Esse mundo é Cosmorama
Guilherme Sarmiento(*)

Na Europa, as projeções e os brinquedos óticos criaram no século XVII um novo ofício de pouquíssimo ganho, o do lanternista ambulante, maltrapilho do entretenimento que ia de vilarejo em vilarejo, com sua caixa amarrada às costas, mostrando imagens diversas, por vezes acompanhado de um macaco ou de uma ‘marmota viva’. Erravam pelas ruas gritando seus pregões, estimulando a curiosidade através de chamamentos criativos.(1) O lanternista geralmente levava um auxiliar para acompanhamento musical, com uma sanfona e um realejo. Podia se encarregar da totalidade da função, enquanto mantinha viva a atenção do espectador manipulando simultaneamente os mecanismos de sua lanterna, recitando textos explicativos e tocando alguma música. 

Conforme o século XIX vai se aproximando, as invenções tornam-se mais portáteis, com lentes melhor polidas e mecanismos diversos, o que sempre resulta em uma nova denominação do aparato: cosmorama, lanterna mágica, fenaquistiscópio, lampascope, betamiorama, giorama, pleorama, ilana, diorama, fantascópio, tornando difícil, especialmente para os que se interessam pelo assunto, descobrir nas fontes o específico de cada uma das peças arqueológicas. O certo é que, no Brasil, tanto panorama, quanto cosmorama vão designar, na maioria das vezes, uma caixa ótica simples, que possibilitava a um ou mais espectadores assistirem em seu interior a paisagens e caricaturas, pintadas em vidros e iluminadas por vela ou gás, e potencializadas por espelhos. Outro nome pelo qual ficou conhecido o divertimento na Corte brasileira foi “marmota”, que os lanternistas do Velho Mundo, além do aparelho, levavam consigo em suas peregrinações o curioso roedor, encontrado em regiões frias.  No calor dos trópicos,  o animal ficou como mais uma das imagens pitorescas trazidas com os imigrantes que aqui chegavam para encantar os brasileiros com luminescências. 

Segundo as pesquisas de Alice Gonzaga, o primeiro cosmorama instalado no Rio de Janeiro foi o do espanhol José Felix Moniz, em 1º. de fevereiro de 1834, na rua da Cadeia, sendo transferido alguns meses depois para a rua do Ouvidor. O empresário não tinha visto de permanência, sendo possivelmente seu aparelho “comprado por Francisco Passarolo e Luís Dancase, que apareceram com um “cosmoprograma”(2) na mesma rua, mais ou menos um ano depois. 

A década de 1830, do que se pode presumir a partir da análise de algumas licenças solicitadas à Câmara Municipal, foi rica nos pedidos e autorizações para comercialização das diversões óticas nos logradouros da capital. Em sua maioria eram estrangeiros, que vinham tentar a sorte nos trópicos.(3) Em 31 de julho de 1834, Francisco Orsini, de nação sardo, também pede autorização para abrir uma armazém com cosmorama no Beco de Santa Rita.(4)  E  em 27 de junho de 1835 deu-se a súplica de um brasileiro, ou português, Antônio Teixeira dos Santos.(5) Os pedidos continuarão sendo feitos durante a década de 1840, atravessando todo o século XIX, acumulando negativas da parte das autoridades, geralmente intransigentes com o trabalho de ambulantes ou com a montagem de barracas para a realização de espetáculos.(6) 

Aqueles que queriam ingressar neste mercado arriscado, sujeito às instáveis tentativas de regularização do setor, poderiam encontrar as invenções óticas com facilidade nas inúmeras casas e armazéns de ótica disponíveis, especialmente, a partir de meados do oitocentos, no centro comercial do Rio de Janeiro. A casa mais tradicional, que atravessou praticamente todo o século XIX, eram as Oficinas e armazém d’ótica e instrumentos científicos, criada pelo empresário José Maria dos Reis. Além da venda de “fantasmagorias”, a casa garantia a manutenção e o conserto de todos os instrumentos e inventos por ela comercializados. 

