Metáforas da História: Uma leitura dos romances de Helder Macedo
Gregório Dantas (*)


Recordar tem muito de parecido
com imaginar, mas julgo que
recordo com razoável veracidade.

Helder Macedo

Valha-me Deus! é preciso explicar tudo.
Machado de Assis

INTRODUÇÃO


Renomado poeta e acadêmico, Helder Macedo (1935) estreou na literatura com o volume de poemas Vesperal, de 1957, ao qual seguiram-se 14 livros de poesia e crítica literária. Escreveu, nos anos 60, alguns contos, uma novela e um romance, que permaneceram inéditos por vontade do autor. Estreou na ficção apenas nos anos 90.

Seu primeiro romance, Partes de África (1991), foi um acontecimento: recebido com desconcerto, devido principalmente à hibridez e fragmentação de sua forma, revelava caminhos insuspeitados aos leitores de sua poesia. Chamava a atenção da crítica a construção do narrador (que se confunde com o autor Helder Macedo), a fragmentação da narrativa, a utilização de diferentes registros literários, e o discurso metaficcional, revelador da intertextualidade estabelecida com uma vasta tradição, de Camões a Pessoa, de Sterne a Machado de Assis. Estas características mantiveram-se nos romances seguintes, Pedro e Paula (1998) e Vícios e virtudes (2000), ainda que estes possuam um enredo mais linear, se comparados ao seu livro de estréia.


1.


Ao leitor de Partes de África, a tarefa de classificar o romance em uma das categorias literárias tradicionais é quase impossível. Formalmente, trata-se de um mosaico de formas textuais, literárias ou não, que compõe um todo fragmentado aparentemente desconexo, unidos pela voz do narrador.

Segundo Maria Lúcia Dal Farra, Partes de África reúne quatro formulações do gênero romanesco — a crônica familiar, a literatura de viagem, a novela histórica e o “romance de literatura” — sem que nenhuma delas se realize plenamente.(1) Unem-se a estas formas trechos de ensaios, poemas, uma comunicação e um relatório supostamente verdadeiro, além de um inusitado intertexto, que ocupa boa parte do romance: O drama jocoso, de um Luiz Garcia de Medeiros, romance escrito em forma de drama, e que, por sua vez, é uma paródia do Dom Giovanni de Mozart. Estrutura romanesca tão singular pede novas formulações críticas para sua descrição: Marisa Corrêa Silva indica que o enredo fragmenta-se em diversas “protonarrativas”;(2) Vilma Arêas recorre à imagem dos móbiles para descrever esta estrutura narrativa que, formalmente, parece “um objeto suspenso que gira”;(3) já Tânia Franco Carvalhal fala de histórias nas quais se inserem outras histórias, através de uma “técnica de encaixes”.(4) Também o narrador Helder Macedo, crítico da própria obra, formula sua hipótese, a do mosaico, filiando-se à “nobre tradição de dizer alhos para significar bugalhos”:

E nem julguem que alhos e bugalhos são coisas diferentes, são é reflexos diferentes da mesma coisa. Como num mosaico incrustado de espelhos. Explico: quando se tira um pedacinho dum mosaico, não se percebe, olhando só para o pedacinho, que faz parte do nariz e que por isso pode perfeitamente passar a fazer parte de qualquer outra imagem para que seja necessário, mesmo num mosaico sem nariz. (...) Faço por isso voto solene de que irei trazendo para este meu mosaico todos os pedaços necessários para nariz, olhos, dentes, orelhas, bocas (...) E terá de ser o leitor a encontrar os espaços mais adequados para colocá-los, segundo o amor tiver (PA, p. 40).(5)

Se um mosaico “funciona” ao ser movimentado, criando-se, assim, diferentes imagens compostas pelo mesmo material, a ação do narrador, comentando a própria escrita e as referências literárias de que faz uso, dialogando abertamente com o leitor e inserindo textos dentro de textos, é a propulsora deste movimento.

