juçá fez uma espécie de intercâmbio entre o Circo Voador e a Maldita, que se comprometia em tocar os que se apresentavam no Circo. 

Seria necessário um único trabalho para fazer justiça ao Circo Voador e todas as suas contribuições para o rock nacional. O Circo ficou ainda vários anos na Lapa e foi fechado em 1996, sendo reaberto ano passado. Todavia, a “certidão de nascimento” do rock não é mais aquela das suas origens, especialmente se levarmos em consideração a proliferação de ritmos e estilos diferentes e antagônicos ao Rock Brasil, bem como mudanças no conceito de juventude e de suas práticas comportamentais. 

Obviamente, muitos aspectos relativos a esta geração não foram falados, pois necessitaríamos de um trabalho específico para tratar de tais assuntos. As tribos de surfistas comandadas por Petit (um dos mitos desta geração), os vários filmes emblemáticos deste momento como Bete Balanço (1984), Menino do Rio (1981), Rock Estrela (1985), Garota Dourada (1983), Rio Babilônia (1982) e outros. Isto sem dizer do maior concerto de rock até então – o Rock in Rio, em 1985. Mas falemos especificamente sobre Cazuza e alguns aspectos pertinentes à sua obra.


II - Cazuza –
Aspectos
 

Agenor de Miranda Araújo Neto – o Cazuza – nasceu em 1958.  Filho único de João e Lucinha Araújo, desde cedo Cazuza conviveu com todos os cuidados familiares voltados para si, fato este que influenciou sobremaneira o seu comportamento e sua maneira de lidar com o mundo e com as pessoas a sua volta. Aos treze anos dirigia o carro do pai, foi expulso de uma escola católica por ter sido flagrado fumando maconha e mais tarde seria preso oito vezes por porte de drogas. Isto sem dizer nos inúmeros escândalos que protagonizou, seusataques” de garoto mimado que despertavam a ira de muita gente e sua orientação explicitamente bissexual, namorando divertidamente homens e mulheres e antecedendo os debates acerca da diversidade sexual tão comuns nos dias de hoje. 

Amado por muitos e odiado por outros tantos, Cazuza emerge como um dos principais ícones da sua geração, retrato debochado sem qualquer tipo de limite e preocupação moral, vivendo eternamente como se cada minuto fosse o último da sua efêmera vida; como ele mesmo gostava de dizer, preferia viver dez anos a 1000 por hora a mil anos a 10 por hora. Tal fato o inseria na tradição de figuras como Oscar Wilde, Rimbauld, Lord Byron, Janis Joplin, Kurt Cobain e tantos outros que extraíram o máximo da vida e não viveram muito tempo. Cazuza morreu em 1990 com trinta e dois anos. 

O início de sua carreira musical coincide com o surgimento do grupo Barão Vermelho.  Cazuza foi apresentado ao Barão por meio de Leo Jaime, quando ainda contracenavam no grupo Nossa Senhora dos Navegantes, no Circo Voador(2). Leo conhecia uns “garotos que buscavam um vocalista para a composição final da banda, o objetivo era fazer uma apresentação na Feira da Providência de 1981. A apresentação não aconteceu por motivos técnicos da organização do evento, mas a banda estava formada: Cazuza (vocal), Maurício Barros (teclado), Guto (bateria), Dé e Frejat nas guitarras. 

Foi a primeira fase artística de Cazuza, sua época mais louca, marcada por inúmeros problemas de convivência entre os membros do grupo, que levou à separação definitiva em 1985, após a apresentação triunfal no Rock in Rio. Segundo relatos dos mais próximos, as principais causas da divisão foi o temperamento acentuadamente egocêntrico de Cazuza, o que provocava brigas entre ele e os demais nos bastidores e em pleno palco na frente do público; todavia, a razão mais sintomática para a separação foi de ordem criativo-estilística, pois o autor de Burguesia nunca escondeu sua predileção pela boa MPB, o que o destoava por completo do Barão Vermelho, assumidamente roqueiro.


2.1 - “Bricolando” a MPB
 

Muitos lançamentos sobre Cazuza repetem as antigas fórmulas próprias de admiradores para falar do poeta são revistas, sites, páginas do orkut, publicações de clubes etc. Aos poucos, alguma crítica mais fundamentada teoricamente vai sendo construída, especialmente algumas análises realizadas na Universidade, onde alguns trabalhos acadêmicos vão analisando o compositor e sua obra ( incluído o seumundo”) de forma mais sistemática. Este também é um dos objetivos deste trabalho, que contará com o apoio de alguns teóricos e respectivas idéias para formular determinados conceitos Para fundamentar um pouco mais a nossa intenção de analisar o processo de bricolagem artística realizada por Cazuza, explorarei este mecanismo de criação na perspectiva de algumas teorias de Claude Lévi-Strauss. 

