A celebração da terra
ou
Notas sobre a pintura de Sebastião Rodrigues
Gustavo Henrique Dionisio(1)

À frente das satisfações obtidas
através das fantasias ergue-se a fruição
das obras de arte, fruição que, por
intermédio do artista, é tornada acessível
inclusive àqueles não criadores.

(Sigmund Freud, em O mal-estar na civilização).
Desde o primeiro momento em que adentrei na intimidade dos quadros de Sebastião Rodrigues – isso, confessadamente, há um bom tempo, eu lá pelos treze ou quatorze anos de idade, na minha cidade natal, onde o pintor vive até hoje(2) – houve uma espécie de identificação da qual nunca mais pude ou quis escapar. Acredito mesmo que esse contato imberbe veio a ser o protagonista de todo meu interesse atual pela esfera das artes plásticas; talvez o desejo mesmo de escrever sobre ele algumas notas críticas repouse nas entrelinhas de uma relação tão intensa que veio sendo desenvolvida ao longo de todos estes anos. Espectador privilegiado, embora nunca tenha tido a coragem suficiente para encarar o conjunto mais amplo de sua obra, senti-me finalmente à vontade para urdir, com um mínimo de distanciamento, é certo, algumas costuras nessa vasta tessitura que é a trajetória de sua obra.

Antes de mais nada, algumas advertências devem de antemão ser destacadas, e que dizem respeito aos propósitos “metodológicos” deste trabalho. Em primeiro lugar, não se trata de um comentário elaborado por ocasião de exposição realizada pelo artista, como de costume ocorre na crítica profissionalizada (isto é, que não é o meu caso), mas sim de um exercício de compreensão do conjunto de suas obras, ancorado sem dúvida alguma numa espécie de crítica psicanalítica (com isso diferencio os modos de ação com respeito à psicanálise aplicada, e me aproximo mais de autores como Peter Fuller e André Green), tipo de leitura certamente não hegemônico no campo das artes e que ainda, por outro lado, não se pode ser levado com todo o rigor ao pé da letra. Dentro desta linha de raciocínio, Green considera que todo crítico influenciado pela psicanálise, como escritor-leitor, é responsável pela tarefa última de produzir uma prática teórica, já que “em todos os planos em que pode ser exercida, [a psicanálise] é fundamentalmente sustentada por uma atividade crítica”, limitando um campo que para o crítico-analista mais tarde poderá ser chamado, “na falta de um termo mais adequado, de epistemologia subjetiva”(3). Dessa maneira, a tal práxis será obrigatório ter como meta o estudo e a interpretação das relações entre o inconsciente (no sentido freudiano do termo, necessário frisar) e aquilo que nos é oferecido pela obra. Como paralela à atividade do crítico literário, a crítica de arte que segue estes caminhos deve compreender que nas obras – sejam textos ou não – a “existência desse inconsciente está presente nas articulações temáticas, nas censuras dos textos, nos silêncios brutais, nas ruturas de tom e sobretudo nas manchas, nas escórias, nos detalhes aparentemente pouco importantes”, aquilo procurarei perscrutar desde já, cuja elaboração textual, fatalmente, atinge questões de escritura e transmissão psicanalíticos, como deseja Joel Birman. Aliás, diga-se de passagem, esta idéia de mancha servirá, para Lacan(4), de excelente exemplo geográfico do que pode se apreender por esse Inconsciente. Pois bem, daqui pra frente na minha reflexão a mancha ocupará um lugar de mediador eqüidistante entre as concepções críticas e psicanalíticas.

Em segundo lugar, nessa medida o interesse máximo destas linhas se dispõe pela compreensão do que uma escuta de obras de arte pode levar, transformando a recepção da obra numa leitura flutuante como experiência estética. Rapidamente, dentre as três opções tomadas pelos psicanalistas interessados em arte (vejamos a divisão feita por E. H. Spitz(5)), pretendo me pautar naquela que tem como ponto de partida a obra de arte e nela restringe sua observação quanto ao que incita de maneira associativa(6) naquele que a contempla. O leitor precisa desligá-la, acrescenta A. Green, refazer o caminho cujos rastros de processamento secundário nos parecem manifestos, obviamente disfarçados pela necessidade artística de acabamento: o objetivo do crítico se limita portanto a quebrar a “secundaridade para encontrar, aquém dos processos de ligação, o desligamento encoberto pela ligação”(7). Além do mais, acredito, algumas condições extra-artísticas (se é que de fato já não perderam seu estatuto nesta abordagem) acabarão sendo levadas em conta, sobretudo por conta do convívio estabelecido com o artista, que já o acompanho há alguns anos, condição inclusive que como penso exerce menos a função de limite interpretativo e mais a de sine qua non para esta rápida exploração.

