O
leitor
examina, desconfiado,
a capa
do livro.
A concretude da atmosfera
tóxica
e nebulosa
não
demora
a infiltrar-se. Seu
título,
uma advertência:
Carbono.
Logo
abaixo
dele, um
muro
desigual
em
cimento
e pintura
deixa
entrever
os tijolos
mal
alinhados,
sobre
os quais,
a intervalos,
repontam inscrições
a spray
(também
elas
repousam abandonadas pela
metade,
na mensagem
e no acabamento). O leitor
espantado espera
logo
desfazer
o mal
estar
e abre a capa
de uma vez,
à caça
de metáforas
e céu
azul.
Mas
antes
mesmo
de confrontar
o frontispício,
percebe que
um
cinza
empesta o verso
da capa:
trata-se de uma reprodução
em
preto-e-branco do muro
visto
há pouco,
como
se um
papel
carbono
tivesse se intrometido, sorrateiro,
num vão
invisível
do papel
cartão,
tradução
concreta
e literal
do título
a escorraçar,
decidido
e de uma vez
só,
tanto
as metáforas
quanto
o azul.
Já
aflito
e pessimista,
o leitor
procura
logo
pelo
primeiro
poema,
numa tentativa
quase
desesperada. Finge não
ter
visto
ainda
outras duas menções
asfixiantes do título,
no frontispício
e no próprio
poema
de abertura,
ainda
reflexos
inopinados
daquele invisível
papel
carbono.
Apesar
de a pressa
violentar
as epígrafes,
detém-se numa delas, apensa
ao poema,
pois
parece ter
lido, fugaz
como
uma miragem,
algo
como
“brisa”
ou
“azul”.
Respira
aliviado ao ver
que
não
é miragem,
mas
realidade:
“No Nordeste
faz calor
também/
Mas
lá
tem brisa:/
Vamos viver
de brisa,
Anarina.” A citação
de Bandeira
penetra-o como
um
bálsamo,
provendo-o do céu
limpo
e do ar
até
então
sistematicamente sonegados: por
um
instante,
a brisa
e a afetividade
azuis do Nordeste
expulsaram a asfixia
e a fleuma
do Sudeste.
Fôlego
retomado, entrega-se, corajoso
e arejado, à leitura
do poema
inicial.
Cada
verso
dilui ainda
mais
o azul
e a brisa
tão
rarefeitos: “respiração
frustrada”, “monóxidos,
dióxidos”,
“sua
asma
agora
é minha”,
“sufoco cinza”.
De quebra,
também
escoa pelo
ralo
a esperança
de felicidade
sentimental
latente
na epígrafe:
à “respiração
frustrada” pela
poluição,
une-se certo
“aperto
que
toma
meu
peito,
sua
falta”,
como
se lê
nas palavras
finais
do poema.
Quedo
e ridículo
como
o albatroz
de Baudelaire, o leitor
desfaz-se logo
do volume.
Mas
retoma-o logo
para
abanar-se, transformando-o num providencial
leque,
como
a procurar
instintivamente
no veneno
seu
próprio
antídoto.
Se
nosso
leitor
fosse menos
covarde
e caricatural, ao recomeçar
a leitura
de Carbono
(São
Paulo/ Santo
André, Nankin Editorial/
Alpharrábio Edições,
2002) descobriria, aos poucos,
um
livro
coeso e seguro
de um
poeta
mais
do que
promissor,
porque
seu
talento
já
é um
fato
consumado
nessas poucas e densas páginas
quase
estreantes.
“A cidade
sem
mitos”
anuncia-se desde
a capa
e segue assim,
num mesmo
passo,
até
a contracapa.
O poema
inicial
alerta-nos: o poeta
“poderia
falar
do azul”,
embora
a paisagem
sugira o cinza,
aqui
predominantemente literal
(ao contrário
dos famosos
versos
drummondianos “A tarde
talvez
fosse azul/
não
houvesse tantos
desejos”,
nos
quais
a cor
remete metaforicamente à castidade).
