A cidade sem mitos de Tarso de Melo
Júlio Valle (1)

A felicidade anda a pé
Na praça Antonio Prado
São 10 horas azuis
O café vai alto como a manhã de arranha-céus

Cigarros Tietê
Automóveis
A cidade sem mitos

(Oswald de Andrade)

Os cacos da vida colados formam uma estranha xícara.
Sem uso,
ela nos espia do aparador.

(Carlos Drummond de Andrade, “Cerâmica”)

O leitor examina, desconfiado, a capa do livro. A concretude da atmosfera tóxica e nebulosa não demora a infiltrar-se. Seu título, uma advertência: Carbono. Logo abaixo dele, um muro desigual em cimento e pintura deixa entrever os tijolos mal alinhados, sobre os quais, a intervalos, repontam inscrições a spray (também elas repousam abandonadas pela metade, na mensagem e no acabamento). O leitor espantado espera logo desfazer o mal estar e abre a capa de uma vez, à caça de metáforas e céu azul. Mas antes mesmo de confrontar o frontispício, percebe que um cinza empesta o verso da capa: trata-se de uma reprodução em preto-e-branco do muro visto pouco, como se um papel carbono tivesse se intrometido, sorrateiro, num vão invisível do papel cartão, tradução concreta e literal do título a escorraçar, decidido e de uma vez , tanto as metáforas quanto o azul.

aflito e pessimista, o leitor procura logo pelo primeiro poema, numa tentativa quase desesperada. Finge não ter visto ainda outras duas menções asfixiantes do título, no frontispício e no próprio poema de abertura, ainda reflexos inopinados daquele invisível papel carbono. Apesar de a pressa violentar as epígrafes, detém-se numa delas, apensa ao poema, pois parece ter lido, fugaz como uma miragem, algo comobrisa ouazul”. Respira aliviado ao ver que não é miragem, mas realidade: “No Nordeste faz calor também/ Mas tem brisa:/ Vamos viver de brisa, Anarina.” A citação de Bandeira penetra-o como um bálsamo, provendo-o do céu limpo e do ar até então sistematicamente sonegados: por um instante, a brisa e a afetividade azuis do Nordeste expulsaram a asfixia e a fleuma do Sudeste. Fôlego retomado, entrega-se, corajoso e arejado, à leitura do poema inicial. Cada verso dilui ainda mais o azul e a brisa tão rarefeitos: “respiração frustrada”, “monóxidos, dióxidos”, “sua asma agora é minha”, “sufoco cinza”. De quebra, também escoa pelo ralo a esperança de felicidade sentimental latente na epígrafe: à “respiração frustrada” pela poluição, une-se certoaperto que toma meu peito, sua falta”, como se nas palavras finais do poema. Quedo e ridículo como o albatroz de Baudelaire, o leitor desfaz-se logo do volume. Mas retoma-o logo para abanar-se, transformando-o num providencial leque, como a procurar instintivamente no veneno seu próprio antídoto.

Se nosso leitor fosse menos covarde e caricatural, ao recomeçar a leitura de Carbono (São Paulo/ Santo André, Nankin Editorial/ Alpharrábio Edições, 2002) descobriria, aos poucos, um livro coeso e seguro de um poeta mais do que promissor, porque seu talento é um fato consumado nessas poucas e densas páginas quase estreantes. “A cidade sem mitos” anuncia-se desde a capa e segue assim, num mesmo passo, até a contracapa. O poema inicial alerta-nos: o poetapoderia falar do azul”, embora a paisagem sugira o cinza, aqui predominantemente literal (ao contrário dos famosos versos drummondianos “A tarde talvez fosse azul/ não houvesse tantos desejos”, nos quais a cor remete metaforicamente à castidade). Assim como esse indireto distanciamento de Drummond atenua-se páginas depois num poema em que se atesta a dívida para com o poeta mineiro (“CDA: presença...”), o mesmo deverá ocorrer com Bandeira: a despeito do confronto inicial, ele realinha-se à perspectiva de Tarso logo no terceiro poema de Carbono, “Deserto 21”. Aqui, os versosque importam a paisagem.../ ... a linha do horizonte”, do “Poema do Beco”, viram parte integrante do próprio texto, numa fusão significativa de vozes. O foco de ambos, agora, é o mesmo: a cidade-cilada, a cidade-labirinto – que, aliás, nada tem a ver com a “cidade sem mitos” de Oswald de Andrade, na qual se goza de uma felicidade desmotorizada (poisanda a ”...) em plenas “10 horas azuis”. Escrito quase um século depois, em Carbono não parece haver nada mais mitificado.