Em 1856, tem-se notícia da casa de João José de Faria & irmão, na rua do Ouvidor, 79, que vendia Polyorama, panopticos e diagraphos, “com as vistas dos principais monumentos da Europa, e as batalhas da Criméia”, etc.(7) Neste mesmo ano, na rua da Alfândega, Agostinho de Souza Neves e C., além de “luneta de um e dois vidros, óculos para teatro de tartaruga, madrepérola, marfim, porcelana, búfalo e metal”, fazia instrumentos para uso de “fantasmagoria”.(8) O número destes estabelecimentos foi bastante expressivo durante o período, provendo continuamente o interesse – e a necessidade –  do homem do oitocentos pelas novidades óticas. 

No século XIX, qualquer comparação entre literatura e projeção de imagens, portanto não seria mero capricho metafórico. O escritor, que disponibilizava sua escrita a quem se dispusesse a lhe pagar alguns vinténs, guardava muitas semelhanças com o “marmoteiro”, que pelo mesmo motivo acionava seu mecanismo ótico onde os curiosos habitantes da Corte vinham colocar os olhos. O trabalho de ambos era o de exibir as “vistas” de uma cidade em processo de fragmentação escópica, chamar a atenção para os tipos, situações e paisagens notáveis no cotidiano. A literatura brasileira logo encontraria nas ruas uma fonte de inesgotáveis possibilidades dialógicas.(9) 

um enorme potencial ótico estacionado sobre aquelas folhas quebradiças. Colabora o fato de muitos exemplares possuírem títulos que remetem diretamente ao universo das invenções óticas – marmota, cosmorama, luneta, etc –  mas são, sobretudo, os artifícios narrativos utilizados na realização do texto, o que torna a leitura um exercício de suma importância para que se entenda as complexidades envolvidas na absorção desses objetos tanto pelo cotidiano da Corte, quanto por uma escrita cada vez mais atenta à linguagem das ruas, adaptando-se rapidamente aos caprichos de uma burguesia pequenina, mas ruidosa. A história da imprensa, como observou Nelson Werneck Sodré, “é a própria história do desenvolvimento da sociedade capitalista”.(10) Como tal, para completar o cenário desta opereta iniciática ocorrida no Rio de Janeiro oitocentista, a máquina movimentando tudo: expelindo fumaça, multiplicando a escrita, projetando demônios. 

Na França, a imagem do lanternista esteve, desde a revolução, ligada à propaganda do ideário jacobino, sendo inclusive utilizada por muitos de seus expoentes, como Marat e Mirabeuau. Nos inúmeros panfletos anônimos editados a partir de 1789, os projecionistas de lanterna mágica apareciam nos textos sempre desferindo debochados ataques à nobreza, como, por exemplo, na brochura clandestina A lanterna mágica da França, novo espetáculo da feira de Saint-Germain, onde a vida de Charles Alexandre de Calonne, Ministro das Finanças do Antigo Regime, foi totalmente devassada emvistas” grotescas e indiscretas, exibidas por artistas ambulantes e descritas minuciosamente pelo narrador: 

É soberbo! É magnífico! Senhores e senhoras, entrem, entrem; vamos começar em um instante, a sala está quase cheia; não verão em sua vida nada tão raro e tão curioso!(11) 

Coincidentemente – ou não – as “marmotas” apareceram no Rio de Janeiro em sua forma de pasquim na mesma época em que os pedidos para a exibição pública de vistas começam a chegar na Câmara Municipal. A marmota, periódico escrito por Pascoal Baião, saiu em 22 de fevereiro de 1833, pouco menos de um ano da primeira súplica de autorização de cosmorama, realizado pelo italiano Francisco Passarolo, em 24 de março de 1834.(12) Hélio Vianna, em suas considerações sobre os primórdios da imprensa brasileira, não titubeou em definir a folha como uma das mais infames da época, exemplar muito ilustrativo dos conturbados quiproquós entre liberais e conservadores acirrados no período regencial. Segundo Moreira de Azevedo, “foi o ano de 1832 a 1833 um daqueles em que a imprensa assumiu entre nós maior grau de exaltação; saíram dos prelos, em 1832, 35 periódicos, dos quais 14 sustentavam o governo e 21 faziam-lhe guerra aberta, sem medidas, nem tréguas”.(13) 