Dentre suas tantas teorias formuladas, criou dois conceitos que analisaremos: o do bricoleur (praticante da bricolagem) e do engenheiro. O teórico os formula e abre inúmeras possibilidades de aplicação tanto na Antropologia como nos debates acerca da Arte como um todo. Segundo Lévi-Strauss:

O bricoleur é aquele que trabalha com suas mãos, utilizando meios indiretos se comparados com os do artista. [...] é o que executa um trabalho usando meios e expedientes que denunciam a ausência de um plano pré-concebido e se afastam dos processos e normas adotados pela técnica. Caracteriza-o especialmente o fato de operar com materiais fragmentários elaborados, ao contrário, por exemplo, do engenheiro que para dar execução ao seu trabalho necessita da matéria-prima.(LÉVI-STRAUSS:1989)

Originalmente, a idéia de bricolagem está associada às práticas de colagens e manufaturas de objetos, principalmente no artesanato. Nesta nova acepção, bricolar diz respeito as mais variadas técnicas e formas de produção (artística, inclusive) utilizando “permanências” do passado, ou seja, aproveitam-se vestígios estilísticos de outrora associados a novas funções e categorias produtivas; neste afã, o bricoleur utiliza materiais existentes e não se preocupa na obtenção de matérias primas. No caso específico da produção musical, o compositor faz uso de toda uma “tradição que o precedeu, entendendo tradição como a junção de diversos fatores como: estilística, performances, produção cênica, diversos tipos de expressões do corpo, ritmos, temáticas abordadas nas letras etc. 

Ora, é sabido e comentado por vários críticos e por aqueles que o conheceram de perto a profundainserção” da obra de Cazuza (especialmente a da fase madura) nas mais diferentes fontes da MPB. Em várias das suas entrevistas o compositor não escondeu essa suaprestação de contas com a música popular, como ele próprio declara:

Desde pequeno fui tiete de todo o pessoal da MPB. Elis Regina sempre tava em casa. Eu acordava de noite para tomar água e estavam na sala o Gil, o Caetano, a Gal. A música popular inteira me pegando no colo. fui curtir rock, Janis Joplin, meus ídolos dos Rolling Stones pelos 14 anos, quando dei uma pirada. Mas antes, o máximo que curtia era coisas do tipo “Alone again Naturally”, água com açúcar Quando comecei a compor acabei misturando tudo isso, do menino passarinho com vontade de voar a Janis Joplin. Mas com uma diferença: a dor-de-cotovelo da MPB, mas dando a volta por cima. O rock da turma nova veio amenizar o lance down, meio negro, de Lupicínio, do pessoal da antiga, que era a falta de esperança no amor Então, minha influência do rock veio a partir de Rita Lee, Jovem Guarda, Raul Seixas.  O importante não é cantar a perda, mas o amor. Afinal, como dizia Dalva de Oliveira, “o amor é o amor.(3) 

É bem claro o “caldeirão” de influências ao qual Cazuza estava intimamente ligado, o “rebelde sem calça” (como ele mesmo se intitulava) tinha um fundo estilístico que o levava até aos mestres da MPB e do Pop brasileiro em geral, diferente de muitos artistas “genuinamente do rock” cuja principal característica é justamente a não aceitação da Tradição, ou seja, a rebeldia no seu conceito mais explícito. Cazuza atualiza as propostas de Antropofagia Cultural “digerindo” não apenas os aspectos culturais externos ao Brasil, mas principalmente o nosso legado musical relegado por muitos cantores e compositores da sua geração. Algumas palavras são sintomáticas: Quando comecei a compor acabei misturando tudo, é exatamente esta mistura enquanto mecanismo de criação que enriquece a sua obra, que lhe configura como um autêntico bricoleur.  A este respeito, é interessante o que João Araújo, pai de Cazuza, informa a respeito do filho:

Eu me surpreendi foi com o estilo romântico da sua obra. Mas era, na verdade, um lado que Cazuza sempre teve: o da identificação com a música popular brasileira. Eu e Lucinha respirávamos música brasileira. E Cazuza participou de alguma forma disso, o que o levou a buscar como referência autores que não tinha conhecido como Cartola, Nelson Cavaquinho, Dolores Duran, Lupicínio Rodrigues... Mas, de qualquer forma, levei um susto quando ele compôs canções como Codinome Beija-Flor.