Dentro deste mosaico figura um enredo não linear que descreve, em linhas gerais, momentos da vida deste narrador chamado Helder Macedo e que, claramente, não deve ser confundido com o autor empírico. Como este, o narrador é poeta, acadêmico e catedrático do King’s College em Londres; passou a infância em diferentes partes da África, pois seu pai pertencia à Administração Colonial Portuguesa; já foi Secretário de Estado da Cultura e, em Londres, funcionário da BBC e do consulado brasileiro. O narrador Helder Macedo é a personificação do esvanecimento das fronteiras (palavra cara ao autor) entre biografia e ficção, entre verdade e verossimilhança literárias. Segundo o narrador:

A questão é que não basta tornar a verdade verossímil, como fez o Medeiros, ou transformar uma inverossimilhança noutra (...) O que é preciso é misturar tudo ou, pelo menos, como eu aqui, fazer o que se pode. Porque conseguir, em português, só o Camões e o Machado de Assis (PA, p. 249).

Em Partes de África não se distingue o que é “verdade por ter acontecido” da “verdade sem ter de acontecer” (PA, p. 15), ou seja, o que não aconteceu também é “verdade”, ficcional. Em uma comunicação apresentada no Rio de Janeiro, “Reconhecer o desconhecido”, incluída no romance, Macedo usa o exemplo dos mapas dos descobridores portugueses, que continham não apenas a descrição de regiões já comprovadamente existentes, como também ilhas imaginadas, o que é uma perfeita metáfora para a relação entre verdade e verossimilhança estabelecida pelo romance. No mapa de sua ficção, as ilhas imaginárias são tão verdadeiras quanto as reais; mais do que isso, talvez sejam mais verossímeis (e portanto mais adequadas do ponto de vista literário) do que estas.

A mesma relação entre verdade e verossimilhança se verifica em seu segundo romance, Pedro e Paula. O primeiro capítulo mostra-nos uma viagem, no mínimo, insólita. Como uma continuação do final do filme, os personagens Victor Laslo e Ilsa, de Casablanca, estão no vôo rumo à Lisboa. Com eles, são apresentados outros passageiros que, notamos logo, são personagens coadjuvantes do filme. O casal chega a Lisboa, e sua história se confunde com a dos atores que a interpretaram: “Ilsa, já não Ilsa, foi para a Itália onde cortou o cabelo para o novo filme e começou o escândalo com Rossellini” (PP, p. 16). O narrador, misturando as histórias de Ingrid Bergman com a de sua personagem, confunde ou, antes, mistura ficção e realidade. Não se trata de um livro fantasista, e sim realista, pois baseado na própria experiência pessoal do autor, em suas lembranças, “e não no mero diz-se” (PP, p.17). Para Macedo, toda a recordação é imaginativa, de modo que o limite entre o factual e o imaginado é não apenas tênue, mas mesmo indiscernível.

Se comparado com o romance anterior, Pedro e Paula possui um enredo mais linear. Na verdade, apresenta elementos inexistentes em Partes de África, dignos de um grande folhetim: triângulos amorosos, traições, um filho desconhecido, suicídio, incesto, tudo isso sob o clima de guerra, ditadura e revolução. Mantêm-se, porém, o narrador Helder Macedo, analisando a feitura de sua própria obra. Logo de início, assume a referência explícita a Machado de Assis no nome dos irmãos gêmeos, sugerido pelo padrinho, “como o profético ou intertextual padrinho se tivesse lido o relevante Machado de Assis” (PP, p.22). E se em Esaú e Jacó, a história dos gêmeos Pedro, monarquista, e Paulo, republicano, tem como pano de fundo fatos históricos que marcaram a passagem do Império para a República no Brasil, a história de Pedro e Paula, nascidos no ano em que Ilsa e Victor Laslo fugiram de Casablanca, atravessa momentos cruciais da história portuguesa dos últimos 50 anos, em que a revolução de abril de 1974 é o divisor de águas. Representam, desta forma, a geração portuguesa do pós-guerra: Pedro, conservador, é ligado às estruturas políticas e sociais colonialistas, enquanto Paula, artista e ligada ao futuro, expressa o movimento de mudança portuguesa.

A construção da ficção macediana, porém, sofisticada como é, coloca-nos mais problemas de interpretação do que a unívoca leitura de um enredo como metáfora histórica. Este narrador que eruditamente destila pistas de suas leituras e estabelece relações interpretativas, envolvido como está com suas histórias e personagens, não é totalmente confiável, haja vista a ironia com que comenta sua própria estratégia, o que inclui comentários à inteligência do leitor, machadianamente observando os “privilégios de gente culta” (PP, p. 142).