O jornalista Pascoal Baião, para realizar a sua virulenta crítica à Trina Permanente, fantasiou-se de “marmoteiro”, prometendo àqueles que pagassem a assinatura de dois vinténs o recebimento regular das mais reveladoras vistas, anunciadas tal como se estivessem em uma caixa ótica plantada em meio ao turbilhão das ruas: 

Ora cheguem-se, cheguem-se, meus senhores, venham ver coisas admiráveis por pouco dinheiro.
Vamos a isto.
Esta vista, que agora se oferece, é da capital de um Império, que antigamente feliz e opulento; porém, que se acha hoje pobre, miserável e quase a aniquilar-se por ter caído em poder dos turcos que o dominam, e governam sem lhes importar sua prosperidade.(14) 

O formato em que Pascoal Baião escreveu sua crítica feroz revela a maneira como estes antigos exibidores se comunicavam com o público, fazendo exortações, chamando a atenção dos passantes, que, conforme o indicado pelo autor, correspondiam perfeitamente aos reclames da personagem. No número de 4 de março de 1833, encontramos a seguinte chamada: 

Lindas vistas tem hoje a “Marmota”, meus senhores! Elas valem mais que dois vinténs; porém como não quero enriquecer à custa do público, por isso as mostro por tão pouco dinheiro: ora, o que é dois vinténs para uns que sãocavaleiros bizarros”! Cheguem-se...cheguem-se...que faltam poucos para encher os óculos...Estão cheios. Tenham agora paciência meus senhores, que ficaram de fora, de esperar um pouco, ou venham mais cedo para outra vez.(15) 

Os populares logo encheram os “óculos” do invento para admirar as imagens do miserável Império de Zilbrá, com seus personagens corruptos, seus palácios magníficos e demais exotismos:

sei meus senhores, que Vmms. tem bom gosto, e sabem apreciar a Marmota, que tanto os diverte por tão pouco dinheiro. Com efeito verem vmms. o Império de Zibrá em poder dos turcos, conhecerem as manhas, os costumes bárbaros dos Sultões, e seus vizires, avistar a cidade, observar o estado de desgraça em que ela se acha, sem ter o menor incômodo, sem correr o perigo de naufragar, a que se expõem muitos viajantes curiosos, e isto tudo pordois vinténs”, não coisa mais cômoda, nem mais barata, meus senhores!

Zilbrá – Brasil, assim como os muitos nomes de personagens reais que perpassam o texto, foram intencionalmente invertidos por Baião. Basta o uso de um simples espelho para que sejam recompostos. “O miserável turco, traidor, covarde – Mali”, deve ser entendido como Lima, o Regente Brigadeiro Francisco de Lima e Silva; o “desdentado dervixe velho Zejó Tecusodi”, o padre José Custódio Dias.(16) O Ministro do Império, Vergueiro, o Ministro da Marinha, Rodrigues Torres e o Ministro da Fazenda, Araújo Viana, também aparecem cifrados na contorcida paisagem zilbraleira, quando o escritor-marmoteiro, chamando a atenção dos leitores-espectadores, aponta a existência de três homens pensativos que estudavam os meios de enganar o país, pegos no momento em que embolsavam dinheiro sujo.(17) Em 17 de agosto de 1833, Baião editou o último dos sete números de seu pasquim, e partiu para Pernambuco, onde, segundo ele, continuaria a apresentar suas imagens bufas. 

