A Miopia de Miguilim (1)
Erich Soares Nogueira (*)

É bastante conhecido o fato da obra de João Guimarães Rosa, através da trajetória ou experiência de suas personagens, privilegiar um conhecimento de mundo que se coloca na ordem do irracional. Ler Guimarães Rosa é, a todo momento, sentir uma abertura em direção ao mágico, ao transcendente, ao poético, a algum elemento, enfim, que não se deixa de todo apreender. Tal processo, apesar de ser evidente, nunca é simples ou óbvio, na medida em que se faz no entrelaçamento de todos os níveis da narrativa, desde seu plano temático mais geral, até as peculiaridades de uma linguagem conscientemente trabalhada pelo escritor. Desde Sagarana, o universo do irracional se faz presente, e terá um espaço cada vez maior na obra do autor, como atesta o livro Caos e Cosmos, de Suzi Sperber (1976). De modo geral, é tal a força desse campo dito um tanto selvagem que, ao ser referido nos textos de crítica literária, recebe definições bastante variadas. É notória, aliás, a quantidade de termos e conceitos que o cercam - é denominado primitivo, fantástico, pré-lógico, natural, pré-social, arquetípico, marginalizado, instintivo, sensitivo, etc...

Aqui, pretendemos também discutir uma determinada forma de conhecimento que se dá por outras vias que não a da razão. Trata-se da percepção sensorial. Mais detidamente, faremos uma leitura da novelaCampo Geral”, aproximando-nos da experiência do visível dada pelo conhecido olhar míope de Miguilim –, mas também de uma experiência atravessada por todos sentidos do corpo. Na medida em que a perspectiva de um narrador em terceira pessoa tende a diluir-se na perspectiva dessa personagem, deseja-se também indicar a relação entre a experiência sensorial (o contato entre o corpo do menino e o corpo do mundo) e uma experiência no interior da própria linguagem: a experiência poética (que também se concretiza numa aproximação radical, convocada pelo texto de Rosa, entre o corpo da linguagem e o corpo do leitor).


A novelaCampo geral” (publicada em 1956) narra a experiência de uma personagem infantil – Miguilim – em sua relação com a natureza e com o mundo adulto. Ao lado do irmão Dito, Miguilim estará preludiando toda uma “curiosa estirpe de personagens (...) à qual pertencem infantes de extrema perspicácia e aguda sensibilidade(2), tão presentes em um livro como Primeiras estórias, de 1962. Também quanto ao narrador, a novela antecipa uma perspectiva narrativa que ganhará maior evidência em Primeiras estórias, ou seja, a de um narrador em terceira pessoa cuja objetividade e distanciamento se perdem porque adere à perspectiva da criança. Em ambos os casos, interessa a Guimarães Rosa trazer para o centro da narrativa a visão pouco ou nada racional daqueles que, no dizer de Paulo Rónai, “ainda tropeçam nos pedregulhos da palavra ou se deslumbram com a sua cintilação, embrenham-se com olhos virgens nos mistérios do mundo e voltam com excitantes descobertas.”(3). A estória, não podendo ser efetivamente narrada pela criança, pede a criação desse entremeio, lugar mesmo de reversibilidade entre narrador e personagem, onde as diferenças tendem a se apagar. Diz-se “tendem”, pois as construções formais, como aponta Rónai(4), não são propriamente as da criança, mas de um narrador que a por dentro”.

Antes de discutirmos propriamente alguns aspectos relativos à miopia de Miguilim, trabalharemos com uma passagem que está logo nas primeiras páginas da novela. Isto porque se trata de um momento fundamental na constituição da personagem Miguilim, quando vemos recuperadas as experiências sensoriais mais remotas de sua infância. A passagem é a seguinte:

 