Assim
como
esse
indireto
distanciamento
de Drummond atenua-se páginas
depois
num poema
em
que
se atesta a dívida
para
com
o poeta
mineiro
(“CDA: presença...”),
o mesmo
deverá ocorrer
com
Bandeira:
a despeito
do confronto
inicial,
ele
realinha-se à perspectiva
de Tarso
logo
no terceiro
poema
de Carbono,
“Deserto
21”. Aqui,
os versos
“que
importam a paisagem.../
... a linha
do horizonte”,
do “Poema
do Beco”,
viram parte
integrante
do próprio
texto,
numa fusão
significativa
de vozes.
O foco
de ambos,
agora,
é o mesmo:
a cidade-cilada, a cidade-labirinto – que,
aliás,
nada
tem a ver
com
a “cidade
sem
mitos”
de Oswald de Andrade, na qual
se goza
de uma felicidade
desmotorizada (pois
“anda
a pé”...)
em
plenas “10 horas
azuis”. Escrito
quase
um
século
depois,
em
Carbono
não
parece haver
nada
mais
mitificado.
Sem
espaço
para
a idealização, as flores
só
comparecem “à margem
de um
rio
podre”
(“Cidade”)
e, recusado obviamente o arco-íris,
a poça
“é o que
fica da chuva”
(“Deserto
14”). Vítima
máxima
dessa perspectiva,
a cor
azul
continua a se desbotar
(“no azul/
dispostas em
planos/
confundem-se/ cinzas/
suas
asas,
aviões
(...), em
“Tarde”;
“o céu
ainda
mais
cinza”,
em
“Deserto
14”; “o céu
de sábado/
à tarde/
imperfeito
adere ao asfalto”,
em
“Deserto
21”; “o céu
rachado e as goteiras/
também
o céu
cortado a faca”,
em
“Cidade”)
e assim
será até
que
se feche o livro
e confronte-se, na contracapa,
o muro
rachado no qual
bóia
um
pneu
com
os dizeres
“Borracharia MECAN”, ele
próprio
tapando a cor
ferida
pelos
tijolos
à mostra
e pelo
spray
(este
sim,
uma poderosa
síntese
da mensagem
urbana
e, não
à toa,
título
de um
dos poemas).
Como
deixa
entrever
essa perspectiva,
a cidade-cilada, em
Carbono,
é vista
como
uma engrenagem
arbitrária
e destruidora. Parece haver
uma rebelião
da Criação
contra
o Criador:
o homem
resigna-se ao poder
autômato
e voraz
da Urbe-Frankenstein, tornando-se também
sua
presa
(“nossos
corpos/
fuligem
para
os dias”,
dizem os penetrantes
versos
de “Deserto
14”). E, nesse compasso,
também
a natureza
acaba assimilada pela
lógica
urbana:
“o sol
intercala-se à poeira/
e aos arames”,
em
“Deserto
3; “interstícios
no azul/
(o horizonte,
um
muro,
música
dos carros),
em
“Deserto
6”; “desde
a janela/
um
sol
em
blocos
des-/ cortina
o que
sobrou, sob/
móveis,
do escuro
céu/
da noite
passada”).
Assim,
nem
a natureza,
nem
deus
e nem
o próprio
homem
dominam a Cidade,
mas
ela
é quem
os governa
através
de sua
irreversível
teia
de códigos
e de concreto.
Um
tal
sentimento
de impotência
comunica-se, naturalmente,
à própria
possibilidade de representação
artística
da realidade.
Não
por
acaso,
a epígrafe
do livro,
retirada
de The Story of the Art, de E. H. Gombrich, aponta para
a criação
de uma nova
realidade
e não
para
a sua
presumível reprodução.
O trecho
atenta,
ainda,
para
a similitude
desse procedimento com
aquele
decorrente de nosso
desconhecimento
das coisas:
a recriação
torna-se, nesse contexto,
quase
uma imposição.
Carbono
registra
pelo
menos
duas razões
para
essa apreensão
apenas
parcial
do real.