A “arte de misturar” de Cazuza era de grande potencialidade e o susto não foi do seu pai, foi sentido por muitas pessoas, tanto que Codinome Beija-Flor virou tema romântico do personagem Beija-Flor da novela O Dono do Mundo, em 1989. É uma das tantas representantes da “fase Bossa Nova” de Cazuza, Codinome Beija-Flor apresenta versos de puro lirismo:

Pra que mentir
Fingir que perdoou
Tentar ficar amigos sem rancor
A
emoção acabou
Que coincidência é o amor
A
nossa música nunca mais tocou

[...]

Eu protegi teu nome por amor
Em um codinome, Beija-flor
Não responda nunca, meu amor (nunca)
Pra qualquer um na rua, Beija-flor.

[...]

É bem clara a proposta de Cazuza: transgredir o próprio rock, sair do lugar-comum da rebeldia e fazer parte de um universo lírico-amoroso cuja música nunca mais tocou, ou seja, os eternos (des)encontros do amor “filtrados” por uma atmosfera e uma sensibilidade consideravelmente gays. 

Essa sua dimensão de coleta e reorganização de dados proporcionou uma grande riqueza a sua produção musical, levando alguns dos seus amigos mais íntimos a defenderem a idéia de que Cazuza “caiu” no cenário do rock, sua “verdadeira” alma estava mesmo era na MPB. Voltando às questões teóricas sobre o bricoleur, Lévi-Strauss afirma:

Mesmo estimulado por seu projeto, seu primeiro passo prático é retrospectivo, ele deve voltar-se para um conjunto constituído,formado por utensílios e materiais, fazer ou refazer seu inventário, enfim e sobretudo, entabular uma espécie de diálogo com ele, para listar, antes de escolher entre elas, as respostas possíveis que o conjunto pode oferecer ao problema colocado. Ele interroga todos esses objetos heteróclitos que constituem seu tesouro, a fim de compreender o que cada um deles poderia significar, contribuindo assim para definir um conjunto a ser realizado que no final será diferente do conjunto instrumental apenas pela disposição interna das partes (LÉVI-STRAUSS:1989).

Cazuza faz essediálogo com toda a sua formação cultural para criar algo diferente do velho rock’n’roll, não que ele ignorasse essa sua dimensão, mas evoluí-la foi-lhe necessário, principalmente na sua época de criação solo. Instigante é a letra de Faz Parte do Meu Show:

Te pego na escola e encho a tua bola com todo o meu amor
Te levo pra festa e testo o teu sexo com ar de professor
Faço promessas malucas tão curtas quanto um sonho bom
Se eu te escondo a verdade, baby, é pra te proteger da solidão

Faz parte do meu show
Faz parte do meu show, meu amor

Confundo as tuas coxas com as de outras moças
Te mostro toda a dor
Te faço um filho
Te dou outra vida pra te mostrar quem sou
Vago na lua deserta das pedras do Arpoador
Digo alô ao inimigo
Encontro um abrigo no peito do meu traidor

Faz parte do meu show
Faz parte do meu show, meu amor

Invento desculpas, provoco uma briga, digo que não estou
Vivo num clip sem nexo
Um pierrot retrocesso
meio bossa nova e rock'n’roll

Faz parte do meu show
Faz parte do meu show, meu amor
Meu amor, meu amor, meu amor...

O próprio eu-lírico delineia as linhas mestras da composição: uma demasiada ênfase na função emotiva (expressiva) da linguagem, com uma intensa carga emotiva que centraliza as ações numa perspectiva totalmente egocêntrica, com verbos  e pronomes se direcionando todos à primeira pessoa do singular. Quanto ao ritmo, é o próprio Cazuza quem esclarece:

A bossa nova "Faz parte do meu show" canto com a voz de criança que jamais imaginei fazer, uma coisa bonita que passou por muitos ídolos do meu passado. Passou pelo João Gilberto, pelo Chet Baker. Eu gosto de tudo, do berro da Janis Joplin e da Bessie Smith. Adoro a Dalva de Oliveira e a Elvira Rios. Acho isso saudável para um artista. Em matéria de música, não sou nada radical.

Não sou nada radical; será que poderíamos falar de um compositor anti-rock? De fato, a melodia de Faz Parte do Meu Show deixa claro que se trata de um “entre-lugar” meio bossa nova e rock’n’roll, especialmente se lembrarmos dos violinos que ajudam a compor a música, uma configuração totalmente híbrida (pela docilidade harmônica) se levarmos em consideração outras músicas do cantor com ritmos os mais “esporrentos”, para utilizar uma expressão sua. 