A série mais recente da obra de Sebastião Rodrigues completa um circuito de trabalhos que acompanha o percurso desde algumas marcas nuançadas de figuração, resquícios de uma nítida conversa com Carlos Araújo (desse diálogo retirado o aspecto religioso, por certo), como os do período inicial, até as mais atualizadas grandes manchas, plasmadas sobre a tela branca por meio do impulso controlado do acrílico. Aliás, as dimensões das obras de Sebastião nunca tiveram um cerco limitado; como sua orientação plástica foi determinada pela superfície, seja lisa ou rugosa, da tela (poucos ainda tem coragem de usá-la, não?), na lista de realizações encontramos formatos os mais diferentes; retângulos que no geral servem de medida horizontal – quanto a isso, escreveu Aguinaldo Gonçalves, crítico bastante próximo do artista – quadrados adaptáveis e intercambiáveis – como o exemplo das obras que, ao gosto do espectador podem ser re-organizadas funcionalmente na sua apresentação –, telas em círculo, etc. Destaco estas diferentes formas de enquadramento funcional por dois motivos, decerto fundamentais para compreender a ambivalência deste conjunto (conflito que Peter Fuller, a exemplo do gênero de espaço concebido por Cézanne, relaciona com o seio(8); voltaremos com mais vagar à importância fundamental deste aspecto), ou melhor, tal equivocidade – entendida como supressão da facilidade – que se fazem ouvir nos contra-fluxos suficientemente explicáveis: essa geometria rudimentar de delimitação contrasta justamente com o interior pictórico, que olhando com distância nunca é ou foi geométrico, mas, muito pelo contrário, traz consigo rastros de uma influência inequívoca – não é preciso ser nenhum gênio para admiti-lo – do valor estético adquirido pelas manchas, carregadas de uma vez por todas pelos ventos do expressionismo abstrato, que como é sabido no Brasil entrou com toda força no início dos anos 60, quando em 70 já era ficara no passo, quer dizer, justo ali no “pré-início” da carreira do jovem Sebastião (sua primeira exposição importante aconteceu na década seguinte). Outro aspecto que concerne ao quadro é que o nosso artista acumula também, como se não bastasse, a função do artesão, já que é o próprio Sebastião quem fabrica o suporte material de suas obras. Isso mesmo: se fossemos agora ao ateliê, lá se encontraria o artista, no quintal de casa, pondo a mão na massa e com muito prazer construindo como um marceneiro todas as telas a serem pintadas, juntando ainda a madeira e o pano há pouco fabricados ao seu gosto, e daí por diante a primeira demão branca... com isso quero apenas salientar que a multiplicidade criadora do pintor é desde o início almejada, minuciosamente planejada, para ser no fim condensada num emaranhado de tintas e texturas; o trabalho inicial da mão na matéria bruta da estrutura do quadro evoca e projeta o trabalho posterior da elegância estilística trazida nas manchas (e que fique razoavelmente claro, não se trata de tachisme, de um maneirismo excessivo, se quisermos), sofrendo uma antecipação complexa dos elementos a serem depositados no seu acabamento. São palavras de Manoel Rodrigues Vaz, crítico português, as que abreviam contra a exaustão de repetir-me: Sebastião Rodrigues “não procura a realidade, mas cria-a através da construção da matéria. Este é realmente o seu ponto de partida, não para o abstrato puro e duro, de feição minimalista e conceptualista, mas representações que, não tendo nada a ver com a realidade, são outra realidade em si de certo modo inventada, de vários modos representando situações e idéias, portanto, a realidade para além do meramente físico”. Da frase destaquei para o além do meramente físico já que voltarei, mais tarde e do meu modo, a discutir essa concepção, criada evidentemente em outro contexto, que contudo servirá de subsídio oportuno ao que pretendo construir logo mais. (figuras 1 e 2)

       