[Miguilim]Tinha nascido ainda mais longe, também em buraco de mato, lugar chamado Pau-Roxo, na beira do Saririnhém. De , separadamente, se recordava de sumidas coisas, lembranças que ainda hoje o assustavam. Estava numa beira de cerca, dum quintal, de onde um menino-grande lhe fazia caretas. Naquele quintal estava um peru, que gruziava brabo e abria roda, se passeando, pufo-pufo – o peru era a coisa mais vistosa do mundo, importante de repente, como uma estória – e o meninão grande dizia: — “ É meu!...” E:  — “É meu...” – Miguilim repetia, para agradar ao menino-grande. E o menino-grande levantava com as duas mãos uma pedra, fazia uma careta pior: “Aãã!...” Depois, era uma confusão, ele carregado, a mãe chorando: “—Acabaram com  o meu filho!...” – e Miguilim não podia enxergar, uma coisa quente e peguenta escorria-lhe pela testa, tapando os olhos. Mas a lembrança se misturava com outra, de uma vez em que ele estava nu, dentro da bacia, e seu pai, sua mãe, Vovó Izidra e Vó Benvinda em volta; o pai mandava: — “Traz o trem...” Traziam o tatu, que guinchava, e com a faca matavam o tatu, para o sangue escorrer por cima do corpo dele para dentro da bacia. — “Foi de verdade, Mamãe?” – ele indagara, muito tempo depois; e a mãe confirmava: dizia que ele tinha estado muito fraco, saído de doença, e que o banho do sangue vivo do tatu fora para ele poder vingar. Do Pau-Roxo conservava outras recordações, tão fugidas, tão afastadas, que até formavam sonho. Umas moças, cheirosas, limpas, os claros sorrisos bonitos, pegavam nele, o levavam para a beira duma mesa, ajudavam-no a provar, de uma xícara grande, goles de um de-beber quente, que cheirava à claridade. Depois, na alegria num jardim, deixavam-no engatinhar no chão, meio àquele fresco das folhas, ele apreciava o cheiro da terra, das folhas, mas o mais lindo era o das frutinhas vermelhas escondidas por entre as folhas cheiro pingado, respingado, risonho, cheiro de alegriazinha. (p.16-17)(5)

 

Esse trecho, como um todo, aponta para um conjunto de experiências, sobretudo sensórias, que têm um certo impacto sobre Miguilim e, por isso mesmo, anuncia elementos temáticos importantes que serão desenvolvidos no decorrer da narrativa: a doença que pode levar à morte (Miguilim achará que está ‘doente de morte’, Dito morre de tétano, o próprio Miguilim fica verdadeiramente doente); a morte de bichos (há repetidas cenas de caça, em especial do tatu);  a importância da estória (criação que vem aliada à percepção sensorial); e a alegria guardada nos elementos da natureza (a alegria será ensinamento central da narrativa, transmitido pelo Dito). É interessante sublinharmos que o anúncio dessa série de temas vem marcado justamente nas lembranças mais antigas de Miguilim. Essas lembranças remetem a experiências cuja localização no tempo é bastante imprecisa, o que parece inseri-las numa outra ordem, despregando-as de um contexto determinado e as construindo como núcleos existenciais, cuja força intervém continuamente na vida do menino.

A própria cor vermelha, como veremos, vai se repetindo, em diferentes formas, constituindo-se, pouco a pouco, como índice sensorial de forte valor simbólico. A depender do contexto, poderá inclusive deslizar para um sentido contrário à alegria que, na passagem acima, as frutinhas vermelhas exalam. Vê-se, por exemplo, numa intencional e expressiva criação de Guimarães Rosa, a cruelalegria avermelhada” dos vaqueiros que matam os tatus, da qual Miguilim intui a existência do Mal(6).

Seguindo mais detidamente a passagem selecionada, a primeira sensação que as tais lembranças despertam em Miguilim é de susto: são as “sumidas coisas que reaparecem e queainda hoje o assustavam”. está incluído o sentimento de medo, explicado pela violência repentina do menino-grande. No entanto, prosseguindo a leitura do texto, descobrimos que o susto que primeiramente aparece é, na verdade, o que nasce de um olhar: num quintal, Miguilim se espanta com um peru que abre roda e se passeia, “pufo-pufo”. A expressão, que parece ser onomatopaica, trazendo um som abafado de penas e concentrando o andar do peru, carrega e transmite, através do próprio relevo sensório da palavra, a impressão mais forte do menino. Lidamos, assim, com um momento privilegiado da percepção em que há a descoberta do ‘novo enquanto experiência sensorial da personagem e enquanto experiência da linguagem. Talvez a matriz desse princípio que move toda a obra de Rosa esteja no clássico episódio do “rol de reis”, do contoSão Marcos” (Sagarana). , parece ser o próprio autor a nos dizer que uma percepção inédita - um angelim que atira para cima cinqüenta metros de tronco e fronde – alia-se à criação do vocábulo novo, inédito. A palavra, nesse caso, com seu ileso gume, com seu corpo de palavra apenas nascido, convoca fortemente o corpo do leitor na elaboração de um possível sentido para a descoberta. Aqui, na passagem de “Campo geral”, vemos que a linguagem se adensa numa expressão delicadamente infantil (pufo-pufo), reverberando com seu corpo sonoro, visual e de um lúdico movimento, a experiência sensorial da personagem e, ao mesmo tempo, convocando-nos a fazer uma leitura via sensoriedade da palavra. Dá-se então algo como umentrelaçamento” numa mesmacarne”, como diria o filósofo Merleau-Ponty (1975), entre o nosso corpo, o corpo da palavra, e o de uma personagem infantil plenamente imersa no corpo do sertão rosiano. Diz-se que tal experiência é de ordem poética, justamente porque, em Guimarães Rosa, a apreensão lírica do texto corresponde a esse momento - sempre inaugural - de ‘corpo a corpo com palavra, seja ela um neologismo, seja uma palavra por nós reconhecida, mas cujo sentido foi reaberto pelo trabalho literário.