O que constantemente se é que a experiência com a Aids transformou de forma contundente o processo criativo de Cazuza. Nesta época não havia praticamente nenhum tratamento para a doença, quando alguns poucos medicativos eram administrados e não provocavam uma melhora considerável, como era o caso do AZT.  Realmente, a Aids habitava o imaginário coletivo (e de fato o era) como uma espécie de certidão de óbito adiantada, mudando radicalmente a forma com a qual o sujeito via e sentia a vida. Durante uma das suas internações em Boston, Cazuza escreve Boas Novas cujo refrão gritava:

Eu vi a cara da morte e ela estava viva, viva.

É uma “cara que realmente causa pavor para alguém com tanta sede de viver Embora estejamos há anos-luz das posturas crítico-literárias que condicionavam a criação artística à experiência vivida (a Crítica Biográfica). É sintomática a afirmação de Lévi-Strauss:

O bricoleur sempre coloca nele [no seu trabalho artístico] alguma coisa de si.(LÉVI-STRAUSS:1989)

É esse Cazuza todo meigo que vem à luz em Faz Parte do Meu Show, sua composição com maior aspecto de Bossa Nova, seja pelo ritmo, seja pela letra ou então pela conjugação das duas realidades que fazem do todo algo de grande qualidade e sensibilidade artísticas. Outra experiência deveras interessante nesse intrincado universo de criação é a canção Minha flor Meu Bebê. Trata-se de uma das composições maisbem comportadas” e meigas escritas por este poeta do rock, uma verdadeira “canção de ninar que adquire uma nova semântica se cantada ao “ do ouvido”, segundo uma sugestão do próprio autor:

 

Dizem que tô louco
Por te querer assim
Por pedir tão pouco
E me dar por feliz
Em perder noites de sono
Só pra te ver dormir
E me fingir de burro
Pra você sobressair

Dizem que tô louco
Que você manda em mim
Mas não me convencem, não
Que seja tão ruim
Que prazer mais egoísta
O de cuidar de um outro ser
Mesmo se dando mais
Do que se tem pra receber
E é por isso que eu te chamo
Minha flor, meu bebê

Dizem que tô louco
E falam pro meu bem
Os meus amigos todos
Será que eles não entendem
Que quem ama nesta vida
Às vezes ama sem querer
Que a dor no fundo esconde
Uma pontinha de prazer
E é por isso que eu te chamo
Minha flor, meu bebê

Com ritmo suave e leve, Minha Flor Meu Bebê consegue unir meiguice a uma sutil dose de sensualidade quase imperceptívelE me dar por feliz / Em perder noites de sono / pra te ver dormir – seria um voyeurismo inocente ou a realização da felicidade nas mínimas atitudes? Além disso, há uma “pontinha” de sadismo nos versos Que a dor no fundo esconde / Uma pontinha de prazer, amar é bom e também pode machucar, ainda que liricamente. Finalizando a canção, os últimos versos funcionam como uma espécie de “conclusão” (especialmente pela conjunção por isso) para todas essas situações: E é por isso que eu te chamo minha flor meu bebê.

São alguns exemplos de como um dos maiores letristas da Geração 80 variou criativamente. A bricolagem foi para Cazuza uma das suas principais ferramentas inventivas da chamadafase madura” de produção artístico-musical. Sua principal fonte foi realmente a MPB, seja pelas influências do ambiente familiar, seja simplesmente porque ele era o que hoje chamaríamos de “antenado”, isto é, alguém “inquieto” para o seu tempo que não hesitou em desmanchar uma parceria promissora com o Barão Vermelho para seguir rumos próprios, para bricolar à vontade segundo os seus próprios (des)encantos de vida.


2.2 - A
Canção Crítica de Cazuza
 

muito que se discute sobre a natureza crítica nas mais diferentes vozes da música brasileira. Os críticos concluem que foi a partir da Bossa Nova que houve uma “reviravolta qualitativa que injetou nas composições musicais o elemento crítico, especialmente a metalinguagem como mecanismo de criação. A este respeito, Santuza Cambraia Naves esclarece: 

É introduzido um procedimento ímpar na história da música popular no Brasil, pois letra e música, ao mesmo tempo em que se comentam mutuamente, fazem uma crítica às convenções musicais.(NAVES:2003) 

A atividade crítica depende do “todo que envolve a composição: temática da letra, ritmo, arranjos, criatividades do intérprete(4) e, no caso de Cazuza, principalmente a sua linguagem corpórea. No que concerne à utilização do seu corpo em performances sobre os palcos ou nos vídeos, o autor de Exagerado soube administrar doses certas de ironia e provocação que tinham uma razão de serem praticados, ele não foi somente um compositor, mas principalmente um artista performático das suas próprias autorias. 