Ainda pesquisando um pouco mais esta dimensão formal – que de fato e em movimento coetâneo concentra os contornos de sua natureza afetiva –, se olharmos os quadros bem de perto, podemos antever a presença de duas vertentes; uma, ora quanto ao material concreto usado na concepção, ou seja, a superfície pintada (uma continuidade do que discuti no momento imediatamente anterior), ora outra, quando no balanço plástico diz respeito à inserção incidental de pequenas formas, estas sim dotadas de uma geometria inescapável, dispersas lá e cá. A lista dos materiais da construção, mesclados a princípio ao acrílico, vai do pó de mármore – aquilo que garante as texturas, absolutamente originais –, a, por vezes ainda, papel artesanal – já sabemos, via de regra, produzido pelo próprio artista – para não falar em jazz, rock pesado, fados portugueses, música regional, enfim, elementos de composição! tampouco dispensáveis. Completando tal especificidade concreta, que ele chama simplesmente de “técnica mista”, vê-se amiúde o desenho de pequenos triângulos, círculos ou linhas, riscas intensas feitas de fora a fora na superfície rugosa – são mais costuras ou “pontos” médicos –, delineadas através do plano e que retiram o contra-fluxo insistente de preenchimento total da tela. Eis o ritmo, que como escreve Aguinaldo Gonçalves, “não é resultado de uma linha, mas de uma sintonia entre os elementos”. Por fim, a isso se soma a presença de mais uma linha de base horizontal, “que perpassa cada uma das obras”, sendo que em uma por uma ela (a linha) “se dá num lugar distinto e determinante de uma espécie de força de equilíbrio do contexto plástico”. E, de sobra, nos seus últimos trabalhos, eis que surpreendentemente surge a incidência de poemas, escritos para não serem lidos, como ele mesmo atesta.

No conjunto, a clássica relação entre figura e fundo é uma vez mais questionada não no seu sentido imediato, ligado à expressividade intempestiva da pincelada livre, mas nos modos pensados de fazer do artista, quando por exemplo ele se utiliza de retalhos de pinturas anteriores para reconstruir novas obras, fazendo-os parte de uma nova configuração, ora como personagem principal, ora como coadjuvante (configuração que em muitos casos não tem nada a ver com aquela peça previamente concebida, uma vez estando a obra finalizada, e assim dela foi-se retirado esse “resto”). Daí que uma possível aproximação com Alex Flemming(9) não seja se todo dispensável, haja vista pela re-utilização também em Flemming de antigos fragmentos, restos de obra, sendo redistribuídos em trabalhos posteriores, quer dizer, com o largo emprego da colagem, superposição de recortes de tela ou de tinta, dando na verdade um ar de que a tela sai para fora e vem ao nosso encontro, criando uma textura grossa e compacta. Se Manabu Mabe olhasse para Sebastião também se reconheceria, viria na escolha tonal do artista a proximidade térrea com a sua pintura, cheia de vermelhos sangue (opção que não impede que ultimamente Sebastião venha usando muito o azul), organicamente escorridos e decompostos nas demais possibilidades de gradação. No meu entender, o bate-papo com a história da arte não pára por aí, mas se estende, mesmo que de passagem, ao distante Willem de Kooning, a não ser pela opção de cores; também o artista holandês (radicado nos Estados Unidos) não se absteve da vontade de coadunar a qualidade expressiva da cor lado a lado com uma figuração não sistemática ainda que geometricamente impulsiva. Evidentemente, repito, no caso do nosso artista estamos nos limites de numa poética gestual, cuja ideologia visual talvez dependa mais do tachismo francês que do expressionismo abstrato “americano”, como é o exemplo de de Kooning. No entanto, o fato não me impede de observar que na obra de Sebastião Rodrigues, tomando de empréstimo as palavras de Peter Fuller sobre o mesmo de Kooning, “a pele da pintura ela mesma começa a representar aquilo que é representado”(10).