Prosseguindo nossa leitura, temos ainda que junto à lembrança do peru, surge primeiramente a imagem de um menino-grande com uma pedra e uma careta, depois os sons de “Aãã!...” e do choro da mãe pelo filho machucado. Miguilim não pode mais enxergar - “uma coisa quente e peguenta escorria-lhe da testa, tapando-lhe os olhos” – e a sensação tátil do sangue sobre o rosto evoca uma outra lembrança, a do banho com sangue de tatu. É quando a imagem do sangue, nesta cena em que o perigo de morte é iminente, elabora simbolicamente a passagem da morte para a vida: afinal, do sangue de um ferimento e do sangue de um tatu morto à faca, chega-se ao “sangue vivo” usado para superar a doença (uma ameaça de morte) e afirmar definitivamente a vida de Miguilim.

É também para esse sentido forte de superação da morte que as lembranças mais remotas do menino vão então contribuir. Assim, temos que as primeiras impressões que Miguilim guarda do mundo formam umsonho”, palavra que resume o conjunto de recordações e sugere, na origem primeira da personagem, a predominância da vida. As sensações recuperadas vão compondo, por fragmentos, uma pequena narrativa que aproxima gradativamente sensações olfativas e visuais: temos as “moças cheirosas e seusclaros sorrisos”, cujas qualidades sensórias se reúnem num “de-beber quente, que cheirava à claridade”, expressão que, por sua vez, prepara a entrada num jardim onde um cheiro é estranhamente qualificado como “o mais lindo”, porque nasce da visão que se tem das frutinhas vermelhas. Toda a seqüência então converge para o momento mais forte da experiência, quando Miguilim descobre o “cheiro pingado, respingado, cheiro risonho, cheiro de alegriazinha”.

Ora, vale primeiramente notar que a construçãocheiro de alegriazinha” traz, em si, algo de extraordinário. Nela, a sensação (o cheiro) emana, não mais da frutinha, mas de uma emoção (a alegria). Note-se: é a alegria que tem cheiro. Assim, se a pequena narrativa leva-nos a entender que o sentimento de alegria nasce da sensação do cheiro das frutinhas, a especial construção, por sua vez, revela o extraordinário da experiência: a alegria deixa de ser reconhecida como sentimento para ser, ela também, uma sensação. Desta maneira, portanto, o movimento que se estabelece é de reversibilidade: as frutinhas têm o ‘cheiro da alegria’, a alegria tem o ‘cheiro das frutinhas’. Desmancham-se na linguagem noções excludentes como realidade interna e externa, sujeito e objeto, corpo e mundo, ou categorias entendidas separadamente, como sensação e sentimento.

É deste modo que se anuncia, emCampo Geral”, o tema da alegria. Devemos certamente anotar que a busca do permanente estado de alegria é o ensinamento central que Miguilim receberá do pequeno Dito, justamente quando este contempla a própria morte. Portanto, naquele momento em que a negatividade da morte se instala com tanta força nas terras do Mutum, o menino Dito, cuja sabedoria esbarra no mistério, revela a Miguilim algo como uma força a ser cultivada pelo espírito, a força da alegria, que permite a superação da morte ou, pelo menos, a resistência da vida. Aqui, na delicada experiência de um menino, entre as folhas de um jardim, vê-se como que a raiz da alegria, da aprendizagem da alegria, num cheiro distante, ou, se quisermos, num instante “sensório-poético” para sempre inscrito na memória de um corpo.

 

***

 

Apresentada brevemente uma relação entre percepção sensorial e experiência poética (elaborada nesse encontro entre corpo do mundo, corpo da personagem, corpo da palavra e do leitor), resta fazer uma leitura da novelaCampo Geral”, considerando sobretudo a característica que determina a maioria das percepções de Miguilim: a miopia. Sublinhe-se, porém, que tal característica é desconhecida por todos (inclusive pelo leitor) até quase o fim da narrativa.