Outro pasquim publicado no mesmo período, em 22 de agosto de 1833, e com o mesmo perfil, chamava-se A Loja do Belchior. O autor desconhecido foi incentivado, como teve oportunidade de dizer, pelos tantos periódicoscom títulos esquisitos que marcavam um posicionamento de oposição ao governoem linguagem vulgar”. Juntou-se às muitas malcriações impressas no tempo. Justificou o nome estranho de sua folha pois, tal como na loja do Belchior, disponibilizaria ao públicotrastes, e ferros velhos de todo o gênero por um preço módico. No segundo número da revista, inclusive, o autor colocou à venda uma caixa mágica, dentro da qual se podia ver satirizado o “Baile de Mata Porcos”: 

A ti, ó caixa
Hoje bebemos
Não receamos
Loucas censuras
      Da probidade
       Comam os tolos
       Comamos todos

Tens
tal magia

Caixa querida
Que a própria vida
Por ti daremos
      Da probidade
      Comam os tolos
      Comamos todos(18)

Na década de 1840, as sessões das invenções óticas continuariam inspirando a linguagem coloquial dos pasquins. Araújo Porto Alegre, um dos responsáveis pelo libelo do romantismo no Brasil, a Revista Niterói, editaria outro importante título na história de nossas letras: A lanterna mágica. Com o auxílio dos desenhista Lopes Cabral e Rafael Mendes Pedreira, o pintor e escritor gaúcho tornou-se, com a publicação, o precursor do humorismo ilustrado no Brasil.(19) A série serviu para tecer uma contundente sátira aos homens sem escrúpulos que surgiram com a expansão das cidades. O editorial do primeiro número dizia a que veio: 

O protagonista da cena será sempre o imortal Laverno, esse homem prodigioso, espécie de mefistófeles, de judeu errante que anda entre nós nas praças, nos templos, nos salões dourados, no parlamento, nas estalagens, nas lojas e nos ranchos das estradas.(20) 

O escudeiro e fiel amigo de Laverno era Belchior, aquele que acompanhava o ilustre gatuno em suas trapaças na capital do Império. Os dois juntos, tal qual um Sancho e um Quixote dos becos infectos, a cada número da revista,  assumiriam uma forma, uma máscara, para que os homens de boa levassem as mãos ao bolso e contribuíssem ingenuamente com a armação insustentável. Laverno foi médico homeopata, cantor de ópera, escritor, político, numa ciranda de infindas mutações tipológicas sempre abortadas no final. 

Em março de 1849, A marmota periódico satírico engraçado, impresso pela Tipologia Silva Lima, e distribuído pelaloja” do escritor cabofriense Teixeira e Souza, na rua do Ourives. Levando à frente o perfil de crítica política de suas predecessoras, entretanto, vemos atenuadas as animosidades à monarquia propriamente dita, com ênfase numa burguesia nobiliárquica, viciada e ambiciosa. O editorial seguiria o mesmo formato das publicações anteriores, com o narrador conclamando todos para verem as bonitas vistas, irrecusáveis a qualquer um, seja brasileiro, estrangeiro, republicano e não republicano, aristocrata ou plebeu, curiosos em assistir “os nossos traficantes politiqueiros, que por todos os modos, quais sanguessugas esfaimadas, tratam de chupar o sangue da pobre, magra e tísica nação brasileira!!”, homens discípulos da moderna e “jacobínica escola francesa egalité, fraternité e liberté”(sic), que seriam apresentados na Marmota tão transparentes e diáfanos, que o público teria acesso ao que ocorria dentro e fora de seus corpos.

Atenção!Atenção! Fió! Fió! Fió!
vai a primeira vista!(21)

O primeiro tipo apresentado na revista foi o mr. Timandro Richard, médico sem clínica, lente de filosofia sem cadeira, confundido por um dos espectadores com o botânico Achilles Richard. O marmoteiro logo desfaz a ilusão, pois o “Richard” brasileiro “é um mágico presumido e empavesado, que tem pretensões a sábio, de fidalgo”, editor da publicação anti-monarquista Timandro: 

Viva a marmota
E o bom marmoteiro!
Que também descreveu
O Richard paloreiro!(22) 