Tal fato se verifica especialmente no início da sua carreira, quando no auge da chamadageração saúde” vemos o cantor esbanjando sensualidade e erotismo durante os seus shows. Tal verdade era verificada inclusive nas roupas que vestia: geralmente calças e bermudas coladas ao corpo bem modulado que tinha, o que lhe propiciava gestos obscenos para uma platéia em delírio, isto quando não se apresentava sem blusa o que garantia uma maior exposição do seu físico. Ele próprio fala desta “magia erótica:

Enfrentar o palco para mim é tudo. Aflora um lado sensual meio incontrolável. Às vezes, entro de pau duro, a coisa pinta até antes de subir ao palco. Outras vezes, entro morrendo de medo, mas cantando solta a tensão. Sem brincadeira, é lance sexual mesmo. Fora do palco, sou tímido, um menininho, me sinto profundamente desajeitado. Mas, no palco, sou um Súper-Homem, de pôr a capa e sair voando. Sinto o sexo aflorando, olho pras pessoas e sinto que tem uma coisa também que volta em resposta. Porque estou mostrando uma coisa bonita que eu compus: não sou humilde, gosto mesmo do que faço. É muito o lance do prazer, eu e a platéia transando pra caralho.

Seu corpo articula-se ao corpo de uma linguagem que comunica pelos gestos, berros e provocações. Há uma osmose sexual que envolve o cantor, a sua música, o seu corpo e o receptor desta “liturgia erótica” – o público. Trata-se de um ato sexual  (re)semantizado entre emissor, mensagem e receptores. O corpo da escrita figura a superfície em que se constitui simultaneamente o sujeito e o seu corpo erotizante e erotizado, tal simbiose nos leva a pensar que o espaço do dizer se articula ao texto do corpo para comunicar o erotismo crítico da escrita. 

Mas como toda essa problemática se relaciona com os debates acerca de uma canção crítica? Creio que o ato de rebelar-se é, em si mesmo, uma atitude profundamente crítica. Não se trata de se expor fisicamente com o único objetivo de mostrar-se a uma platéia; mas tomemos como exemplo a apresentação de Cazuza (ainda no Barão Vermelho) no Rock in Rio. O ano era 1985 e a abertura política estava engatinhando, naqueles mesmos dias de janeiro Tancredo Neves fora eleito presidente da República através do Colégio Eleitoral, era o início de uma nova fase político-cultural no Brasil. Cazuza recebeu uma bandeira brasileira que lhe fora jogada pelo público e é enrolado a ela e quase semi-nu (somente com o que restou de uma calça de lycra) que ele se apresenta durante uns dez minutos do show. Era o momento de gritar, espernear, xingar e provocar, pois na saída não estaria mais a polícia para repreender e levá-los à delegacia mais próxima para prestar as devidas “explicações”; por isso o refrão Estamos meu bem por um triz pro dia nascer feliz, cantado em meio às provocações sensuais de Cazuza e à histérica participação popular que lhe auxiliava neste “lance sexual”, como ele mesmo avaliou. 

A atitude crítica vai sendo construída ao longo de sua obra das mais variadas formas e utilizando diferentes matizes ideológicos. Mais uma vez, Santuza Naves informa: 

A atividade crítica cada vez mais se preocupa com a questão do pertencimento do autor a uma ou outra comunidade, seja étnica, seja orientada por critérios de opção sexual, seja de gênero, entre outras, em detrimento da avaliação da obra de arte pelos critérios modernistas de apuro formal. (NAVES: 2003) 

Este “pertencimento do autor a uma ou outra comunidade é um excelente motivo para que elelevante a bandeira” da mesma, ou seja, assuma o seu lugar e exija o seu direito ao discurso, no sentido de se pronunciar e criar uma prática crítica de debate. 