Observa, também, que é incapaz de fazer como Garrett, que, segundo o próprio Macedo em antigo ensaio sobre Viagens na minha terra, criara na velha cega, avó de Joaninha, um espelho da “estagnada expectativa” de Portugal.(6) Para Macedo, a caracterização de uma personagem alegórica nestes moldes seria impossível, já que suas personagens demonstram ter vida própria e se recusam a serem controladas: dentro delas “há pedaços de gente a querer existir, vontades próprias a interferirem nas minhas monstrificações emblemáticas” (PP, p.171).

Além disso, uma das metáforas mais fortes para o romance é a do jogo de cartas, símbolo da imprevisibilidade e do logro:

(...) agora compete a cada personagem fazer o seu jogo, nunca esquecendo que não é quem tem a melhor mão que vai ganhar. No pôquer há o bluff, no bridge a finesse, nos romances o livre-arbítrio até deixar de haver, como no vasto da vida lá fora (PP, p.93).

Também o leitor participa do jogo nesta “crônica de incertezas”, (re)compondo a história a seu modo. As “ilhas imaginárias”, aqui, são muitas dentro do enredo: a carta que poderia ter sido escrita (mas não foi) por Pedro não apenas é incorporada à narrativa como é definidora de seu caráter; os jogos de sedução e castigo entre o inspetor Ricardo Vale e Ana nunca são totalmente esclarecidos, ficando impreciso se de fato ocorreram, e como; a paternidade não apenas de Paula, como de sua filha Felipa, é posta também em dúvida; o capítulo “Festa é festa (1974)”, o único não numerado, é composto quase totalmente por reticências, bem a gosto de Machado, deixando-se completar pela imaginação do leitor, que criará ou resgatará cada qual sua imagem da revolução de Abril. Blefador assumido, indigno de nossa confiança, o narrador convida (ou desafia?) o leitor para seu jogo de verdades ficcionais e históricas.

Jogo que continua em Vícios e Virtudes, mais recente romance de Macedo. Desta vez, a ironia sobre a escritura literária concentra-se, de imediato, na personagem de Francisco de Sá, uma caricatura do escritor contemporâneo. É através dele que Macedo, o narrador, conhece Joana, mulher enigmática cuja biografia tem fortes semelhanças com Joana de Áustria, a mãe de D. Sebastião. Ambos escritores farão disso o tema para seus romances. Francisco de Sá termina o seu volume primeiro, lançado “a bom tempo do mercado de Natal e a posicionar-se para os prêmios” (VV, p. 75). Já a tentativa de Macedo é o próprio livro que temos em mãos. Composto por trechos ficcionais de sua autoria, uma paráfrase de um artigo de Marcel Bataillon, fragmentos de textos da própria Joana e de um diário que seria de um suposto tio dela, Vícios e virtudes é um intrincado jogo de construção do passado e, conseqüentemente, da identidade de Joana. Francisco de Sá, Helder Macedo e a própria Joana são “inventores” desta personagem difusa e incompleta.

Se no romance anterior o narrador “se rebaixava” ao estatuto de personagem, por assumidamente perder o controle sobre elas, aqui este processo é acentuado, a ponto de uma personagem, Joana, ser ela mesma tão responsável pela criação quanto Macedo. E da mesma forma que o narrador, em Pedro e Paula, convidava seu leitor para o jogo e preparava-o para o blefe, Joana deixa claro, logo de início: “Já fica a saber, eu minto muito. Aviso sempre mas nunca ninguém acredita” (VV, p.86).

Paula possuía a simpatia do narrador, não apenas por ser fisicamente atraente, mas por ser uma artista, e a composição visual de seus quadros, através do questionamento dos limites da arte figurativa e da influência da música, notadamente da ópera, tinha muito de metáfora do trabalho de composição do próprio Macedo. Já Joana é dotada de um talento semelhante, já que é, também, ficcionista como Macedo: ela mente (ou blefa), cria personagens (o filho, o tio) e mistura História, lembrança e invenção tornando-os partes indissociáveis de sua composição. Neste sentido, é um espelho do próprio autor. Quando ambos se isolam, e passam dias conversando e discutindo a vida de Joana, não é apenas dela que está se falando, mas da própria criação no sentido compreendido pela ficção de Helder Macedo. Como se fosse leitor, e mais, como se fosse um leitor de um livro desnorteante como Partes de África, o narrador, em certo ponto do diálogo com Joana, indaga, como quem procura referenciais em sua experiência literária para explicar o que vê (e descreve): “Isto afinal é um romance histórico, uma história de fantasmas, uma ópera, ou uma novela policial? ” (VV, p. 147). É criada, assim, outra triangulação, entre Francisco de Sá, Joana e Helder Macedo, sendo os primeiros desdobramentos do narrador, pois incorporam, para o mal e para o bem, respectivamente (mas não de maneira unívoca) as dúvidas e certezas do escritor frente à criação literária.