Por ocasião dessa mistura não-eclética de elementos novos e usados, voltando à citação das pequenas formas “geométricas” encontradas ao longo do que podemos ver nos quadros de Sebastião Rodrigues, ao olhá-las mais uma vez, tem-se a intuição de que reclamam, sem mediação, para um tempo passado, como a bem da verdade ocorre com o aspecto mais geral no conjunto da obra: ali observamos a presença de alguns desenhos (que aliás, no âmbito técnico, são minoria), feitos como que com a rusticidade de uma estaca de pau, retendo porventura a função simbólica de inscrições rupestres, ornamentais no seu caráter primitivo. A problemática do tempo passado no trabalho de Sebastião é encontrada nas pistas da ambigüidade, fator que como adiantei considero elementar na sua obra, que retorna uma vez mais nas escoriações encontradas no interior da massa plástica, fazendo-se disfarçar nas raspagens voluntárias que produzem ranhuras como se no impulso criativo o artista as quisesse destruir (as obras), para que do zero partisse a um novo começo, princípio puro de negatividade. A deteriorização voluntária da tela nos insinua o ardil de que são velhas, de que foram desgastadas com o passar de anos e anos, quando na verdade acabaram de vir a público. Por certo e exatamente por esta aparência primitiva, encontra-se em toda esta pintura a urgência do temperamento decorativo, que ademais não se resume em si, cimentado ao espírito de liberdade lúdica, quer dizer, tributário, por outro lado, apenas da preocupação não totalitária de apresentação da forma no seu momento nascente, não-acabado. E é no ponto exato desse inacabamento que vem se destacar a força pulsante das obras de Sebastião.

Aproveitemos portanto e andemos mais para frente: considero que uma das mais importantes características desta pintura é a cônscia espontaneidade da sua criação.

Ora, este aspecto espontâneo da obra pode ser precisamente definido pelas poucas palavras seguintes, a mim por ele confessadas em nosso último encontro: “eu me lanço em cima da tela antes que ela reaja” (imaginemos, como antes supus, que a tela saia do quadro). Há todo um sentido reflexivo – quem é o solicitado aqui? – e ao mesmo tempo bélico e visceral nestas duplas relações: diante do tecido nu, o artista se deixa experimentar pelo objeto, em cujo sentido vetorial a referência se perde, e isso numa tal verticalidade que bem como as árvores um dia ao menos esbugalharam seus olhos na direção de Cézanne, Sebastião tem medo de que ela (a tela) revide o golpe do pincel e o deixe sem forças estatelado pelo chão. Nem é preciso dizer que essas declarações indicam todo o caráter quase assustador da sua criação, que inclusive vez em quando aplaca o sono. Chegamos ao ponto: com dada precisão, essa deve ser a reação principal que sua obra provoca no espectador, ao menos naqueles que desta minha leitura compartilharem. Há um je ne sais quoi ligado à sua profundidade intrínseca, ela incita no espectador a provocação a uma descida até bem perto do abismo, na qual esse novo sujeito, disposto ao convite, sem medo agora de se aventurar nessas manchas e linhas transversalizadas, termina por se perceber em completo rasante, perdido no seu intenso prazer assustador, já em plena queda-livre. Se algo é “atraente” nas obras de Sebastião esse algo reside neste aspecto tão-somente silencioso quanto escuro das suas pinturas. Isto dito, tenho motivos para asseverar que não foi à toa que com o tempo vem substituindo a cor carne (quente) para a sensação de infinidade fornecida pelo azul (frio), tom predisposto, especialmente pela sua ampla utilização espacial dentro da tela, sempre a nos insinuar matizes de um sentimento oceânico de união. (figuras 3 e 5)

       

Cristopher Bollas definiu, num ensaio hoje já bem conhecido – A sombra do objeto –, concepções que poderiam se aproximar desta sensação que venho explorando como elemento extremamente significativo da obra de Sebastião Rodrigues, e que num outro contexto esclarece questões complexas do assunto da formação subjetiva de qualquer ser humano, uma vez figurando circunscritas na relação íntima entre um sujeito e suas primeiras relações de objeto. Mas antes nos detenhamos rapidamente, dentro desse mesmo mote, em alguns comentários de outro conhecido crítico, Peter Fuller (este que curiosamente só mais tarde na sua carreira veio a se interessar pela reflexão psicanalítica). No capitulo final de um seminário a respeito das relações entre Arte e psicanálise, detendo-se diante da obra de um pintor americano colour-field, Robert Natkin, Fuller observa nas sensações criadas nele pela obra de Natkin, como o compreendo, esse mesmo quê aproximado da reação afetiva que paralelamente procuro neste momento precisar. Como uma pele fina e atraente, e também de caráter decorativo, segundo Fuller as obras de Natkin produzem uma carne cuja textura abre a tela em dimensão máxima pela sugestão de espaçamento ilusório como um portal escancarado ao infinito. O confronto formal pára por aqui. Não acredito que nestas obras de Sebastião até agora apresentadas, não obstante o alcance de todas as suas propriedades estéticas, haja aproximação da idéia de belo (atração pelo belo como cânone, quero dizer, algo que estaria muito presente em Natkin, segundo atesta P. Fuller). Como adiantei há pouco, se alguma categoria tradicional pudesse aqui ser destacada, sugiro então a noção de sublime, mas uma espécie de sublime negativo que compreende, desde os românticos pelo menos, a condição certeira de fusão entre sujeito e objeto (ao contrário do belo, que pressupõe separação), e daí decerto a hipótese da vivência assustadora de vazio fornecida pelas obras em questão (seriam mais “manchas de vazio” que podem ser vistas também em Rothko, como deseja Fuller). Pois bem, esta metáfora do vácuo incipiente servirá de contorno à continuidade da discussão.