Todavia, a composição crítica de uma canção necessita de outros fatores que não somente o de pertencer a um determinado grupo e nele atuar de forma eloqüente Um fator assaz importante diz respeito à formação intelectual do próprio artista, o que lhe ajuda a “ter o que dizer”, no sentido de instaurar um diálogo com outros conhecimentos e proporcionar criações com conteúdo suficientemente críticas. No caso de Cazuza, ele mesmo informa as suasinvestidas pela Literatura:

Minhas influências literárias são completamente loucas. Nunca tive método de ler isso ou aquilo. Lia tudo de uma vez misturando Kerouac com Nelson Rodrigues, William Blake com Augusto dos Anjos, Ginsberg com Cassandra Rios, Rimbaud com Fernando Pessoa. Adorava seguir Carlos Drummond de Andrade em seus passeios por Copacabana. Me sentia importante acompanhando os passos daquele Poeta Maior pelas ruas à tarde Mas meu livro de cabeceira foi sempre "A descoberta do mundo", de Clarice Lispector. Adoro acordar e abri-lo em qualquer página. Quando a Brasiliense começou a lançar as obras de Kerouac, Ginsberg, Borroughs, eu quase fiquei pirado, porque eu fazia algo ligado a eles e não sabia.  Penso que os anos 50 têm muito a ver com os anos 80. Era uma época de repressão que se soltou pela década de 60 como agora. 

Como podemos perceber, além das influências “clássicas” da MPB, Cazuza também bebeu em fontes literárias de excepcional valor artístico, isto sem dizer que é assaz intrigante a antologia escolhida: Clarice Lispector, Augusto dos Anjos, Fernando Pessoa, Rimbauld e Blake. essa listagem daria motivos suficientes para um outro trabalho versando sobre as específicas influências de cada um destes. E por falar em Augusto dos Anjos (não que ele seja de todo considerado romântico pela crítica especializada), uma vertente sempre atual da dimensão crítica da sua obra diz respeito a uma certa vivência do spleen romântico, especialmente aquele identificado com as mais variadas formas de se sentir envolvido por um novo Mal-do-Século, não mais aquele sofrimento idealizado típico do século XIX, mas uma dormais real”, com motivos retirados do próprio dia-a-dia. Uma das composições de Cazuza – Blues da Piedade – segue esta tendência:

Agora eu vou cantar pros miseráveis
Que vagam pelo mundo derrotados
Pra essas sementes mal plantadas
Que já nascem com cara de abortadas
Pras pessoas de alma bem pequena
Remoendo pequenos problemas
Querendo sempre aquilo que não têm
Pra quem vê a luz
Mas não ilumina suas minicertezas
Vive contando dinheiro
E não muda quando é lua cheia
Pra quem não sabe amar
Fica esperando
Alguém que caiba no seu sonho
Como varizes que vão aumentando
Como insetos em volta da lâmpada

Vamos pedir piedade
Senhor, piedade
Pra essa gente careta e covarde
Vamos pedir piedade
Senhor, piedade
Lhes dê grandeza e um pouco de coragem

Quero cantar só para as pessoas fracas
Que tão no mundo e perderam a viagem
Quero cantar o blues
Com o pastor e o bumbo na praça
Vamos pedir piedade
Pois há um incêndio sob a chuva rala
Somos iguais em desgraça
Vamos cantar o blues da piedade

Vamos pedir piedade
Senhor, piedade
Pra essa gente careta e covarde
Vamos pedir piedade
Senhor, piedade
Lhes dê grandeza e um pouco de coragem

O spleen de Cazuza tem uma conotação um tanto sórdida do ponto de vista social. Há uma espécie de solidariedade entre o eu-lírico e os miseráveis derrotados, metaforizados comosementes abortadas”, isto é, a melancolia romântica adquire novos receptores que ajudam a (re)semantizar o conceito de “poeta maldito”. Agora ele é maldito, inclusive, porque fala e traz à lume as mazelas da própria (sub)vida. O andamento rítmico da música traz algodiferente” no seu bojo, pois trata-se de uma melodia bem próxima do blues que ajuda na configuração destes “miseráveis e derrotados” que aumentam (inclusive numericamente) comovarizes” e ficam à espera de um alento qualquer para o sofrimento, como insetos em volta da lâmpada tentando absorver algum tipo de “calor” e claridade. Trata-se de uma abordagem altamente crítica que não envelhece pois sempreinsetos em volta das mais diferenteslâmpadas” da nossa sociedade. 

Falar da dimensão crítica na obra de Cazuza é tarefa para ser realizada com mais calma e espaço de trabalho, tamanha a importância dessa dimensão na sua produção artístico-musical. O que dizer da sua canção-manifesto Brasil, cujo refrão mostra a tua cara ecoa em qualquer época sem parecer antiquado e obsoleto? É um potente diferenciador na sua trajetória que contribui para que questionemos se de fato sua geração foi vazia como sempre se afirma; ou será esse “preenchimento ideológico” algo pertinente somente a ele? Acredito que não, pois basta uma leitura mais crítica de diversas composições e outrostextos” da época para percebermos o tom próprio de algumas criações do rock brasileiro crítico e até desafiador em alguns casos.