Sem espaço para a idealização, as flores comparecem “à margem de um rio podre” (“Cidade”) e, recusado obviamente o arco-íris, a poça “é o que fica da chuva” (“Deserto 14”). Vítima máxima dessa perspectiva, a cor azul continua a se desbotar (“no azul/ dispostas em planos/ confundem-se/ cinzas/ suas asas, aviões (...), emTarde”; “o céu ainda mais cinza”, emDeserto 14”; “o céu de sábado/ à tarde/ imperfeito adere ao asfalto”, emDeserto 21”; “o céu rachado e as goteiras/ também o céu cortado a faca”, emCidade”) e assim será até que se feche o livro e confronte-se, na contracapa, o muro rachado no qual bóia um pneu com os dizeres “Borracharia MECAN”, ele próprio tapando a cor ferida pelos tijolos à mostra e pelo spray (este sim, uma poderosa síntese da mensagem urbana e, não à toa, título de um dos poemas).

Como deixa entrever essa perspectiva, a cidade-cilada, em Carbono, é vista como uma engrenagem arbitrária e destruidora. Parece haver uma rebelião da Criação contra o Criador: o homem resigna-se ao poder autômato e voraz da Urbe-Frankenstein, tornando-se também sua presa (“nossos corpos/ fuligem para os dias”, dizem os penetrantes versos de “Deserto 14”). E, nesse compasso, também a natureza acaba assimilada pela lógica urbana: “o sol intercala-se à poeira/ e aos arames”, emDeserto 3; “interstícios no azul/ (o horizonte, um muro, música dos carros), emDeserto 6”; “desde a janela/ um sol em blocos des-/ cortina o que sobrou, sob/ móveis, do escuro céu/ da noite passada”). Assim, nem a natureza, nem deus e nem o próprio homem dominam a Cidade, mas ela é quem os governa através de sua irreversível teia de códigos e de concreto

Um tal sentimento de impotência comunica-se, naturalmente, à própria possibilidade de representação artística da realidade. Não por acaso, a epígrafe do livro, retirada de The Story of the Art, de E. H. Gombrich, aponta para a criação de uma nova realidade e não para a sua presumível reprodução. O trecho atenta, ainda, para a similitude desse procedimento com aquele decorrente de nosso desconhecimento das coisas: a recriação torna-se, nesse contexto, quase uma imposição. Carbono registra pelo menos duas razões para essa apreensão apenas parcial do real. A primeira, tomando carona numa epígrafe sobre a parcialidade dos olhos, retirada de Guimarães Rosa, prende-se à falibilidade dos sentimentos humanos: assim, emCidade, ao mundo corroído pela visão da suja natureza urbana (“um balde no entulho”, “um corpo oco sob/ acrílico baço, mofo/ nu na coluna pensa”) corresponde outro íntegro e maciço apreendido pelo tato (“(...) cegos/ digitam alumínio/ e um mundo de mármore”). Além disso, o descompasso entre um mundo simultâneo e sensorial, de um lado, e o discurso linear e referencial, de outro, torna a reprodução fiel da realidade impossível. Assim, emForaÁgua” parece normal que “o desenho perca/ aquilo que quer figurar”, como ocorre com o peixe no anzol, “cujo único rastro é o grito/ vermelho”: a sinestesia inerente ao mundo desafia a figuração meramente verbal ou visual

Dessa forma, estamos frente não a um poeta que desconfia do que como também do que diz ( (“desconfio/ sempre do que digo)”, diz literalmente emFormigas”) : não poderia ser outro o resultado da tensão entre mundo e verbo. “Inibido olhar de fora/ falar incerto (...)” são os versos de abertura de “Paisagem”, encerrando-se por um verso igualmente sugestivo (“persegue o que não se diz”), tendo antes referido “as palavras, inúteis”. Imagem contundente desse abandono das palavras no mundo é a do rádio, cujas duas aparições ao longo do livro o dão como “chiante” oumudo”. Por tudo isso, longe estamos do poeta-oráculo ou iluminado, detentor dum conhecimento superior das coisas do mundo. Ao invés disso, temos um poeta cuja sensação de impotência não deriva da Vida entendida como Mistério, Benção ou Perdição, mas da vidinha consumida em meio a cenários e objetos insignificantes (“por que o espelho, o asseio, a rotina dos sapatos”, perguntam os versos de “Por Que”) responsáveis, aliás, pelo tom do vocabulário de Carbono: “plástico”, “fumaça”, “fuligem”, “cartões”, “monóxidos”, “dióxidos”. Tarso alinha-se aos poetas que desconhecem, sempre em defasagem, situação capaz de, como sugere a epígrafe, tornar-se um inesperado motor para a criação artística, assim movida mais pela falta do que pelo excesso. Sintoma da queda da “aura” no domínio da representação, fenômeno aludido por Walter Benjamin na década de 30.(2) 