Voltando a Cristopher Bollas e na esteira de Winnicott, aquilo que intitula como a esfera mais ampliada da “estética” humana dependerá das primeiras relações entre dois personagens principais, que a essa altura do campeonato já sabemos quem são: a mãe e o seu bebê; os cuidados maternos fornecem a linha de base para tudo a que se chamará de comportamento estético, antes partindo de um objeto em primeiro lugar transformacional, para finalmente atingir o estádio transicional (entre pulsão oral e relação de objeto), levando em conta a presença de zonas intermédias entre mundo interno e externo. O contrato psíquico que assegura a existência de uma obra de arte –isto é, como objeto subjetivo – depende da junção entre essas duas realidades, garantindo que a experiência estética seja sempre a da ilusão, dinâmica pulsional conjugada ao que o ambiente oferece ao indivíduo(11). Como se sabe, quando nasce, o infans é completamente dependente dos cuidados maternos, ele se fixa por imaturação psico-biológica na pré-condição, ilusória, de os dois serem apenas um, como na fórmula mãe+filho=1. É geralmente por ocasião desse momento original, estético – lê-se em A sombra do objeto –, “que o indivíduo sente uma comunicação profunda e subjetiva com o objeto (uma pintura, um poema, uma ária ou sinfonia ou uma paisagem natural) e experimenta uma estranha fusão com este, fato que torna a evocar um estado do ego que prevaleceu durante os primeiros tempos da vida psíquica”(12). Trata-se de uma experiência em cuja singularidade, determinada pelo quantum de afeto descarregado na energia psíquica, reside a espera da verdadeira transformação dos mundos interno e externo do sujeito. A partir de então, da assunção dessa falta básica, na vida adulta a atividade (estética) se resumirá pela busca incessante por equivalentes simbólicos capazes de lançar às costas de nós indivíduos uma sombra de objeto, uma sua nuance. A teoria genética de C. Bollas nos permite refletir que a sensação a que nos apercebemos tomados em presença da obra de arte (no caso, se isso ocorrer, dependendo do encontro do sujeito com a obra, além de sua estrutura formal), traz os resquícios tão valiosos de “uma segunda vinda laica de uma relação objetal experimentada no período mais remoto da infância”(13). Desse modo, seguindo o raciocínio de Bollas, a experiência estética deixa de ter u registro moral ou social, e se tornará de uma vez por todas impessoal; vejamos, a este respeito, as palavras seguintes de Peter Fuller: a “conclusão que quero tirar”, escreveu o autor em Arte e psicanálise, “é a de que a emoção estética implica este nexo entre a submersão do eu no meio circundante e a diferenciação de eu desse mesmo meio” (14).

Aproximo a esta leitura o que Jacques Lacan andou observando nas pesquisas observadas na psicologia da Gestalt e na etologia. Na famosa comunicação sobre o Estádio do espelho como formador da função do eu, Lacan destaca dessas investigações que o aspecto gregário de certas espécies funciona como determinante na maturação progressiva de cada sujeito – e, para tanto, eis uma função primordial do espelho: a exposição de um animal qualquer diante da imagem visual de um outro (por que não uma mãe?), que tenha características ao menos similares à primeira espécie em testagem, garante uma “ordem de identificação homeomórfica que seria abarcada pela questão do sentido da beleza como formadora e como erógena”(15). Já para D. Winnicott, neste sentido, o precursor do espelho é o rosto da mãe, sendo que o que está em causa é “um derivativo complexo do rosto que há para ser visto”(16). Ora, sem muito risco de engano, tais teorias poderiam se complementar por conta desta compreensão lançada à formação subjetiva como dependente da imagem, quando ainda se vê que, já nas primeiras experiências do bebê antes dos seis meses, ainda segundo Lacan, os próprios traços configuracionais ao mesmo tempo identificatórios da forma da imagem em espelho são indistintos na organização total do eu infantil. Lacan quer dizer com isso que, para além da configuração da imagem inicial ser estádio determinante na estruturação psíquica do infans, a organização possui em agregado traços que a identificam como dotada de boa forma (como se entende na Gestaltpsychologie), razoavelmente integradora e capaz de garantir unidade ao corpo infantil primitivamente fragmentado. Mas por outro lado o que nos interessa é a inversão da operação. Do primeiro reconhecimento restaram marcas indeléveis, das quais depende o fenômeno do comportamento estético. (figura 4)