Joana se nega a receber a identidade histórica que lhe é imposta e, estabelecendo um jogo de espelhamentos entre si mesma e as diferentes “versões”, históricas ou ficcionais, que lhe são conferidas, torna-se autora de si mesma. Ao fim, restam fragmentos de uma identidade cuja única existência é a ficcional. Conforma-se, assim, o narrador: “Mas eu sabia dela o quê? Histórias. Só histórias, ela própria me tinha dito, umas verdadeiras outras falsas, falsas e verdadeiras ao mesmo tempo sem se poder distinguir o que era o quê” (VV, p.217).

Helder Macedo, desta forma, cria uma metáfora do sebastianismo e da identidade portuguesa. Quando Francisco de Sá evoca “O Encoberto” como símbolo da identidade nacional, assim retruca o narrador: “Uma ova a identidade nacional, não há tal coisa. Há pessoas e circunstâncias” (VV, p. 30). E o comprova, demonstrando, através deste mosaico que é Joana, que toda identidade é uma construção ficcional, ou seja: a união de fragmentos da memória, da imaginação e da História.


2.


Houve, nas últimas décadas, uma grande transformação na concepção de História — divulgada por estudiosos como Paul Veyne — segundo a qual é impossível o relato totalmente impessoal de uma verdade factual, ou seja, sem mediação de uma voz (narrativa) e os limites impostos por esta voz. Sendo representação, o discurso histórico supõe um ponto de vista de quem o enuncia, que determina a escolha dos fatos a serem apresentados, o registro e a ordem desta apresentação, além de uma perspectiva ideológica. Discorrendo sobre estes elementos, Helder Macedo citou, a propósito, Dom Casmurro: “a verossimilhança é muitas vezes toda a verdade”.(7) E é neste plano, do verossímil literário, que deve ser compreendida a apreensão da história pelo narrador macediano.

Teresa Cristina Cerdeira da Silva, ao dissertar sobre a concepção de História no romance de José Saramago — e, por extensão, em grande parte da ficção contemporânea — explica-nos que “o passado, mais propriamente, não se recupera, não se resgata, mas se ‘representa’ — naquele sentido mesmo do jogo teatral”.(8) Considerando o discurso histórico como uma representação sujeita às mesmas determinantes da arte, Macedo, como Saramago, considera o não-dito, o suposto, as possibilidades e as lacunas do relato histórico, ficcionalizando-o (ou, antes, explicitando os mecanismos ficcionais que lhe são inerentes), para assim impor uma visão crítica sobre ele.

Em linhas gerais, portanto, Helder Macedo mistura lembranças pessoais, crítica literária, poesia, documentos verdadeiros e inventados, suposições e alternativas sobre o decurso da história e das personagens, tudo isso em um único plano, o ficcional, “rebaixando” a História ao nível da ficção. Assim, são expostos eventos supostamente históricos em Partes de África:


Conta-se que quando o avião com os primeiros russos sobrevoou Lourenço Marques houve um motim a bordo porque não acreditavam que aquela pudesse ser a mesma cidade a que propaganda lhes fizera ver. (...) Conta-se também que (...) os dirigentes da FRELIMO pediram aos vertiginosos descolonizadores de torna-viagem um período de transição que lhes permitisse prepararem-se para assumir o poder (...). Mas contam-se muitas coisas (PA, p. 37, grifos meus).


Expostos como um “causo”, os fatos históricos perdem sua legitimidade como verdade absoluta, para serem apenas um relato sem comprovação documental, mas nascida aparentemente no “mero diz-se”, condição reforçada pela repetição do verbo “conta-se” e pela consideração final — “mas contam-se muitas coisas” — que equipara estes fatos a histórias populares, verdadeiras ou não.

Não existe uma voz narrativa que tenha a onisciência e a autoridade de ordenação da história e da História. O narrador, rebaixado ao estatuto de personagem, não ganha privilégio em seu ponto de vista, mas perde onisciência e, segundo ele próprio, controle sobre o que narra. Como já comentado acima, no capítulo 10 de Pedro e Paula, Macedo assume sua incapacidade de controlar totalmente as personagens. Assim, Ana não permite a ação do narrador sobre ela; mais que resistir, é a personagem que influencia o narrador: “Basta que eu a tenha visualizado como uma pessoa real, nem que uma só vez, mulher inquieta, (...) é o suficiente para a sua realidade interferir na minha” (PP, p.172).