Diante da balbúrdia que se instaura depois da revelação, o exibidor de vistas se obrigado a pedir silêncio, senãoadeus marmota, adeus marmoteiro, adeus tudo”, pois estamos numa época pouco simpática às aglomerações de populares nas ruas. Quando o público se acalma, dá-se a apresentação da segunda vista, onde surge um sujeito em forma de “jaburú”;  na terceira, um outro magro e seco como uma “gambá muquiada”, numa ciranda infindável de tipos grotescos, habitantes de uma cidade multifacetada. Essa primeira Marmota do ano de 1849 sobreviveria somente dois números, talvez para unir forças com a mais longeva publicação do romantismo, a Marmota de Paula Brito, que inicialmente contava com a colaboração exclusiva do inquieto Próspero Ribeiro, que assinava o texto como Próspero Diniz. A Marmota na Corte saiu do prelo em 7 de setembro de 1849:

vai a marmota
Mil vistas mostrar
E a todas as belas
Deseja agradar 

O
seu redator

Tem bom coração
É terno e macio
É mole, é babão(23)

Apesar de livre da concorrência da outra marmota, o “periódico satírico engraçado” distribuído por Teixeira e Souza, o pasquim de Paula Brito e Próspero Ribeiro encontraria um rival à altura n`O cosmorama da Bahia, de Epifânio Pedrosa,  que, contrariando todas as evidências, foi publicado na Corte entre 2 de outubro e 22 de dezembro de 1849: 

Sinhozinho pode entrar
Para ver o que é gostoso
Temos coisas engraçadas,
Tudo é bom e primoroso
Paga oitenta réis
Quem sozinho quer entrar
Porém vistas não vistas
Que faz a gente chorar!!

Pode
ver o que quiser

Gozar tudo com franqueza,
Admirar belas obras
Que nos deu a natureza(24) 

Epifânio Pedrosa, no exemplar de estréia, não poupou elogios ao concorrente, escrito, conforme suas palavras, peloincomparável Próspero Diniz”, responsabilizando-o, inclusive, pelo surgimento de sua folha, fruto do entusiasmo através do qual a Marmota na Corte vinha sendo recebida pelo público carioca. O texto terminava com a galhofeira, mas carinhosa quadrinha ao gosto popular, dedicada ao redator rival: 

Adeus exótico Diniz
Que em tudo mete o nariz,
Aceita meu coração
Chocarreiro maganão! 

A partir daí, as “vistas interessantes em diferentes vidros” começaram a desfilar diante dos leitores, com a apresentação dos habitantes da “cidade do vatapá e feijão de bobó” saudando os cariocas “papa-bananas”. Num jogo de espelhos infinitos, o autor de Cosmorama na Bahia opta por continuar caricaturando a maledicente Marmota na Corte, embora não fique muito claro o quanto de homenagem há no cínico artifício. Segundo ele, o “marmoteiro” tocava excelentemente o realejo com qualquer das mãos e, na oitava vista, apresentava o seu alfaiate, Belchior, único indivíduo capaz de vestir seu corpo desconjuntado – na épocamarmota também servia para designar homem maltrapilho. Epifânio Pedrosa descreveu Próspero Diniz como um namorador incorrigível, e num dos trechos mostrou-o cercado por vários estudantes possessos, que o fizeram engolir sua folha por maldizer e desacreditar as famílias em seu pasquim. 

Conforme os números vão se sucedendo, as epifanias bufas do Cosmorama demonstrar-se-iam tão virulentas quanto as propagadas pela Marmota. Em 27 de outubro de 1849, Epifânio Pedrosa tornaria suas críticas ao rival menos sutis e mais violentas, fazendo-o provar do próprio veneno:

Temos Diniz da marmota!
Que não é um Panorama:

Anda porco como a lama,
Nos carros serve de sota;
Nunca lhe viu graxa a bota;
na rua do Ouvidor;
Mesmo fedendo a bolor
Foi pronto à Ponta d’Areia,
Ver quem funde e prateia,
Quem fabrique bom vapor.(25) 