2.3 - Bricoleur
ou Engenheiro?(5)
 

Finalizando este trabalho, quero levantar não uma conclusão, mas um problema: Cazuza exerceu sua atividade artística como bricoleur ou como engenheiro? Ele criou algo realmente novo (o engenheiro) ou simplesmente utilizou o que havia, dando uma nova roupagem (o bricoleur)? São questões intrigantes que merecem nossa apreciação crítica. Primeiramente, retorno a Lévi-Strauss para entendermos o que seria o engenheiro e suas atribuições:

Sem dúvida, o engenheiro também interroga, desde que, para ele, a existência de uminterlocutor” é resultado de que seus meios, seu poder e seus conhecimentos não são nunca ilimitados e que, sob essa forma negativa, esbarra numa resistência com a qual lhe é indispensável transgredir. Poderíamos ser tentados a dizer que ele interroga o universo, ao passo que o bricoleur se volta para uma coleção de resíduos de obras humanas, ou seja, da cultura. 

O artista engenheiro é aquele cuja criação se dá a partir do novo, de uma espécie de “ponto zero”, ou seja, sem referências anteriores. Ele não parte de paradigmas pré-estabelecidos, cria sem preocupar-se em estabelecer conexões temáticas a uma determinada fonte (ou a fontes). 

Todavia, falar deste “nível zero” de produção artística no atual passo das discussões culturais é, no mínimo, problemático; buscar uma certapureza” de criação é também um objetivo inocente que pode levar a certas incoerências e equívocos (e até preconceitos). Há muito que se defende a tese de que vivemos na época dos hibridismos discursivos, principalmente se levarmos em consideração a nossa tradição de país colonizado e dependente culturalmente de outras tradições; daí a dificuldade para um artista “genuinamente” engenheiro e dotado de independências e autonomias criativas. 

O próprio Lévi-Strauss neste mesmo ensaio delineia um pouco tal dificuldade, inserindo o artista numa espécie de “entre-lugar”, entre a criação independente e a bricolagem:

O artista tem, ao mesmo tempo, algo do cientista e do bricoleur: com meios artesanais, ele elabora um objeto material que é também um objeto de conhecimento Nós diferenciamos o cientista e o bricoleur pelas funções inversas que, na ordem instrumental e final, eles atribuem ao fato e à estrutura, um criando fatos (mudar o mundo) através de estruturas, o outro criando estruturas através de fatos (fórmula inexata pois peremptória, mas que nossa análise pode permitir matizar). 

Por isso o fato de não podermos absolutizar esses dois conceitos colocando-os sempre como antagônicos, há de se buscar uma certa relativização, um meio-termo onde possamos assentar nossas discussões. 

Quanto a Cazuza, prevalece nele a sua dimensão de bricoleur. Como foi defendido até agora, o cantor bricolou sobremaneira outros estilos e não produziu somente letras e músicas tipicamente roqueiras. De fato, o grito rebelde do rock se fez presente na primeira fase da sua carreira, mas quando decide pela carreira solo acontece inúmeras mudanças no seu estilo que transformam qualitativamente o seu repertório. 

Mas ele também possui o seulado engenheiro”; este se realiza em algumas inovações realmente suas. A principal foi reconfigurar o conceito de Mal-do-Século, tão típico do Romantismo, onde a Aids toma o lugar da tuberculose no sentido de levar o compositor a pensar criticamente a respeito da relação vida-morte-obra, onde a dor sentida não é mais por um ideal não conquistado, mas chora-se pela realidade. Cazuza também inova quando faz uma miscelânea rítmica ao utilizar diferentes melodias nas suas gravações, onde saxofone, violino, bateria e guitarra elétrica formam uma excelente parceria. 

Outro aspecto (um tanto macabro) de sua inovação foi a exposição sem limite do seu corpo combalido pelas complicações da Aids. O cantor emagreceu quase trinta quilos em relação ao início da sua carreira e, diferentemente de outros infectados pela doença, decidiu expor-se e assumir publicamente que era soropositivo, não escondendo sua magreza e sua aparência cadavérica que contrastavam demasiadamente com sua imagem de garoto saudável e rebelde. Nesta perspectiva, o “lado engenheiro” foi também percebido na utilização de imagens deste corpo corroído nos clipes, shows e entrevistas que realizou, espetacularizando-o para quem quisesse ver. No vídeo de O Tempo Não Pára a relação do seu corpo com a letra e as imagens utilizadas tem um certoar profético como a de querer dizer: justamente pelo fato de o tempo não parar é que sua inexorável ação recaiu sobre este corpo, transformando-o neste amontoado de secura e imagem, neste “texto” cujas linhas são escritas pela tinta do definhamento físico. 