Colocada tal informação entre parênteses, pode-se então imaginar que um leitor que conhece algumas das narrativas de Guimarães Rosa, quando se põe a acompanhar a personagem Miguilim, rapidamente desconfia que novamente uma personagem criada pelo autor será veículo para alguma particularíssima descoberta. O foco narrativo mais uma vez parece diluir-se na perspectiva da personagem, em especial de uma criança, e mais uma vez esse leitor também é convocado a aproximar-se de modo radical de um mundo geralmente tão estranho ao seu. EmCampo Geral”, logo se percebe, essa abertura ao novo está ligada à visibilidade do mundo. Sofre-se de imediato algo como um deslocamento de um olhar comum sobre as coisas, para compartilhar, com Miguilim, todo um universo de pequenas formas. Mais que isso, um mundo feito de cores, movimentos, cheiros e, quase sempre, de uma ponta de brilho. São as penas de um pássaro macio azulado, a pocinha d’água onde o pequeno gaturamo se mira, os caramujos e formigas, o leve tremor das orelhas de um coelho, os dentes de uma moça, engraçados de tanta brancura, o dedo de um bispo, com o anel vermelho, as abelhas de muitas qualidades e cores, mais ciscos, joaninhas, ramos que são borboletas, desdobramentos, enfim, do corpo de um mundo cuja existência alguns leitores poderiam nem sequer ter antes vislumbrado. É quando a obra de arte faz-se  portadora de umexcedente de percepção”, que extravasa o “conjunto de significações que a vida cotidiana nos tornou familiares”, como indica Franklin Leopoldo e Silva (1992), em ensaio que tece aproximações entre Bergson e Proust. Assim, de um modo talvez demasiadamente concreto, podemos dizer que, quando começamos a lerCampo Geral”, é como se Guimarães Rosa nos entregasse, através dos olhos de Miguilim, uma lupa, dizendo-nos: Veja! E, quase que contraditoriamente, esta lupa é, sem que ainda saibamos, a miopia do menino.

No decorrer da novela, há um conjunto de pistas indicativas da miopia que, como dissemos, ao fim da narrativa será de fato revelada. Ao término da leitura, podemos então voltar e recompor o enredo, os momentos de percepção da personagem, e talvez entender que ele, Miguilim, era na verdade “piticego”, como diz a irmãzinha Chica, depois que o doutor passa pelo Mutum. Ora, essa retomada do texto é importante, mas deve ser cuidadosa para não incorrer em erros. O principal deles é justamente querer embaçar aquele claro mundo que desde o começo, e inegavelmente, foi visto pelos olhos da personagem, e, na procura rápida de uma resposta, totalizar: “o menino não enxergava”. Afirmação que traz a miopia em seu aspecto puramente negativo, sobrepondo-o à experiência do texto. Mesmo alguns comentários críticos sobreCampo Geral são levados pelo caráter impeditivo da miopia; afinal, seguindo a definição estrita, a miopia é uma característica que deve ser corrigida por um instrumento ótico para que o sujeito possa ver normalmente. Ser míope sempre é ver a menos, seja ‘com os olhos’, seja ‘com o espírito’ – fala-se emespírito míope”, emconcepção míope”, emvisão curta” das coisas. É talvez na esteira dessa espécie de automatismo que alguns, ao retomarem a trajetória da personagem Miguilim, reduzem a experiência do menino à de um ser aprisionado em seu embaçado ‘mundico’. Braga Montenegro, por exemplo, chega a afirmar que somente ao fim da narrativa, quando Miguilim ganha os óculos do doutor, é que o menino passa a ter “a visão perfeita das coisas, a noção exata das microformas, até então despercebidas.”(7) [grifo meu].

Na suposição de que o percurso de leitura descrito acima possa ocorrer, o primeiro ponto que se deve então sublinhar é que, mesmo ao sabermos da miopia de Miguilim, se voltarmos às experiências mais fortes de sua percepção sensorial, elas continuam em seus lugares, cristalinas, em nada sendo afetadas pela informação de que são produto de umdefeito de visão’:

(...) se ele [Miguilim] pudesse estava voltando para a horta, (...) via as formiguinhas entrando e saindo e trançando, os caramujinhos rodeando as folhas, no sol e na sombra, por onde rojavam sobrava aquele rastrio branco, que brilhava. (p.24)

Suas percepções ainda continuam, intactas, captando a beleza dos movimentos sutis de cada pássaro:

(...) O sanhaço, que oleava suas penas com o biquinho, antes de se debruçar. O sabiá-peito-vermelho, que pinoteava com tantos requebros, para trás e para frente, ali ele mesmo não sabia o que temia. E o casal de tico-ticos, o viajadinho repulado que ele vai, nas léguas em três palmos de chão. E o gaturamo, que era de todos o mais menorzim, e que escolhia o espaço de água mais clara: a figurinha dele, reproduzida no argume, como que ele muito namorava. Tudo tão caprichado lindo! (p.47) 

Nesse caso, pode-se até dizer que Guimarães Rosa ironicamente parece ‘pregar-nos uma peça’. Procuramos na narrativa os traços da miopia, sugerida nas passagens em que Miguilim sente a visão embaçar, mas encontramos em tudo mais, como anotara Henriqueta Lisboa, uma “clara perceptibilidade”(8). De qualquer modo, consegue-se enfim pontuar os momentos em que a miopia parece agir. É dessa maneira, porém, que também se deixa de entendê-la, esquecendo-se de que ela não está especialmente nas passagens específicas que em retrospectiva se localizam, mas em absolutamente toda a narrativa. A miopia que Guimarães Rosa põe em evidência através de Miguilim é a de uma visão cristalina do que, em suma, é ‘menor’ e à margem da visão ampla e utilitária do mundo adulto. Daí que a informação dada ao fim da narrativa é verdadeiramente reveladora: com Miguilim, víamos claramente e sobretudo poeticamente como míopes sem saber que o éramos. Assim, a miopia revela-se como uma focalização do olhar cujo valor é extremamente positivo, pois vem aliado ao valor poético que, pelos olhos de Miguilim, confere-se ao microcosmo do Mutum. Nesse sentido, Guimarães Rosa inverte a experiência comum. Ser míope é, enfim, ver a mais.

Mas discutamos também o embaçamento que a miopia comporta. Pensando o ato propriamente perceptivo, aquela faixa da miopia em que os objetos perdem a nitidez quase não é apresentada através dos olhos de Miguilim. De qualquer modo, se esta faixa necessariamente está , como característica intrínseca da miopia, poderíamos entendê-la como suporte da percepção cristalina que se tem do objeto focado; afinal, dizendo como Merleau-Ponty, em Fenomenologia da Percepção:

(...) é necessário adormecer a vizinhança para ver melhor o objeto (...), porque olhar o objeto é entranhar-se nele, e porque os objetos formam um sistema em que um não pode se mostrar sem esconder outros. Mais precisamente, o horizonte interior de um objeto não pode se tornar objeto sem que os objetos circundantes se tornem horizonte, e a visão é um ato de duas faces. (MERLEAU-PONTY, 1999, p.104)

Assim, “apoio meu olhar em um fragmento da paisagem, ele se anima e se desdobra, os outros objetos recuam para a margem e adormecem, mas não deixam de estar ali(9). EmCampo Geral”, a miopia de Miguilim, quando “adormece” seus horizontes, é para abrir espaço à espantosa nitidez de seu próprio universo.

Isso não significa que para Miguilim não haja todo um campo difícil de ver e entender. A própria mata escura do Mutum, que lhe mete medo, é território que simboliza o desconhecido. Todo esse campo, porém, não resulta estritamente da  percepção míope, mas de algo que também integra o horizonte que rodeia a personagem: o mundo dos adultos, lugar da violência, da ação incoerente e do proibido. É nesse sentido que poderemos melhor compreender dois momentos em que os olhos de Miguilim ‘falham’. Quando a miopia faz-se turva, ela coincide com uma experiência de embate com esse mundo que tem  pouca ou nenhuma clareza para o menino. É o que se pode inferir do seguinte comentário de Paulo Rónai a respeito da perspectiva narrativa de “Campo Geral”:

Contada na 3ª pessoa, a história é entretanto apresentada do ponto-de-vista desse menino, Miguilim: o leitor percebe a realidade que é vista pelos olhos dele. (...)A maior vitória do novelista consiste em ter conseguido reconstituir o mundo íntimo de Miguilim sem inquiná-lo de noções e representações alheias à sua idade e ao seu meio, fazendo-nos sentir o ingênuo frescor de suas descobertas e os espantos que acompanhavam a sua penetração progressiva no universo turvo dos adultos (RÓNAI, 2002, p.23)

O primeiro indício dessa 'miopia turva’ ocorre quando Miguilim precisa, em segredo, entregar à sua mãe o bilhete mandado porTio Terêz. O encontro com o tio acontece às escondidas em um dos caminhos da mata do Mutum, e o bilhete recebido pelo menino é sinal de uma relação adúltera, cujo resultado imediato foi a ‘expulsão’ de Tio Terêz da casa da família. O momento é de total impasse, porque Miguilim é amigo fiel do tio, e portanto sente-se obrigado a cumprir a tarefa, mas, por outro lado, entende, mesmo sem formular claramente o adultério, que a relação entre o tio e mãe desrespeita o pai. Sem saber como distinguir o bem e o mal, Miguilim fica imerso numa dúvida que não se resolve, cuja intensidade resvala no medo e torna-se quase insuportável:

O bilhete estava ali na algibeira, até medo de botar a mão, até não queria saber, amanhã cedo ele via se estava. Rezava, rezava com força; pegava um tremor, até queria que brilhos doessem, até queria que a cama pulasse. Conseguia era outro medo, diferente. O Dito tinha adormecido. O que dormia primeiro, adormecia. O outro herdava os medos, e as coragens. Do mato do Mutum. (p.80)

É em meio a esse estado de espírito que Miguilim, numa tentativa de esquecer o bilhete, vai jogar malha e apresenta um sinal do embaçamento causado pela miopia. Mas este sinal, como o próprio trecho irá apontar, também pode ser lido como produto do dilema moral, agente perturbador da visão que Miguilim comumente tem das coisas. O importante, nesse caso, é entender que toda a passagem conflui não para negar a presença da miopia (precisamente, de seu embaçamento), mas para atribuir-lhe um valor simbólico, ou seja, o do difícil confronto que Miguilim deverá experimentar, por toda a narrativa, com o mundo turvo dos adultos. Note-se na passagem abaixo que o esforço de Miguilim será justamente o de retomar o fluxo perceptivo que deflagra a beleza das coisas, fluxo temporariamente perdido porque entre o mundo e os olhos míopes do menino interpõe-se a força obscura de um tabu:

Desde estavam brincando de jogar malha, no pátio, meio de tardinha. Era com dois tocos, botados em , cada um de cada lado. A gente tinha de derrubar, acertando com uma ferradura velha, de distância. Mas Miguilim não dava para jogar direito, nunca que acertava de derribar (...) Mas Miguilim não enxergava bem o toco, de certo porque estava com o bilhete no bolso, constante que em Tio Terêz não queria pensar. Essa hora, Pai tinha voltado da roça, estava dentro, cansado, deitado na rede macia de buriti, perto de Mãe,como cochilava. Miguilim forcejava, não queria, mas a idéia da gente não tinha fecho. Aquilo, aquilo. Pensamentos todos desciam por ali a baixo. Então, ele não queria, não ia pensar mas então carecia de torar volta: prestar muita atenção nas outras coisas todas acontecendo, no que mais fosse bonito, e tudo tinha de ser bonito, para ele o pensar então as horas daquele dia ficavam sendo o dia mais comprido de todos... (p.75-76)

Colocada a questão, é mais fácil entender por que a outra pista evidente da miopia de Miguilim (ao andar pelo mato o menino não enxerga onde pisa e vive tropeçando) aparece justamente quando o menino tem seu corpo submetido ao trabalho incessante na roça do pai. Na verdade, durante esse episódio que narra a passagem violenta de Miguilim para fora de sua infância, há mais que uma breve falha do olhar, pois ocorre que tanto suas percepções sensoriais (que no plano da linguagem remetem a uma ordem poética), quanto sua capacidade de inventar estórias, quase deixam de existir. Pensando nisso, o trecho destacado logo a seguir é particularmente interessante, porque junto a um processo geral de perdas, destaca-se uma marca forte de resistência. Miguilim ainda guarda, como talismã que preserva sua translúcida miopia, umbesourinho bonito, pingadinho de vermelho”. A idéia de resistência salta aos olhos porque os tais pingos vermelhos remontam justamente à experiência “sensório-poética” mais intensa e remota de Miguilim: a visão das frutinhas vermelhas, pingadas no meio de um jardim, onde o menino descobrira o “cheiro de alegriazinha”. É como se, apesar de tudo, Miguilim ainda segurasse, em suas mãos, a raiz última de forças que lhe afirmam a vida:

Sol a sol – de tardinha voltavam, o corpo de Miguilim doía, todo moído, torrado. Vinha com uma coisa fechada na mão. —“Que é isso, menino, que você está escondendo?” — “É a joaninha, Pai.” — “Que joaninha?” Era o besourinho bonito, pingadinho de vermelho. —“ se viu?! Tu há de ficar toda a vida bobo, ô panasco?!” – o pai arreliou. E no mais ralhava sempre, porque Miguilim não enxergava onde pisasse, vivia escorregando e tropeçando, esbarrando, quase caindo nos buracos: —“Pitosga...” (p.117)