As incomposturas de Epifânio selariam o destino de O cosmorama da Bahia. Próspero Ribeiro-Diniz por esta época iniciava sua influente e prolífica carreira de editor e redator de pasquins. Após ser chamado de “porco fedorento”, fez o que pôde para afastar definitivamente o abusado baiano das ruas do Rio de Janeiro. Uma das formas utilizadas para conseguir o seu intento foi o de pressionar os distribuidores comprometidos com A marmota a não aceitarem a venda do concorrente. Pouco a pouco, a folha foi sendo boicotada, como demonstra o número 5 da revista: “Na praça da Constituição n. 54 continua vender esta folha”, diz o editor, “porém, na rua do Ourives n. 21, ficou suspensa a venda”.(26) Apesar da resistência de alguns estabelecimentos em acatar as ordens de Ribeiro, como o Sr. José Pinto de Magalhães e Cia., que preferiu ficar ao lado de Epifânio e contra a “asquerosa folha, que tem granjeado ódio de todos os filhos do país”, O Cosmorama expiraria no dia 22 de dezembro de 1849. Enquanto isto, um fortalecido Ribeiro prosperava. Ramificava seus negócios, editando em 1850 a Marmota Pernambucana e, na Bahia, como que para provocar seu antigo desafeto, A verdadeira marmota de Próspero Diniz, em 1851. 

A Marmota na Corte duraria até 30 de abril de 1852, quando, então, se transformaria na mítica Marmota Fluminense. Conforme a revista vai se afirmando, seu perfil passa por sensíveis transformações, deixando de ser uma folha satírica e se tornando um dos veículos mais importantes de divulgação da obra romântica, graças ao poder de articulação de seu editor Paula Brito. Joaquim Manuel de Macedo, Teixeira e Souza, Fernandes Pinheiro, Gonçalves Dias e Machado de Assis foram alguns dos que ali publicaram.(27) O periódico ainda mudaria novamente de nome em julho de 1857 para A marmota: folha popular, permanecendo no mercado até o dia 10 de abril de 1864. 

Lendo algumas dessas obras especialmente ricas na produção incessante de quadros, fica-se a forte impressão de um diálogo intenso com o novo horizonte técnico, com os espelhamentos sucessivos entre os profissionais das letras e os exibidores de vistas.(28) Tal tendência, iniciada na gênese mesmo da nossa imprensa, no momento em que as invenções óticas também começavam suas incursões nas ruas, iriam estreitar-se cada vez mais com as fusões definitivas entre arte e indústria produzidas até o início do século XX. João do Rio, quando intitula suas crônicas como Cinematógrafo de Letras, faz confirmá-la. Mas , são outros tipos e outras tecnologias.

 

Notas

(*) Guilherme Sarmiento é doutorando em Literatura Brasileira no Programa de Pós-graduação em Letras da PUC-Rio e autor de O espetáculo das máquinas acesas: Diversões óticas e literárias na Corte Imperial, dissertação defendida na PUC-Rio em 2004. 

(1) MANONNI, Laurent. A grande arte da luz e da sombra arqueologia do cinema. São Paulo: Editora da Unesp, 2003,  p.98. 

(2) GONZAGA, Alice,  Palácios e Poeiras. Rio de Janeiro: Record/Funarte, 1996,  p. 26. 

(3) Em 1832, foi registrada a entrada de 65 imigrantes, dentre portugueses, que eram a maioria, franceses, espanhóis, alemães e sardos. RIBEIRO, Gladys Sabina. “Inimigos mascarados com o título de cidadãos – a vigilância e o controle sobre os portugueses no Rio de Janeiro do Primeiro Reinado”. Revista Acervo, Rio de Janeiro, volume 10, número 2, Jul/dez de 1997, p. 82-83. 

(4) AGCRJ, op. cit., p 75. 

(5) Idem, p 17. 

(6) Martha Abreu, em seu estudo sobre as festividades do Divino no Rio de Janeiro, observou que, a partir da década de 1860, os cosmoramas e realejos começaram a sofrer cerceamento progressivo e os estrangeiros a serem vistos como perigosos. Segundo a historiadora, antes de 1857, eles eram permitidos “sem maiores exigências do que a declaração do endereço de residência e o pagamento estipulado”. ABREU, Martha. O Império do Divino. Rio de Janeiro: Record, 1999, p. 264. 