O interessante nisso tudo é que, justamente ao rever as telas mais remotas de Sebastião Rodrigues, nos encontraremos não sem surpresa com a utilização “fugidia” de personagens femininas, somente sugeridas, mas que, estas sim, ao contrário das demais outras que procurei interpretar aqui, oferecem à visão um erotismo consideravelmente atraente e icônico(17)(quiçá mais aproximado daquilo que en passant considerei como belo). Como se não bastasse, a presença alusiva da mulher constrói um campo enigmático próprio dentro do qual se sente uma familiaridade direta, com o sabor de um momento amemorial, que em todos cala pelo que deseja dizer em demasia. “O sentido, evidentemente, é latente”, retomo o comentário de Aguinaldo Gonçalves, crítico que não tem relação nenhuma com a psicanálise; significação que se completa, de maneira intuitiva, pela “texturização poderosa remete à sensualidade do toque” e da mulher”, bem como “lembra a infinidade do firmamento”. Para além dos limites visíveis da tela tocaremos bem de perto na sua carne, organismo vivo que congrega nos nervos um corpo e as deliciosas fantasias que este corpo (de mãe) evoca. Eis a justificativa para quando anteriormente sublinhei do mesmo Gonçalves o “para além do meramente físico“. Nada do que pretendi defender até então sairá desse alto nível de deslocamento: para mais à frente do físico, é na esfera do psíquico que podemos apreender, não sem muita intuição misturada, a natureza afetiva das formas que a obra de Sebastião nos propõe – necessidade ora assustadora, pela fusão eu-outro dos quadros em terra, ora apaziguadora, pela incidência mais recente do elemento água.

Nessa medida, peço requerimento para legitimar certas relações associativas entre a água e o citado sentimento oceânico, para mais tarde retornar à substância terra. Foi Freud quem procurou defini-lo no clássico Mal-estar na civilização. Partindo do debate com Romain Rolland, tirou conclusões fundamentais sobre a determinação psíquica da primeira infância, como quando concluiu que em certos momentos qualquer um se sente na presença de um “vínculo indissolúvel, de ser uno com o mundo externo como um todo”(18). As fronteiras do eu são relativizadas (fronteiras cujo limite o sujeito tem plena certeza da existência), restando deixando as pegadas do “conteúdo ideacional a ele apropriado”, gerando a sensação de ilimitabilidade e de uma conexão visceral com o universo. Para Freud, são provas inevitáveis de conservação dos elementos formadores do psiquismo, nunca totalmente aniquilados, e que por circunstâncias apropriadas podem vir à luz, como é o caso do que a transmutação da terra em água das obras de Sebastião em mim criou: água sem dificuldade pode se transfigurar em elemento aéreo, podemos observá-lo gratuitamente na imensidão do azul do céu se tivermos capacidade de imaginação. A crítica poética de Gaston Bachelard, encarnada na matéria e dela afluente, se nos torna nesse instante extremamente oportuna: ela harmoniza junto à reflexão a liberdade de presumir que o pintor “sabe perfeitamente que a cor trabalha a matéria, que é uma verdadeira atividade da matéria, que a cor vive de uma constante troca de forças entre a matéria e a luz”(19), assim sobrevivendo, como matéria-cor, na imanência decidida da sua intimidade. Ao percorrer os anos perseguindo a pintura, sua fonte de prazer, vemos que em Sebastião Rodrigues ocorreu uma luta inconsciente entre terra e ar, um dia ele se viu obrigado a operar a transmutação da cor na matéria, de cujo novo enraizamento se clama uma vez mais pelo componente materno. “Não basta contemplar um tanque de água para compreender a absoluta maternidade da água”, completa Bachelard, “para sentir que a água é um elemento vital, o meio primitivo de toda a vida”(20). De baixo para cima, da terra se fez água e da água surgiu o ar, que depois torna a ser água mais uma vez, como desse modo sucessivamente pode se compor o espírito de uma obra de arte. Eis que surge Sebastião Rodrigues.