A primeira,
tomando carona
numa epígrafe
sobre
a parcialidade dos olhos,
retirada
de Guimarães Rosa,
prende-se à falibilidade dos sentimentos
humanos:
assim,
em
“Cidade,
ao mundo
corroído pela
visão
da suja
natureza
urbana
(“um
balde
no entulho”,
“um
corpo
oco
sob/
acrílico
baço,
mofo/
nu
na coluna
pensa”)
corresponde outro
íntegro
e maciço
apreendido
pelo
tato
(“(...) cegos/
digitam alumínio/
e um
mundo
de mármore”).
Além
disso, o descompasso
entre
um
mundo
simultâneo
e sensorial,
de um
lado,
e o discurso
linear
e referencial, de outro,
torna
a reprodução
fiel
da realidade
impossível.
Assim,
em
“Fora
d´Água”
parece normal
que
“o desenho
perca/
aquilo
que
quer
figurar”,
como
ocorre com
o peixe
no anzol,
“cujo
único
rastro
é o grito/
vermelho”:
a sinestesia inerente
ao mundo
desafia
a figuração meramente
verbal
ou
visual.
Dessa
forma,
estamos frente
não
só
a um
poeta
que
desconfia do que
vê
como
também
do que
diz ( (“desconfio/ sempre
do que
digo)”, diz literalmente
em
“Formigas”)
: não
poderia
ser
outro
o resultado
da tensão
entre
mundo
e verbo.
“Inibido olhar
de fora/
falar
incerto (...)” são
os versos
de abertura
de “Paisagem”,
encerrando-se por
um
verso
igualmente
sugestivo
(“persegue o que
não
se diz”), tendo antes
já
referido “as palavras,
já
inúteis”. Imagem
contundente
desse abandono
das palavras
no mundo
é a do rádio,
cujas duas aparições
ao longo
do livro
o dão como
“chiante” ou
“mudo”.
Por
tudo
isso,
longe
estamos do poeta-oráculo ou
iluminado, detentor
dum conhecimento
superior
das coisas
do mundo.
Ao invés
disso, temos um
poeta
cuja
sensação
de impotência
não
deriva
da Vida
entendida
como
Mistério,
Benção ou
Perdição,
mas
da vidinha consumida em
meio
a cenários
e objetos
insignificantes
(“por
que
o espelho,
o asseio,
a rotina
dos sapatos”,
perguntam os versos
de “Por
Que”)
responsáveis,
aliás,
pelo
tom
do vocabulário
de Carbono:
“plástico”,
“fumaça”,
“fuligem”,
“cartões”,
“monóxidos”,
“dióxidos”.
Tarso
alinha-se aos poetas
que
desconhecem, sempre
em
defasagem,
situação
capaz
de, como
sugere a epígrafe,
tornar-se um
inesperado
motor
para
a criação
artística,
assim
movida mais
pela
falta
do que
pelo
excesso.
Sintoma
da queda
da “aura”
no domínio
da representação,
fenômeno
aludido por
Walter Benjamin já
na década
de 30.(2)
Num
contexto
de “falar
incerto”, onde
“a paisagem
anula a fala”,
o discurso
sobrevive como
pode. A sintaxe
sustenta-se aos pedaços:
parênteses
são
abertos
para
sempre
(“((...)luas/
e estrelas/
em
bloco
brilham, em
“Spray”;
“(...) um
rádio/
mudo
(incêndio,
indícios”,
em
“Deserto
3”), enunciam-se pronomes
relativos
que
nada
relacionam (“trêmula
arquitetura
em
que”,
em
“Deserto
2”). Pelos
fiapos
da linguagem,
entrevemos as lascas
da paisagem
natural
ou
humana:
“disposta
a anatomia
em
cacos”;
“estudo
de ausências,/
linhas
que
não
se encontram/ branco
(...)” (ambas em
“Matisse”) ou
“(imagens
guardadas/ no espaço
inconstante/
de escadas)
despedaçar/
a fala
(...)”, em
“M., 2”.