Deste modo, demonstrando limitado controle sobre seu relato, o narrador nega a si próprio o papel de demiurgo, negando também, à Literatura e à História, o poder de ordenação unívoca da realidade, postura que tem muito em comum com a ficção feita em Portugal nos últimos 20 anos.

Álvaro Cardoso Gomes identifica, como a principal característica da prosa portuguesa contemporânea, a atuação crítica sobre os fatos históricos, através de um “distanciamento irônico” e de uma “projeção do imaginário sobre o real”.(9) A postura crítica determina uma postura estilística comum, de combate à forma romanesca tradicional, que se manifesta através do comentário, dentro do texto ficcional, da linguagem literária e da própria composição da obra (discurso metaficcional), além da assimilação da poesia e de discursos não literários.

Neste quadro, a opção pelo romance histórico não é, claro está, de total adesão ao gênero, mas de releitura paródica. Nestes termos, pode-se dizer que Helder Macedo possui muito em comum com sua geração de ficcionistas, embora isto não queira dizer, em absoluto, que haja uma “geração” organizada e articulada, no sentido de compor uma “escola” literária coesa.

Neste panorama, a singularidade do romance macediano nasce na composição do narrador, de quem convém duvidar sempre e cujo disfarce é não se disfarçar, “como fez o Bernardim antes de o Pessoa vir explicar como era” (PA, pp. 221-2). Como nenhum de seus contemporâneos,(10) Macedo insiste de maneira sistemática do discurso metaficcional, a ponto de inserir-se em uma longa tradição de narradores que, como ele, fazem do fingimento seu procedimento narrativo fundamental. Tal tradição, mesmo englobando alguns poetas, como Camões e Pessoa, é essencialmente de romancistas, sendo Almeida Garrett e Machado de Assis suas principais referências; nomes expostos não só no corpo dos romances mas em suas epígrafes. Além disso, apontam para as principais leituras de Helder Macedo em sua carreira acadêmica.

Antes, porém, de avaliarmos as declarações de Macedo sobre a sua obra, é preciso considerarmos uma distinção fundamental, entre o escritor Helder Macedo e o narrador homônimo de seus romances. Embora as declarações de ambos sejam convergentes em muitos momentos, supô-las iguais seria ingenuidade, dadas as pistas dos blefes possíveis e a própria natureza ficcional de um narrador. Não nos cabe, também, delimitar o ponto preciso em que o autor se pronuncia através do narrador ou este age “sozinho”: seria um falso problema, tão inócuo como delimitar a “veracidade” de outras personagens, questão satirizada pelo próprio narrador em Partes de África, ao confessar, no final do romance, que sua namorada “cor de cobre” teria, afinal, uma cor que “seria antes de um branco-malte” (PA, p.249). O que pode ser, afinal, mais uma pista falsa.

Mas a carreira acadêmica do autor pode ser elucidativa da escolha dos autores e dos procedimentos em que se apóia o narrador. É o professor Helder Macedo que nos conta, em um seminário realizado na PUC de Minas Gerais em 2001, suas considerações sobre o romance contemporâneo e a significação do que se convencionou chamar de “pós-modernidade”:

(...) tudo aquilo que é suposto serem as características do pós-modernismo, coisas como a intertextualidade, a presença explícita do autor na sua escrita, a metaliteratura, a verdade é que nada disso é novo, tudo isso já foi praticado noutras épocas literárias.(11)

Repudiando para sua ficção o rótulo de pós-moderna, Helder Macedo tem indicado, nesta e em outras conferências, que a ficção contemporânea assiste à convergência do memorialismo, da autobiografia e da ficção, postos à prova quando justapostos em um mesmo plano de representação literária, em novelas e romances que “chamam a atenção para a sua própria natureza e processos de composição, ou seja (...) a que se convencionou chamar de metaliteratura”.(12) Se questionar o estatuto dos conceitos e estruturas do Realismo tradicional é uma forma de transgressão, então é necessário observar toda uma tradição da transgressão na qual se destacam os mesmos nomes orientadores do Macedo-narrador (o que demonstra ser este claro tributário da carreira de Macedo-professor e poeta).


3.