Cada vez mais fica explícita a idéia de que essas fronteiras entre o bricoleur e o engenheiro são cada vez mais relativas e “contaminadas”, uma “borrando” a outra de forma sintomática, fazendo emergir a necessidade de não aplicarmos análises de natureza unilateralista.


III –
Conclusão
 

Ainda muito o que se analisar sobre Cazuza, sua obra e o seu tempo; cada vez mais tal necessidade fica explicitada mediante a sua importância no cenário cultural brasileiro da década de 80, servindo como uma espécie de ícone desta geração um misto de anjo caído e eterno, maldito e amado, dócil e desesperado. 

Ele surge e ultrapassa os anos 80, testemunha a rebeldia do momento e se transfigura para outras experimentações musicais como a Bossa Nova e o Blues, produzindo híbridamente. Um artista completo? Não, somente repleto de inúmeras faces, cada qual com sua particularidade de significado. Podemos dizer que temos vários Cazuzas: boêmio, político, rebelde, revoltado com a vida, amante, maldito e amigo de muitos. 

Soube utilizar sua formação cultural para desenvolver novos ritmos e “contaminar” as heranças estilísticas do Rock’n’Roll, seguindo de forma pessoal a cartilha da Antropofagia Cultural proposta por Oswald de Andrade como atitude revolucionária da arte  brasileira. Cazuza “digeriu” bem de Cartola a Janis Joplin, de Dalva de Oliveira aos Rolling Stones, produzindo composições híbridas entre o rock e a MPB. 

Termino com um pedido do próprio Cazuza, numa entrevista à revista Playboy em 1988:

Espero que, no futuro, não se esqueçam do poeta que sou. Que as pessoas não se esqueçam de que, mesmo num mundo eletrônico, o amor existe. Existe o romance e a poesia. Que mais crianças venham a nascer e que o amor dos pais é fundamental. 

De fato, você não foi esquecido!


IV -
Notas

(*) Doutorando em Estudos Literários na PUC-RJ.

(1) A formação original do Vímana era: Fernando Gama, Lobão, Lulu Santos e Ritchie – todoscabeludos”, como convinha a um roqueiro da época.  O grupo se desintegrou no início dos anos 80 e cada um seguiu projetos diferentes. 

(2) Leo Jaime declarou a Almir Chediak no songbook de Cazuza: Uma noite, eu estava cantando num boteco de Botafogo e dois garotos me chamaram para um papo na casa deles no dia seguinte. Foram me pegar, me levaram para o Rio Comprido e contaram que estavam formando um grupo e precisavam de um cantor. A banda se chamaria Barão Vermelho e achei que era esporrenta demais. Fora que eu tinha outras duas bandas. falei que achava legal o lance deles, mas que tinha muito mais a cara de um amigo. Eles ficaram meio em dúvida, mas como tinham um show programado para dali a alguns dias, acabaram topando. Liguei para o Caju, o apelido como os amigos o chamavam, contei a história e dei o endereço e a hora do ensaio Ele falou que eu tava pirado, que ele não conhecia os caras, que a dele não era essa e coisa e tal Eu disse que, se fosse o caso, ia com ele, mas eu tinha prometido aos garotos. Não fui, mas ele foi. 

(3) Todas as declarações de Cazuza transcritas neste trabalho foram retiradas do seu site oficial: http://www.cazuza.com.br/textos. Trata-se de uma interessante coletânea de entrevistas que o cantor deu ao longo da sua carreira às diferentes revistas e jornais, tudo organizado por um dos maiores amigos de Cazuza – Ezequiel Neves quem o descobriu junto com o Barão Vermelho e percebeu-lhes a verve qualitativa de suas propostas musicais. 

(4) Em sua época, Cazuza era conhecido pelos intensosgritos” e outros sons que executava durante as suas interpretações, especialmente no final delas. É comum ouvirmos um “ééééééérrrrrrrrrr” ou então “hummmm” numa acepção bem provocativa, próprio do seu estilo. 

(5) Como foi dito, são categorias analíticas criadas pelo antropólogo Claude Lévi-Strauss que neste trabalho utilizo para criticar determinadas dimensões da obra de Cazuza.


V -
Bibliografia
 

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