O
afrouxamento
da concatenação
sintática
viabiliza uma dinâmica
alternância
de quadros,
postos
em
tensão
e dispostos
numa unidade
tão
precária
e provisória
quanto
ilustrativa
dessa fragmentação
ao mesmo
tempo
incômoda
e familiar.
Em
“Deserto
20”, por
exemplo,
é absolutamente
inesperada
a intromissão
de semelhantes
parênteses
( “OUTRO
PASSO,
o corpo/
do gesto
extinto
entre
vigas/
(vacinas
contra
a raiva)),
que
funcionam como
um
abrupto
redirecionamento de ponto
de vista.
Nesse passo,
aqui
ou
ali
trai-se uma certa
nostalgia
da crença
na unidade,
tão
consoladora quanto
enganosa:
“recuperar/
com
suturas/
um
duto
// levando/ do céu
ao solo/
nada”
(“Spray”);
“_ varal
a ligar
quem
passa
rápido
e a paisagem
desidratada ao seu
redor...”
(“Deserto
2”). E, em
“Cansaço,
Ruas”,
o Livro
do Desassossego,
de Fernando Pessoa,
serve como
emblema
dessa representação
possível
do real
(“o que
fingimos perder”:
a relação
entre
mundo
e verbo),
embora
esse
“possível”
esteja fadado às ruínas:
“na paisagem
deixada à página/
o rastro
que
une- de ruína/
a ruína
_ o que
fingimos perder”.
O duto,
o varal,
o rastro,
as suturas,
ou
ainda,
em
outros
poemas,
o túnel
e o corredor,
configuram imagens
da união
literal
e precária
à qual
se lança,
num misto
de coragem
e resignação.
Nesse
estado
de coisas,
como
bem
observa Carlito Azevedo na orelha
do livro,
o verso
quase
sempre
é “curto
e seco”.
Em
“Deitar”,
por
exemplo,
uma caudalosa
sucessão
de versos
monossílabos
dispõe um
traço
a simular
o percurso do rio
do sono.
Matéria
e forma
também
se unem em
versos
como
“sons
se desmontam: nu-/ vem (...)”, num registro
ainda
muito
econômico.
Se eventualmente
o poeta
deixa-se extravasar
mais
longa
e musicalmente, é porque
a matéria
assim
o pede: em
“Por
Que”,
o senso
rítmico, encanatório e reiterativo
integra-se à avalanche
dos atos
automáticos
do dia-a-dia
(como
o uso
de códigos
e senhas,
por
exemplo).
Mas,
no geral,
a musicalidade é discreta,
menos
rítmica do que
suavemente
aliterativa ou
assonante
(“asfixias,
monóxidos,
dióxidos”,
em
“Carbono”;
“incêndio,
indícios”,
em
“Deserto
3”), não
se revelando óbvia
ou
cantabile. E isso
por
boas razões.
Primeiro,
para
evitar
imprimir
tom
sentimental
a matéria
cinza
e asfixiante.
Segundo,
para
melhor
incorporar
a presença
do ruído
na cidade
antimusical, na qual
as goteiras
sobre
o balde
de entulho
são
“maiores
do que
o sono”
(“Cidade”),
à tarde,
ouvem-se telefones
ao fundo
e o barulho
de avião
(”Tarde”);
se há música
é a “(...) dos latidos
distantes”,
mesmo
em
alta
noite
(“Sempre”);
do “rádio
chiante” ausentam-se as canções
(“Paisagem”).
Aliás,
nesse contexto
a própria
música
traveste-se de ruído
inútil
(“noto
mudo
um
vaso/
e a música
às moscas”,
em
“Cidade”).
Por
fim,
uma última
razão
para
a atenuada presença
musical nos
poemas
é o seu
apelo
virtualmente
demagógico ou
encantatório, capaz
de desviar
a atenção
do leitor
ávido
por
repouso
ou
oxigênio.
Arnold Schoenberg, na ópera
inacabada
Moises e Aarão, põe na boca
deste último,
demagógico e populista, as inflexões
ornadas do bel canto
tradicional, enquanto
a locução
lúcida
e serena,
embora
de menor
penetração
popular,
reserva-se ao primeiro,
que
entoa o chamado “Sprechgesang” (algo
como
“canto-fala”, espécie
de fusão
de ambos).