Parece-nos claro que é principalmente através do jogo metaficcional, da construção da imagem literária do narrador, baseada em suas variadas referências culturais (não só a literatura, mas o cinema, a música e a pintura, em diferentes medidas, também fazem parte desta construção), que Macedo estrutura o seu romance, dando uma unidade ao mosaico de imagens, vividas ou imaginadas, reais ou não, mas verossímeis no corpo do texto. Ou seja, a unidade do romance macediano é alcançada sobretudo através do questionamento de sua forma, que pode ser centralizada na teoria do mosaico de Partes de África.

Uma segunda reflexão leva-nos a crer que o narrador utiliza-se da tradição para, situando-se nela, definir a si mesmo uma identidade autoral, ou seja, cria sua própria identidade espelhando-se na tradição literária que evoca. Assim é, na verdade, com suas principais personagens, desenvolvidas apenas através do espelhamento em relação a outras personagens, do romance ou mesmo de outras obras e autores.

O jogo de espelhamentos em Pedro e Paula — já explícito no título — inicia-se no triângulo amoroso entre José, Ana e Gabriel. Os homens mostrarão, no decorrer dos acontecimentos, pertencerem a pólos políticos opostos, José colonialista, Gabriel liberal, o que se reflete em seu comportamento social e afetivo. Esta oposição se prolonga nos gêmeos, Pedro com os olhos do pai, Paula com os do padrinho, além de visões de mundo afins. Ana, que opta pela segurança do casamento com José, lamentará a decisão por toda a vida, espelhando-se em Paula, mulher independente e amante de Gabriel, e vendo na filha a realização que não teve para si mesma. É em sua identificação com a filha que se realizam os jogos sexuais com o inspetor Ricardo Vale: para este, Ana é uma sombra de Paula, só existe em relação a ela. E finalmente, Fernanda e Paula, opostas no conceito de Pedro, que “desde sempre tinha tido dificuldade em amar duas pessoas ao mesmo tempo, mesmo quando fossem ou devessem ser amadas em registros afetivos diferentes” (PP, p. 189): quando pequeno, dividia-se entre a mãe e a irmã; agora, entre Paula e Fernanda, que tem, afinal, a preferência.

Já em Vícios e Virtudes, cujo título é também duplicado, desenvolve-se claramente a metáfora do duplo através do jogo de cartas ensinado a Joana pelo tio, Francisco. As cartas deste baralho especial organizam-se em pares, cada par com a mesma imagem, mas com uma inscrição ligeiramente diferente para cada carta: uma representa o vício, outra a virtude. Mas distinguir o vício da virtude é delicado, pois um só existe em relação ao outro, e nunca em estado ideal. Nas palavras de Francisco para sua pupila, é preciso ver “o outro lado das coisas, aceitar que cada história pode conter a história oposta” e que “a mesma história pode mudar de dia para dia” (VV, p.49). Como lembra o narrador em Partes de África: “com as mesmas palavras tanto se pode fingir a verdade como a mentira” (PA, p.77). É preciso interpretação; e na ficção macediana, é preciso que o leitor “preencha as lacunas” como nos exercícios que o jovem Helder cumpria na África.

Francisco de Sá é um duplo para Helder Macedo, já que através dele, e por oposição, o narrador desenvolverá sua visão sobre o fazer romanesco, embora eles não sejam totalmente antagônicos, como o narrador gostaria que fossem; nota-se que o narrador pressente as semelhanças, constrangido, nas entrelinhas de suas reflexões literárias.

Já Joana possui uma composição mais fragmentada: ela espelha-se não só na histórica Joana da Áustria como também em suas versões ficcionais, principalmente a criada por Helder Macedo, apresentada ao leitor nos capítulos 2 e 3. Na verdade, é apenas através de seus duplos que pode ser vislumbrada a identidade fragmentária de Joana, ela própria fingidora de si mesma, como o narrador. Ora, estabelece-se, assim, aquele que talvez seja o espelhamento mais importante do romance, entre Macedo e Joana, ambos criadores de suas próprias identidades.

Embora Pedro e Paula e Vícios e Virtudes incorporem este jogo de duplos de maneira mais sistemática, este processo já existia, claramente, em Partes de África. Para Marisa Corrêa Silva, muitas das personagens do romance são duplos, seja de outras personagens, seja de modelos literários, estabelecendo, neste caso, uma relação parodística, através da qual constroem sua identidade: “os proto-heróis macedianos usam máscaras toscas de modelos tradicionais, somente para desvesti-las e revelarem uma outra face logo adiante”.(13) A autora sustenta que este processo de espelhamento é parte de um dos princípios estruturadores do romance, o da desconstrução (e que não se confunde com a desconstrução segundo Derrida), baseada sobretudo na ironia.