Pois bem, perante esse rol de posições que caminham ombro a ombro, não me parece muito descabido pensar que a experiência que as telas de Sebastião me provoca está intimamente associada ao que em psicanálise podemos chamar, se já não ficou suficientemente claro, de identificações primárias; dito de outro modo, que suas obras põem em questão um momento primevo em que reconhecemos o eu como não-eu ou em que esse eu equivale a mãe, no dois-em-um cercado de espaço potencial (mais uma vez Winnicott) cuja mediação cria registro e dará suporte à atividade posterior do ser humano, “onde Eros revela tão claramente o âmago do seu ser”(21). Em outras palavras, o lugar da obra funciona como “espaço transicional” (síntese de espaço potencial e objeto transicional), como o entende André Green, com direito à “comunicação transnarcísica onde o duplo do autor e o duplo do leitor – esses fantasmas que nunca se encontram – comunicam através da escritura”(22). Conforme já disse, o fenômeno evocativo destas imagens plásticas só fazem sentido para cada subjetividade particular, funcionam como recordações ocasionais do processo objetal no qual, quase que invariavelmente, os dois pólos da dialética belo/feio se revelam atuantes e atuais, pois ainda de acordo com esta nossa mesma teoria objetal, a mãe não somente gratifica (como o seio bom entendido por Melanie Klein, ou seja, o belo) como também, e isso se torna fundamental, frustra o infans (daí o feio, o abjeto, o que qualquer obra de arte estaria sujeita a oferecer independente de sua intenção “consciente”). É costume pensar em psicanálise que o sujeito não se encaminha ao objeto, mas o que ocorre é exatamente o contrário(23). Como o recém-nascido depende exclusivamente de um outro imediato, parece mais correto pensar que o é objeto quem se dirige ao (novo) sujeito. Mediante a arriscada inversão direcional, se torna legítimo pensar que o espectador é interpretado pela obra, foi reconhecido por ela: “a função crítica da leitura é correlata a de um receptor poroso, num momento originário, às seduções oferecidas pelo texto” (24).

Em suma, entendamos finalmente por experiência estética uma determinada “recordação existencial do tempo em que o comunicar-se ocorria, basicamente, através dessa ilusão de profunda harmonia entre o sujeito e o objeto”(25) – uma tal procura em que a teia exterior envolvente do sujeito o coloca no impasse da transformação que o objeto (o Outro, o sagrado, a obra de arte enfim) lhe deverá proporcionar. Da terra para a água e para o ar – não há contradição. Se continuar fiel às minhas associações, devo então admitir que Terra – transformada em cor na criação do pintor – significa o planeta ou lar, terra natal, o local onde nasci; remetido às lembranças mais remotas, é aquele primeiro lugar enfim em que Sebastião ainda reside e proporciona meu encontro com as suas criações. Ao fim e ao cabo e não me abstendo do raciocínio psicanalítico, esse passado, esse resgate perene, não quer dizer outra coisa que simplesmente mãe, terra-mãe. Como se vê, no meu entender a experiência estética proporcionada pela obra de Sebastião é capaz de expressar essas dimensões do conhecimento existencial, um saber que não é apreendido cognitivamente, mas forma-se na ontogênese da ordem do conhecido-não-pensado próprio de todo o humano. Ademais, o reconhecimento concreto de outrem diferente de eu aposta suas fichas na conclusão, “se tudo correr bem”, destas relações. E se isso fatalmente está correto, se o colorido dinâmico e expansivo das telas de Sebastião explodem os limites da visão do espectador implicado, tudo bem, cá estou eu pego de surpresa a falar da obra dele, mas não por acaso.


NOTAS


(1) Mestre pelo Instituto de Psicologia da USP.

(2) São José do Rio Preto – SP. Um parêntesis já de cara: logo depois deste ensaio terminado, só aí Sebastião me confessou que intitulou sua obra recente de “celebração da terra”.

(3) GREEN, André. O desligamento: psicanálise, antropologia e literatura. Rio de Janeiro: Imago, 1994, p. 13. Do mesmo autor, para se ter uma visão mais ampla de suas intervenções neste campo, ver também as conclusões do excelente Revelações do Inacabado: sobre o cartão de Londres de Leonardo da Vinci. Rio de Janeiro: Imago, 1994.