Num contexto de “falar incerto”, onde “a paisagem anula a fala”, o discurso sobrevive como pode. A sintaxe sustenta-se aos pedaços: parênteses são abertos para sempre (“((...)luas/ e estrelas/ em bloco brilham, emSpray”; “(...) um rádio/ mudo (incêndio, indícios”, emDeserto 3”), enunciam-se pronomes relativos que nada relacionam (“trêmula arquitetura em que”, emDeserto 2”). Pelos fiapos da linguagem, entrevemos as lascas da paisagem natural ou humana: “disposta a anatomia em cacos”; “estudo de ausências,/ linhas que não se encontram/ branco (...)” (ambas em “Matisse”) ou “(imagens guardadas/ no espaço inconstante/ de escadas) despedaçar/ a fala (...)”, em “M., 2”. 

O afrouxamento da concatenação sintática viabiliza uma dinâmica alternância de quadros, postos em tensão e dispostos numa unidade tão precária e provisória quanto ilustrativa dessa fragmentação ao mesmo tempo incômoda e familiar. EmDeserto 20”, por exemplo, é absolutamente inesperada a intromissão de semelhantes parênteses ( “OUTRO PASSO, o corpo/ do gesto extinto entre vigas/ (vacinas contra a raiva)), que funcionam como um abrupto redirecionamento de ponto de vista. Nesse passo, aqui ou ali trai-se uma certa nostalgia da crença na unidade, tão consoladora quanto enganosa: “recuperar/ com suturas/ um duto // levando/ do céu ao solo/ nada” (“Spray”); “­_ varal a ligar quem passa rápido e a paisagem desidratada ao seu redor...” (“Deserto 2”). E, emCansaço, Ruas”, o Livro do Desassossego, de Fernando Pessoa, serve como emblema dessa representação possível do real (“o que fingimos perder”: a relação entre mundo e verbo), embora essepossível” esteja fadado às ruínas: “na paisagem deixada à página/ o rastro que une- de ruína/ a ruína _ o que fingimos perder”. O duto, o varal, o rastro, as suturas, ou ainda, em outros poemas, o túnel e o corredor, configuram imagens da união literal e precária à qual se lança, num misto de coragem e resignação. 

Nesse estado de coisas, como bem observa Carlito Azevedo na orelha do livro, o verso quase sempre é “curto e seco”. EmDeitar”, por exemplo, uma caudalosa sucessão de versos monossílabos dispõe um traço a simular o percurso do rio do sono. Matéria e forma também se unem em versos comosons se desmontam: nu-/ vem (...)”, num registro ainda muito econômico. Se eventualmente o poeta deixa-se extravasar mais longa e musicalmente, é porque a matéria assim o pede: emPor Que”, o senso rítmico, encanatório e reiterativo integra-se à avalanche dos atos automáticos do dia-a-dia (como o uso de códigos e senhas, por exemplo). Mas, no geral, a musicalidade é discreta, menos rítmica do que suavemente aliterativa ou assonante (“asfixias, monóxidos, dióxidos”, emCarbono”; “incêndio, indícios”, emDeserto 3”), não se revelando óbvia ou cantabile. E isso por boas razões. Primeiro, para evitar imprimir tom sentimental a matéria cinza e asfixiante. Segundo, para melhor incorporar a presença do ruído na cidade antimusical, na qual as goteiras sobre o balde de entulho sãomaiores do que o sono” (“Cidade”), à tarde, ouvem-se telefones ao fundo e o barulho de avião (”Tarde”); se há música é a “(...) dos latidos distantes”, mesmo em alta noite (“Sempre”); do “rádio chiante” ausentam-se as canções (“Paisagem”). Aliás, nesse contexto a própria música traveste-se de ruído inútil (“noto mudo um vaso/ e a música às moscas”, emCidade”). Por fim, uma última razão para a atenuada presença musical nos poemas é o seu apelo virtualmente demagógico ou encantatório, capaz de desviar a atenção do leitor ávido por repouso ou oxigênio. Arnold Schoenberg, na ópera inacabada Moises e Aarão, põe na boca deste último, demagógico e populista, as inflexões ornadas do bel canto tradicional, enquanto a locução lúcida e serena, embora de menor penetração popular, reserva-se ao primeiro, que entoa o chamado “Sprechgesang” (algo como “canto-fala”, espécie de fusão de ambos). Aliás, num século em que a própria música rebelou-se contra as convenções do “musical” (um compositor como John Cage dedicou-se à exploração do ruído e do silêncio), não espanta que também a poesia a tratasse com certa distância (nesse sentido, Paul Valéry alertava para o risco de a música obliterar a especificidade da poesia)(3)