É preciso, contudo, examinar como se estrutura esta técnica em espelhamento tratando-se do narrador e da tradição na qual se insere. Nunca é demais destacar que não se trata de um recurso novo. Lembremo-nos do narrador de Viagens na minha terra que, debatendo a construção de seu romance com o leitor, enumera os elementos constitutivos que todo e qualquer drama ou romance deveriam ter, qual receituário, para em seguida infrigir estas normas deliberadamente.(14) Através da constante quebra da expectativa do leitor, criada na evocação das formas clássicas e em sua subseqüente demolição, o narrador garrettiano cria a si mesmo, a mais importante personagem do romance.

Macedo faz o mesmo, mas evocando já a tradição “transgressora”, dando destaque, sem dúvida, a Machado de Assis: não apenas para problematizá-la, como fez Garrett com o romance romântico, mas para criar uma complexa relação dialógica.

Já em Partes de África, o diálogo com Dom Casmurro está implícito não só no “estilo oblíquo e dissimulado” (PA, p.38) assumido pelo narrador mas também na tentativa de fazer um balanço de sua vida. Assim se declara Bentinho sobre o propósito de sua obra: “O meu fim evidente era atar as duas pontas de vida, e restaurar a velhice na adolescência. Pois, senhor, não consegui recompor o que me foi nem o que fui”.(15) Macedo parte desta posição para problematizá-la:

Bem sei que nunca ninguém voltou a existir por escrever nem por ter escrito, mas há sombras que a memória pode imaginar nos mapas entreabertos. (...) Poderei assim mudar também mudar os nomes (...) atando as pontas das várias vidas reais e imaginadas com os nós verdadeiros dos laços fingidos. Eu próprio já não sou quem eles me teriam reconhecido e aquele que depois, por várias partes e diversos modos, me devo ter ido tornando (...) (PA, p.10)

Macedo, o narrador, se não se compara a Bentinho, ao menos se associa a sua linhagem de narradores totalmente comprometidos com o que narram, no sentido de não poderem ser imparciais frente aos eventos que narram, eliminando qualquer expectativa de realismo absoluto. Assume ainda que, em seu caso, são várias as vidas, reais e imaginadas, atadas por “nós verdadeiros dos laços fingidos”, o que explicita a artificialidade de seu relato e de seus procedimentos narrativos. Além disso, da relação entre verdade e fingimento podemos extrair mais uma metáfora para a mistura entre História e ficção.

Voltemos a Pedro e Paula. Neste romance, a composição das personagens nasce diretamente de Machado. O já mencionado espalhamento entre os gêmeos de Esaú e Jacó e Pedro e Paula é antecipado, na verdade, já no triângulo amoroso entre José, Ana e Gabriel, que espelha, em certa medida, Santos, Natividade e o Conselheiro Aires.(16) Macedo não disfarça as semelhanças, e pergunta, irônico, por ocasião da definição dos nomes dos gêmeos: “Coisas futuras?” (PP, p.22). O futuro mostrará que a distância ideológica e moral que separa os gêmeos (a mesma entre José e Gabriel) é similar a que separa dois momentos igualmente próximos e distintos de Portugal, antes e depois de abril de 1974.

Ao contrário do irmão, ligado a estruturas éticas e sociais do passado colonialista, Paula se emancipa, libertando-se do sistema em que nasceu. E do mesmo modo que o autor, sua própria compreensão dos eventos políticos se dá através de metáforas artísticas; assim, a reconstrução política do país é, em suas palavras, “como preparar a tela para depois ir sendo pintada pelo futuro” (PP, p.181).

Neste ponto, o que era uma comparação aparentemente superficial entre o enredo dos dois romances toma uma dimensão maior, já que Macedo transporta a metáfora histórica criada por Machado para sua reflexão política sobre a relação colônia-metrópole, e a oposição entre o regime ditatorial e o momento social pós-revolução.