(4) A noção de mancha “representa um elemento perceptivo essencial na investigação lacaniana do sentido do quadro e, por um revezamento estético, torna-se um motivo de superação da filosofia da consciência que a psicanálise não podia deixar de criticar, de abalar” (HUCHET, Stéphane. Linguagens do não-çaber: teoria da arte francesa e psicanálise. Em: SOUZA, Edson, et. all. (orgs.) A invenção da vida. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 2001, p. 183).

(5) As outras duas leituras psicanalíticas possíveis são 1) a leitura psicobiográfica e 2) a estritamente atenta aos personagens das obras. Cf. SPITZ, Ellen Handler. Art and psyche: a study in psychoanalysis and aesthetics. Yale: Yale University Press, 1985.

(6) Por associação livre entende-se, segundo o consagrado dicionário de Laplanche e Pontalis, uma idéia “que ocorre ao sujeito, aparentemente de forma isolada”. O método associativo em psicanálise, que se difere da doutrina associacionista alemã, depende da experiência clínica, só onde é possível observar que um resto mnêmico remete de maneira complexa a outros elementos numa determinada cadeia (LAPLANCHE, Jean; PONTALIS, J.-B. Vocabulário da psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 37). Renato Mezan tem uma interessante contribuição quanto à diferenciação entre associação e analogia, sendo este último o conceito utilizado como método de investigação na psicologia analítica de C. G. Jung. Em: MEZAN, Renato. Freud, pensador da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1986.

(7) GREEN, André. Op. Cit., p. 18.

(8) Por seio deve-se abranger tanto o objeto real quanto a soma de técnicas de maternagem.

(9) Cf. FRAYZE-PEREIRA, João Augusto. Recepção estética em exposições de arte: ilusão, criação, perversão. Em: SOUZA, Edson, et. all. (orgs.). Op. Cit., p. 141. Só mais tarde vim notar que Frayze-Pereira vê também, em Flemming, um componente de ambigüidade.

(10) FULLER, Peter. American painting since the last war. Em: SCHAPIRO, David (ed.) Abstract expressionism: a critical record. New York: Cambridge University Press, 1995.

(11) LUZ, Rogério. Cinema e psicanálise: a experiência ilusória. IDE, Revista da Sociedade Brasileira de Psicanálise. São Paulo, no 17, 1989.

(12) BOLLAS, Cristopher. A sombra do objeto; psicanálise do conhecido-não-pensado. Rio de Janeiro: Imago, 1992, p. 31.

(13) Idem, p. 32. Acredito que por alguns momentos a teoria de C. Bollas me parece discursar ancorada num registro imaginário, como desejaria a crítica advinda da psicanálise lacaniana. Se não me engano, quando fala em estética parece na verdade querer falar em ética.

(14) FÜLLER, Peter. Arte e psicanálise. Lisboa: Dom Quixote, 1983, p. 218.

(15) Em LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 99.

(16) WINNICOTT, Donald. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975, p. 161.

(17) A “expressão do ícone” feminino foi antes sugerida pelo crítico Aguinaldo José Gonçalves, em catálogo de exposição do artista. Sobre um pouco mais da obra, remeto o interessado às considerações de Jacob Klintowitz em Brazilian art book. São Paulo: G&A, 1999.

(18) FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização (1930 [1929]). Em: ESBOC, Vol. XXI. Rio de Janeiro: Imago, 1992, p. 74.

(19) BACHELARD, Gaston. O direito de sonhar. São Paulo: Difel, 1985, p. 26.

(20) Idem, p. 29.

(21) FREUD, Sigmund. Op. Cit., p. 118.

(22) GREEN, André. Op. Cit., p. 47.

(23) Cf. a introdução em DOR, Joël. Estruturas e clínica psicanalítica. Rio de janeiro: Taurus, 1994.

(24) BIRMAN, Joel. Por uma estilística da existência: sobre a psicanálise, a modernidade e a arte. São Paulo: Ed. 34, 1996, p. 61. A inversão feita pelo autor entre agente e paciente se encontra bastante próxima da filosofia merleau-pontyana, há de se convir.

(25) BOLLAS, Cristopher. Op. Cit., p. 50.

Home - Crítica & Companhia