Aliás,
num século
em
que
a própria
música
rebelou-se contra
as convenções
do “musical” (um
compositor
como
John Cage dedicou-se à exploração
do ruído
e do silêncio),
não
espanta
que
também
a poesia
a tratasse com
certa
distância
(nesse sentido,
Paul
Valéry alertava para
o risco
de a música
obliterar
a especificidade da poesia)(3).
Estas
considerações
aproximam Tarso
de um
poeta
como
João Cabral de Melo Neto.
A musicalidade discreta
(embora
Cabral a torne ainda
mais
diluída) e o agudo
senso
plástico
são
comuns
a ambos.
A epígrafe
do livro,
sobre
a pintura
de Magritte, citado uma vez
mais
no poema
de abertura,
além
da menção
à obra
de Matisse, título
do penúltimo
texto
do volume,
são
índices
dessa forte
presença
em
Carbono.
Do primeiro,
aproveita o sentido
de recriação
compulsória
do real;
do segundo,
a construção
alicerçada no nada
ou
insuficiente
(“estudo
de ausências”,
“(...) a anatomia
em
cacos”),
ambas as concepções
decisivas, como
já
vimos, na orientação
do livro.
Aliás,
a própria
opção
pela
literalidade
reforça
necessariamente o dado
imagético dos poemas,
entregues
assim
a uma exploração
concreta
da paisagem.
Além
disso, Tarso
parece naturalmente
inclinado à pintura
de quadros
impactantes (tome-se, como
exemplo,
a bela
imagem
de “Deserto
2”: “(...) faróis/ levam a luz
para
o outro
lado/
como
rastros
do dia”.
Se
tais
aspectos
o aproximam da poesia
cabralina, o tom
algo
resignado
ou
impotente tende a separá-lo do poeta
pernambucano,
cuja
“faca
só
lâmina”
confere à sua
obra
certa
rigidez
temperamental
ausente
em
Tarso.
A “concreção
do abstrato”
e a “abstração
do concreto”,
identificadas na obra
de Cabral por
Benedito Nunes(4),
aqui
cedem espaço
ao poeta
sempre
em
situação
de espanto
ou
impotência
diante
do mundo
previsível e rotineiro,
espécie
de “estranho
familiar”.
Ora,
é precisamente
esse
o sentimento
tantas vezes
apontado como
característico
da poesia
de Drummond, evocado direta
ou
indiretamente
no livro(5).
E assim,
correndo todo
o risco
inerente
a semelhantes
reduções teóricas, temos um
poeta
que
alia a economia
cabralina ao tom
drummondiano, com
sensível
predominância
do segundo.
Isso,
naturalmente,
apenas
como
parâmetro
muito
redutor e movediço,
pois
no próprio
livro
é reconhecida a dívida
para
com
Lorca, Raul Bopp, Bandeira,
Vinícius, Pessoa,
Rilke, Rosa
e Mário Faustino, sendo ingênuo
desprezar
o impacto
de tais
nomes
na formação
da dicção
já
peculiar
de Tarso
de Melo. Além
disso, não
custa
lembrar,
as equações
costumam ser
inexatas em
literatura.
Uma
poesia
literal,
cotidiana,
lacunar e, por
vezes,
metalingüística. Não
parece nada
novo:
grande
parte
da literatura
moderna
assim
o é. Ingenuidade pensar,
contudo,
que
tais
aspectos
sejam singulares
e inteiriços,
pois
naturalmente
comportam inumeráveis
rearranjos e gradações.
O cotidiano
de Tarso,
por
exemplo,
não
é o cotidiano
da “literatura
marginal”
de Paulo Lins ou
Ferréz, na qual
a crueza se confunde com
a crueldade,
infelizmente
real
e rotineira.