A resistência de Miguilim não suporta a dura travessia para o mundo adulto e, cada vez mais, o corpo do menino deixa de ser lugar de apreensão sensório-poética para atuar como instrumento voltado à produção da roça. Afinal, as visões fugazes, precárias, perdidas no fluxo do tempo, que Miguilim ainda traz inscritas em seu corpo são, em suma, inúteis: os gestos de um coelho, o sumiço rápido e profundo do vaga-lume, os pelinhos brancos no casco de um tatu. Vale mais a precariedade concreta de uma família pobre, definindo com sua inegável permanência o que deve ser feito de um corpo. Com esse andamento crescente do episódio, poderemos então dizer, com Laymert Garcia Santos, que encontramos “não mais o corpo que age e, agindo, diz a linguagem dos sentidos; mas sim linguagem que age o corpo e, agindo, enuncia o primado da ordem, da voz imensa(10):

Mas se carecia era de dobrar o corpo, levar os braços, gastar mais força, prestar cautela no serviço, se não a ferramenta resvalava, torava a plantação. O relar da folha da enxada, nas pedrinhas, aqueles bichos miúdos, a gente avançando sempre, os pés pisando no matinho cortado. Dava o cheiro gostoso, de terra sombreada. As moças de lindos risos, na fazenda grande dos Barboz, as folhagens no chão, as frutinhas vermelhas de cheiro respingado – aquilo! – ah, então nunca ia poder ter um lugar assim, permanecia aquele fulgorzinho na memória, e a enxada capinando, se suava, e o Pai ali tomando conta? Nunca mais. O corpo pesava, a cabeça ardendo, Miguilim nem ia poder cumprir promessa, agora ele desanimava de tudo. Doía. (p.132)

O episódio termina com o aniquilamento físico de Miguilim, que tonteia e cai, ainda protegendo os olhos:

De repente, no outro dia, Miguilim estava capinando, sentia aquele mal-estar, tonteou: veio um tremor forte de frio e ele começou a vomitar. Deitou-se ali mesmo,  no chão, escondendo os olhos, como um bichinho. (p.132)

Miguilim é acometido por uma doença  – “... nem ia conhecendo quando era dia e quando era noite.” – e um dos sintomas expressos em seu corpo é, não por acaso, uma “barriguinha toda sarapintada de vermelhos”. No contexto que vamos analisando, porém, o pontilhado vermelho é índice de morte. Assim, a trajetória da infância de Miguilim fica sintetizada nesse deslizamento, no interior desse veio sensório do texto, do significado de uma cor (vermelho)/forma (pingado) associando-se tanto à vida quanto à morte. Nesse caso, o que morre afinal? Morre a infância de Miguilim, simbolizada numa doença que, não por acaso, atravessa-lhe o corpo todo.

Ora, é na seqüência dessa ‘morte que ficamos sabendo que Miguilim é míope. Portanto, note-se bem, o chamado defeito de visão, quando abertamente apresentado, coincide com o ingresso de Miguilim na vida adulta. Ao afastar-se de sua infância, como um olhar míope que se afasta de um objeto, mas ainda tentando focalizá-lo, Miguilim sente que o mundo de repente se turva. Dizendo de outro modo, ao deixar de ser criança, Miguilim fica “doente dos olhos” (para lembrarmos o que dissera Alberto Caeiro(11)).

Mas o recurso narrativo da descoberta da miopia é tão ricamente trabalhado por Guimarães Rosa, que ao indiciar o fim de uma clara abertura ao poético (que em Rosa parece ser inerente à infância), ao mesmo tempo abre caminho para a possibilidade de restauração do olhar perdido. Afinal, se o caso é de miopia, ela pode muito bem ser corrigida com um par de óculos. Este, trazido por um doutor, simbolizará sobretudo um ganho de ordem poética. o “claro da roupa” do doutor viajante, que chama a atenção de Miguilim, aparece como o primeiro sinal de uma luminosidade que volta ao olhar do menino. Ao experimentar os óculos uma primeira vez, por um brevíssimo momento, Miguilim sente algo como uma repentina nitidez das formas à sua volta, em uma visão de onde irrompe, mais uma vez, o novo e o belo:

Miguilim olhou. Nem não podia acreditar! Tudo era uma claridade, tudo novo e lindo e diferente, as coisas, as árvores, as caras das pessoas. Via os grãozinhos de areia, a pele da terra, as pedrinhas menores, as formiguinhas passeando no chão de uma distância (p.139-140)

Assim, quando vai decidir se parte do Mutum, para ganhar “uns óculos pequenos”, Miguilim recebe um singular conselho da Mãe:

― Vai, meu filho. É a luz dos teus olhos, que Deus teve poder para te dar. (p.140)

Na passagem mais longa, note-se, a visão das pequenas coisas, das chamadas microformas, é totalmente recuperada pelos óculos. O foco ainda recai sobre elas (são “os grãozinhos de areia, a pele da terra, as pedrinhas menores, as formiguinhas passeando no chão”). No entanto, é muito significativo perceber que, agora, elas podem ser, e são, vistas de longe. Abre-se, com isso, uma relação entre o fechamento (do foco) e o distanciamento (do olhar) cujo valor é extremamente significativo. Entende-se que Miguilim recupera o olhar que toma o ‘menor’, mas não propriamente o olhar de sua infância este, colado ao mundo, não precisava de óculos. Os óculos, portanto, valem simultaneamente como recuperação e perda. O olhar infantil que sem saber que , este perde-se definitivamente. O olhar que de início habitava a beleza do Mutum sem saber ao menos dizer se o lugar era bonito, agora distingue, distanciado, a beleza desenhando-se no fluxo do mundo. Daí que o menino, no momento mesmo da partida, olha com os óculos, decide, sabe, e poderá concordar com aquele moço que um dia encontrara numa viagem:

E Miguilim olhou para todos com tanta força. Saiu fora. Olhou os matos escuros de cima do morro, aqui a casa, a cerca de feijão-bravo e são-caetano; o céu, o curral, o quintal; os olhos redondos e os vidros altos da manhã. Olhou, mais longe, o gado pastando perto do brejo, florido de são-josés, como um algodão. O verde do buriti, numa primeira vereda. O Mutum era bonito! Agora ele sabia. (p.142)  [grifo meu]



NOTAS

(1) A primeira parte deste artigo corresponde à comunicação feita pelo autor no III Seminário Internacional Guimarães Rosa, realizado na PUC-MINAS, Belo Horizonte, ago/2004. 

(*) Mestre em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas

(2) NUNES, 1976, p.158 

(3) RÓNAI, 1975, p.36 

(4) RÓNAI,1990, p.35 

(5) Todas as citações indicadas apenas pelo número da página serão de ROSA (1997). 

(6) Leia-se a passagem: “Então, mas por que é que pai e os outros se praziam tão risonhos, doidavam, tão animados alegres, na hora de caçar atoa, de matar tatu e os outros bichinhos desvalidos? Assim, com o gole disso, com aquela alegria avermelhada, era que o demônio precisava de gostar de produzir os sofrimentos da gente, nos infernos? Mais nem queriam que ele Miguilim tivesse pena do tatu – pobrezinho de Deus sozinho em seu ofício, carecido de nenhuma amizade. Miguilim inventava outra espécie de nojo das pessoas grandes.”p.59 [grifo meu

(7) MONTENEGRO, In: ROSA (1995,v.1, p.156) 

(8) LISBOA,1995,p.140 

(9) MERLEAU-PONTY, 1999, p.104. 

(10) SANTOS, 1989, p.25 

(11) PESSOA, 1994,p.205


REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS

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MERLEAU-PONTY, Maurice. O olho e o espírito. IN: CHAUÍ, Marilena de Souza (Org.). Os pensadores - Merleau-Ponty. 1ª ed. Trad. Gerardo Dantas Barreto. São Paulo: Abril Cultural, 1975. p.275-301.

MERLEAU-PONTY, Maurice.Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

MONTENEGRO, Braga. Guimarães Rosa, novelista IN: ROSA, João Guimarães. Ficção completa. Rio de Janeiro: ed. Nova Aguilar, 1994. v.1, p. 148-158

NUNES, Benedito. O amor na obra de Guimarães Rosa. O dorso do tigre. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1976.p. 143-171.

PESSOA, Fernando. Poemas completos de Alberto Caeiro. Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.

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ROSA, João Guimarães. Ficção completa. 1ª ed., v.1/v.2., Rio de Janeiro: ed. Nova Aguilar, 1995.

ROSA, João Guimarães. Manuelzão e Miguilim. 9ª ed., 19ª reimpressão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.

ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. 44ª impressão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988. 160p.

SANTOS, Laymert Garcia dos. A experiência da agonia. Tempo de Ensaio. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p.13-34.

SILVA, Franklin Leopoldo e. “BERGSON, PROUST – tensões do tempo”.  In: Novaes, Adauto(org). Tempo e História São Paulo: Companhia das Letras, Secretaria Municipal de Cultura, 1992.

SPERBER, Suzi Frankl. Caos e cosmos : leituras de Guimarães Rosa. São Paulo: Duas Cidades, 1976.

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