Ao assumir, ainda em Partes de África, que quer dizer “alhos para significar bugalhos”, Macedo indica que sua narrativa pode ser lida em sentido metafórico (e aqui é preciso enfatizar nossa convicção de que o narrador é o mesmo nos três romances, de modo que, juntos, constituem uma teoria narrativa única, o que credencia o uso de um texto na análise de outro). Em Pedro e Paula há muitos indícios disto, como quando o narrador, descrevendo a personalidade dos gêmeos, observa: “Metáforas da história” (PP, p. 21). Macedo chega a assumir que suas personagens não são o mais importante: poderiam ser outros gêmeos, desde que significassem esse tempo português (PP, p.174). Claro está, é preciso, sim, compreender o casal de irmãos como metáfora das transformações que atravessa o país na época. Mas se trata de uma pista falsa se compreendida univocamente, pois contradiz outras observações do narrador, dentre as quais se destaca seu indisfarçado interesse por Paula, e a conseqüente valorização da personagem como ser “autônomo”, cuja existência se justifica por si mesma. De modo que se a ficção é metáfora para a política, o reverso é também verdadeiro, já que a política é “também o código de outras inquietações” (PP, p. 201).

Ou seja, “esse tempo português” não apenas é iluminado por, mas ilumina a compreensão das relações afetivas do romance. E Ficção e História alcançam uma significação indissociável.


NOTAS


(*) Doutorando em Teoria e História Literária na área de Literatura Portuguesa, Unicamp.

(1) DAL FARRA, Maria Lúcia. “Réquiem para a metaliteratura” in CARVALHAL, Tânia Franco, e TUTIKIAN, Jane (orgs). Literatura e História: três vozes de expressão portuguesa. Porto Alegre: Editora da Universidade/EFRGS, 1999.

(2) SILVA, Marisa Corrêa. Partes de África: cartografia de uma identidade cultural portuguesa. Niterói, RJ: Editora da Universidade Federal Fluminense, 2002.

(3) ARÊAS, Vilma. “Em forma de fivela” in Remate de Males, Campinas, (12): 27-32, 1992.

(4) CARVALHAL, Tânia Franco. “Partes de África: mosaico de vida e ficção” in Scripta, Belo Horizonte, v. 1, n. 1, 2o sem. 1997.

(5) Nas citações dos romances, serão usadas as iniciais dos títulos e a indicação da página correspondente, de acordo com as edições brasileiras (Partes de África: Rio de Janeiro, Record, 1999 ; Pedro e Paula: Rio de Janeiro, Record, 1999; Vícios e Virtudes: Rio de Janeiro, Record, 2002).

(6) MACEDO, Helder. “As viagens na minha terra e a menina dos rouxinóis” in Colóquio/Letras n. 51. Lisboa: setembro de 1979.

(7) MACEDO, Helder. “As telas da memória”, in CARVALHAL, Tânia Franco, e TUTIKIAN, Jane (orgs). Literatura e História: três vozes de expressão portuguesa. Porto Alegre: Editora da Universidade/EFRGS, 1999.

(8) SILVA, Teresa Cristina Cerdeira. “Na crise do histórico, a aura da história” in CARVALHAL, Tânia Franco, e TUTIKIAN, Jane (orgs). Literatura e História: três vozes de expressão portuguesa. Porto Alegre: Editora da Universidade/EFRGS, 1999.

(9) GOMES, Álvaro Cardoso. A voz itinerante. São Paulo: Edusp, 1993.

(10) E nossas futuras leituras confirmarão, ou não, a singularidade deste aspecto da ficção macediana.

(11) MACEDO, Helder. “Seminário – Entrevista com Helder Macedo” in Scripta. Belo Horizonte, v. 4, n. 8, 1o sem. 2001.

(12) MACEDO, Helder. “As ficções da memória” , in Remate de Males n.12. Campinas, Unicamp, 1992.

(13) SILVA, Marisa Corrêa, op. cit.

(14) GARRETT, Almeida. Viagens da minha terra. São Paulo: Nova Alexandria, 2001, p. 45.

(15) ASSIS, Machado. Dom Casmurro. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d.

(16) Como bem observou Teresa Cristina Cerdeira, um dos sobrenomes de Gabriel é Ayres. Se tal observação poderia parecer superficial em outro contexto, aqui se mostra relevante, considerando um texto repleto de pistas intertextuais como é o caso. SILVA, Teresa Cristina Cerdeira da. “Casablanca, Lisboa, Londres, Paris, Joanesburgo, o mundo” in Scripta v. 1 n.2. Belo Horizonte: PUC-Minas, 1o semestre 1998.

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