(7) Almanak Laemmert, 1856, p. 563. 

(8) Almanak Laemmert, 1855, p. 564. 

(9) Francisco Foot Hardman havia notado esta analogia entre os pasquins do século XIX e as invenções óticas disponibilizadas na Corte. Segundo ele, “as máquinas de iludir através de imagens em movimento, ancestrais do cinematógrafo, estavam presentes no imaginário popular das maiores cidades brasileiras desde a metade do século XIX. É o que indicam anúncios publicitários em jornais e revistas. O vocábulomarmota’, por exemplo, cuja acepção popular o dava como sinônimo de fantasma ou espantalho, era significativamente transposto como equivalente de cosmorama, dispositivo mecânico aparentado dos panoramas, dioramas e lanternas mágicas. Isto em anúncios que datam pelo menos de 1835. Essa interessante ampliação semântica iria desdobrar-se metaforicamente, por exemplo, nos títulos de jornais comoMarmota’ (Salvador, em 1849) ou a Marmota Fluminense”. HARDMAN, Francisco Foot. Os negativos da história: a ferrovia-fantasma e o fotógrafo-cronista. In: A Crônica – o gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil. Rio de janeiro: Fundação casa de Rui Barbosa/ Unicamp, 1994, p. 540. 

(10) SODRÉ, Nelson Werneck. A história da imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966, p. 11. 

(11) MANONNI, op. cit., pp. 115-118. 

(12) em 3 de agosto de 1814, na Gazeta do Rio de Janeiro, anunciava-se a venda no estabelecimento da editora um livro intitulado Loja de óculos políticos, fantasia moral, ou inventiva, pela qual o Cortesão pode comprar e escolher os de melhor gosto para descobrir verdades, ver a boa fortuna, conhecer homens sem os tratar. 

(13) SODRÉ, op. cit.,pp. 143-144. 

(14) Marmota, 22 de fevereiro de 1833.

(15) Marmota, 4 de março de 1833.

(16) VIANA, op. cit., pp. 177-180.

(17) Marmota,  4 de março de 1833.

(18) A loja do Belchior, 22 de agosto 1833.

(19) O nome dado por Porto Alegre à revista estava totalmente conforme aos apetrechos do projetor homônimo. Numa sessão de lanterna mágica, além de imagens terríveis, como fantasmas e demônios, também gozavam de muita popularidade os desenhos cômicos e satíricos, onde os “tipos sociais eram representados através do grotesco. Padres e nobres eram as vítimas mais recorrentes deste olhar deformante. O fato da revista ter sido a primeira a vir ilustrada com desenhos de caricatura reforça a analogia explicitada na escolha de seu nome. LIMA, Herman. A história da caricatura no Brasil vol. 2.Rio de Janeiro: José Olympio, 1963, p. 87.

(20) Lanterna mágica, número 1, 1845.

(21) A marmota periódico satírico engraçado, 9 de março de 1849.

(22) Idem.

(23) A Marmota na Corte, 7 de setembro de 1849.

(24) O cosmorama da Bahia, 2 de outubro de 1849.

(25) O cosmorama da Bahia, 27 de outubro de 1849.

(26) O cosmorama da Bahia, 3 de novembro de 1849.

(27) SODRÉ, op. cit., p. 133.

(28) Flora Sussekind havia notado o quanto a literatura apropriara-se de procedimentos característicos da fotografia, do cinema, do cartaz, transformando a técnica literária do final do século XIX e início de XX. Mas a sintonia “com o império da imagem, do instante, e da técnica como mediações todo-poderosas no modo de se vivenciar a paisagem urbana, o tempo e uma subjetividade sob constante ameaça de desaparição”, observada pela estudiosa, estava presente antes, com o impacto sócio-cultural criado na recepção das marmotas, juntamente com a locomotiva, as máquinas a vapor e outros dinossauros tecnológicos. SÜSSEKIND, Flora. Cinematógrafo de letras. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 15.

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