Estas considerações aproximam Tarso de um poeta como João Cabral de Melo Neto. A musicalidade discreta (embora Cabral a torne ainda mais diluída) e o agudo senso plástico são comuns a ambos. A epígrafe do livro, sobre a pintura de Magritte, citado uma vez mais no poema de abertura, além da menção à obra de Matisse, título do penúltimo texto do volume, são índices dessa forte presença em Carbono. Do primeiro, aproveita o sentido de recriação compulsória do real; do segundo, a construção alicerçada no nada ou insuficiente (“estudo de ausências”, “(...) a anatomia em cacos”), ambas as concepções decisivas, como vimos, na orientação do livro. Aliás, a própria opção pela literalidade reforça necessariamente o dado imagético dos poemas, entregues assim a uma exploração concreta da paisagem. Além disso, Tarso parece naturalmente inclinado à pintura de quadros impactantes (tome-se, como exemplo, a bela imagem de “Deserto 2”: “(...) faróis/ levam a luz para o outro lado/ como rastros do dia”. 

Se tais aspectos o aproximam da poesia cabralina, o tom algo resignado ou impotente tende a separá-lo do poeta pernambucano, cujafaca lâmina” confere à sua obra certa rigidez temperamental ausente em Tarso. A “concreção do abstrato” e a “abstração do concreto”, identificadas na obra de Cabral por Benedito Nunes(4), aqui cedem espaço ao poeta sempre em situação de espanto ou impotência diante do mundo previsível e rotineiro, espécie de “estranho familiar”. Ora, é precisamente esse o sentimento tantas vezes apontado como característico da poesia de Drummond, evocado direta ou indiretamente no livro(5). E assim, correndo todo o risco inerente a semelhantes reduções teóricas, temos um poeta que alia a economia cabralina ao tom drummondiano, com sensível predominância do segundo. Isso, naturalmente, apenas como parâmetro muito redutor e movediço, pois no próprio livro é reconhecida a dívida para com Lorca, Raul Bopp, Bandeira, Vinícius, Pessoa, Rilke, Rosa e Mário Faustino, sendo ingênuo desprezar o impacto de tais nomes na formação da dicção peculiar de Tarso de Melo. Além disso, não custa lembrar, as equações costumam ser inexatas em literatura

Uma poesia literal, cotidiana, lacunar e, por vezes, metalingüística. Não parece nada novo: grande parte da literatura moderna assim o é. Ingenuidade pensar, contudo, que tais aspectos sejam singulares e inteiriços, pois naturalmente comportam inumeráveis rearranjos e gradações. O cotidiano de Tarso, por exemplo, não é o cotidiano da “literatura marginal” de Paulo Lins ou Ferréz, na qual a crueza se confunde com a crueldade, infelizmente real e rotineira. Apesar de um assalto ou atropelamento figurarem eventualmente em Carbono, aqui o cotidiano não fornece, em geral, munição para os programas policiais de fim de tarde. Caberiam bem, como tradução, os versos do poema-título de Resumo do Dia, de Heitor Ferraz: “e a vida oblíqua/ preferiu continuar traindo/ sem matar ninguém.”(6) Ainda assim, também o cotidiano de Ferraz, ao se plasmar sobretudo por um reenfoque, recorte ou descontextualização do banal, com ênfase no doméstico e familiar, distancia-se um pouco dos diasem série” de Carbono, tratados de maneira a sublinhar a violência serena (“diário suicídio”) e o motor da cidade a nos transformar emfuligem para os dias”. 