Apesar
de um
assalto
ou
atropelamento figurarem eventualmente
em
Carbono,
aqui
o cotidiano
não
fornece, em
geral,
munição
para
os programas
policiais
de fim
de tarde.
Caberiam bem,
como
tradução,
os versos
do poema-título de Resumo
do Dia,
de Heitor Ferraz: “e a vida
oblíqua/
preferiu continuar
traindo/ sem
matar
ninguém.”(6) Ainda
assim,
também
o cotidiano
de Ferraz, ao se plasmar
sobretudo
por
um
reenfoque, recorte ou
descontextualização do banal,
com
ênfase
no doméstico
e familiar,
distancia-se um
pouco
dos dias
“em
série”
de Carbono,
tratados
de maneira
a sublinhar
a violência
serena
(“diário
suicídio”)
e o motor
da cidade
a nos
transformar
em
“fuligem
para
os dias”.
Também
a metalinguagem
ou
o intertexto, em
Carbono,
diferem do uso
corrente,
que
tende muitas vezes
a colocar
a literatura
numa posição
técnica
e acadêmica
capaz
de afugentar
o leitor
comum
(e às vezes
até
o especializado...), convencido
da perda
de comunicabilidade da poesia
com
a própria
experiência.
Tarso
toma
o cuidado
de evitar
essa orientação:
a literatura
cumpre, em
Carbono,
o papel
de discutir
a posição
do homem
no mundo,
no qual
ela
evidentemente
se inclui, mas
sem
eclipsar
aquela primeira
orientação
fundamental.
Assim,
o uso
das epígrafes
e citações
evita uma assimilação
meramente
apostólica ou
discipular
(ou
mesmo,
ainda
pior,
a busca
do carimbo
da erudição
para
legitimar
o passaporte
do poeta
no país
das letras):
aqui,
elas
interessam apenas
porque
incidem, expressivamente,
sobre
o que
o poeta
tem a dizer,
seja como
ilustração,
inspiração
ou
confronto.
Outros
sintomas
dessa opção
pela
subordinação
da literatura
à experiência
geral
são,
por
exemplo,
as recorrentes
imagens
da leitura
em
cenário
concreto,
freqüentemente
interrompida por
um
fato
banal
assinalando a impossibilidade de fuga
pelos
livros
(como
o galho
que
se intromete na leitura
de Baudelaire, em
"Através");
a ambigüidade
do título
a unir
o papel
(mundo
das letras)
ao cotidiano
(mundo)
e a capa
ostentando pichações,
talvez
a mais
contundente
imagem
das letras
na cidade
sem
mitos.
Entretanto,
nada
disso quer
dizer,
absolutamente,
condescendência
para
com
o leitor:
uma poesia
lacunar como
a de Tarso
demanda
necessariamente a sua
participação ativa.
Tudo
isso
para
dizer,
simplesmente,
da modernidade natural
e espontânea
de Tarso,
plenamente
integrada à sua
práxis
e matéria
– e não
apenas
traduzida como
um
conjunto
de procedimentos postiços
e mal
digeridos, arrolados com
a única
intenção
de ostentar
a etiqueta
do contemporâneo.
Se trilhasse o segundo
caminho,
obteria um
fracasso
de toda
maneira
perfeitamente
compreensível
quando
se escreve ainda
na casa
dos 20 anos.
Tendo trilhado, entretanto,
o primeiro
deles (e não
apenas
por
escolhê-lo, mas
por
dar
conta
de semelhante
escolha...),
Tarso
de Melo torna-se, desde
logo,
mais
do que
uma promessa,
um
poeta
precocemente
seguro,
expressivo
e impactante num cenário
no qual,
a torto
e a direito,
lamenta-se a pobreza
da atual
poesia
brasileira.
No caso
de Tarso,
felizmente,
é a torto.
Notas
Bibliografia
ANDRADE,
Carlos Drummond de. Antologia
Poética.
14ª ed., Rio
de Janeiro,
Livraria
José Olympia Editora,
1980.
ANDRADE,
Oswald de. Pau-Brasil.
São
Paulo, Globo/
Secretaria
de Estado
da Cultura,
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