Também a metalinguagem ou o intertexto, em Carbono, diferem do uso corrente, que tende muitas vezes a colocar a literatura numa posição técnica e acadêmica capaz de afugentar o leitor comum (e às vezes até o especializado...), convencido da perda de comunicabilidade da poesia com a própria experiência. Tarso toma o cuidado de evitar essa orientação: a literatura cumpre, em Carbono, o papel de discutir a posição do homem no mundo, no qual ela evidentemente se inclui, mas sem eclipsar aquela primeira orientação fundamental. Assim, o uso das epígrafes e citações  evita uma assimilação meramente apostólica ou discipular (ou mesmo, ainda pior, a busca do carimbo da erudição para legitimar o passaporte do poeta no país das letras): aqui, elas interessam apenas porque incidem, expressivamente, sobre o que o poeta tem a dizer, seja como ilustração, inspiração ou confronto. Outros sintomas dessa opção pela subordinação da literatura à experiência geral são, por exemplo, as recorrentes imagens da leitura em cenário concreto, freqüentemente interrompida por um fato banal  assinalando a impossibilidade de fuga pelos livros (como o galho que se intromete na leitura de Baudelaire, em "Através"); a ambigüidade do título a unir o papel (mundo das letras) ao cotidiano (mundo) e a capa ostentando pichações, talvez a mais contundente imagem das letras na cidade sem mitos. Entretanto, nada disso quer dizer, absolutamente, condescendência para com o leitor: uma poesia lacunar como a de Tarso demanda necessariamente a sua participação ativa

Tudo isso para dizer, simplesmente, da modernidade natural e espontânea de Tarso, plenamente integrada à sua práxis e matéria – e não apenas traduzida como um conjunto de procedimentos postiços e mal digeridos, arrolados com a única intenção de ostentar a etiqueta do contemporâneo. Se trilhasse o segundo caminho, obteria um fracasso de toda maneira perfeitamente compreensível quando se escreve ainda na casa dos 20 anos. Tendo trilhado, entretanto, o primeiro deles (e não apenas por escolhê-lo, mas por dar conta de semelhante escolha...), Tarso de Melo torna-se, desde logo, mais do que uma promessa, um poeta precocemente seguro, expressivo e impactante num cenário no qual, a torto e a direito, lamenta-se a pobreza da atual poesia brasileira. No caso de Tarso, felizmente, é a torto.

  

Notas 

(1) Mestrando em Literatura Brasileira pela UNICAMP 

(2) Para Benjamin, a percepção própria de nossos dias se caracterizaria pela destruição da “aura” (ou seja, a aparição única de uma coisa distante, por mais perto que ela esteja”, como a contemplação de uma cadeia de montanhas ou de algum galho qualquer) pela técnica da reprodutibilidade (como a fotografia e a filmagem, por exemplo). Cf. especialmente as págs. 169 e 170 de “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica” (1ª versão). Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios sobre literatura e história da cultura (tradução de Sérgio Paulo Rouanet). 7ª ed., São Paulo, Ed. Brasiliense, 1994.  

(3) “Chaque mot est un assemblage instantané d’ un son e d’ un sens, qui n’ ont point de rapport entre eux. (...) Voilà le poète aux prises avec cette matière verbale, obligé de spéculer sur le son et le sens à la fois; de satisfaire non seulement à l’ harmonie, à la période musicale mais encore à des conditions intellectuelles et esthétiques variées, sans compter les règles conventionnelles... Voyez quel effort exigerait l’ entreprise du poète s’ il lui fallait résoudre consciemment tous ces problèmes...” “Poésie et Pensée Abstraite”, p. 1328. Oeuvres I. Paris, Éditions Gallimard, 1957. 

(4) Cf. Poetas Modernos do Brasil: João Cabral de Melo Neto. 2ª ed., Rio de Janeiro, Ed. Vozes, 1974

(5) Logo no início do ensaioInquietudes na Poesia de Drummond”, na p. 95, o crítico identifica na obra do poeta, sobretudo nos livros publicados entre 1935 e 1959, “uma espécie de desconfiança aguda em relação ao que diz e faz.” Vários Escritos. São Paulo, Livraria Duas Cidades, 1970.

(6) Resumo do Dia. São Paulo, Ateliê Editorial, 1996.


Bibliografia

ANDRADE, Carlos Drummond de. Antologia Poética. 14ª ed., Rio de Janeiro, Livraria José Olympia Editora, 1980.

ANDRADE, Oswald de. Pau-Brasil. São Paulo, Globo/ Secretaria de Estado da Cultura, 1990.

BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 7ª ed., São Paulo, Ed. Brasiliense, 1994.

CANDIDO, Antonio. Vários Escritos. São Paulo, Livraria Duas Cidades, 1970.

FERRAZ, Heitor. Resumo do Dia. São Paulo, Ateliê Editorial, 1996.

MELO, Tarso de. Carbono. São Paulo/ Santo André, Nankin Editorial/ Alpharrábio Edições, 2002.

NUNES, Benedito. Poetas Modernos do Brasil: João Cabral de Melo Neto. 2ª ed., Rio de Janeiro, Ed. Vozes, 1974.

VALÉRY, Paul. Oeuvres I. Paris, Éditions Gallimard, 1957.

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