Fora do Éden, viver é perigoso

Cleide Oliva(*)

1. Sertões

Coração da gente - o escuro, escuros.
Riobaldo

Segundo a narrativa mítica do Gênesis, no jardim do Éden o homem vivia aquém do bem e do mal, protegido dos perigos da própria vontade, pois desconhecia a distinção entre ambos, o que pode significar tanto que o bem e o mal não existissem quanto que, existindo, o próprio homem não possuía faculdades de juízo para percebê-los. Mas ter consciência de algo não é justamente o que permite que esse algo seja “objetivado”  pelo nosso espírito? Como dizer que algo “existe” se não existe para nós, isto é, se não é sensivelmente/cognitivamente percebido por nós? Assim sendo, parece-nos que o mito edênico propõe umlugarparadisíaco onde não havia realmente bem e mal, que são objetivações de ações humanas diante de situações que demandam um gesto consciente e livre, o que parece tornar plausível a interpretação de que, no Éden, o homem ainda não gozava plenamente de seu livre-arbítrio. Assim, consciência e liberdade eram características que estavam potencialmente inscritas no humano, mas apenas se manifestaram no momento em que ele decide desobedecer a uma ordem expressa de Deus: 

Eis que o homem é como um de nós, sabendo o bem e o mal; ora, pois, para que não estenda a sua mão, e tome também da árvore da vida, e coma e viva eternamente; o Senhor Deus o lançou fora do jardim do Éden, para lavrar a terra de que fora tomado. E havendo lançado fora o homem, pôs querubins ao oriente do jardim do Éden, e uma espada inflamada que andava ao redor, para guardar o caminho da árvore da vida (Gênesis 3:22-24, Bíblica Sagrada).

Resta saber se a ‘escolhapela liberdade poderia ter sido feita sem significar uma ‘escolhapelo mal, isto é, será que o mito expressa a emancipação humana - a possibilidade de decidir, de forma que o comer do fruto proibido seja o paradigma dos riscos que a liberdade implica - ou apenas a entrada do Mal no mundo, devido a uma decisãoruim’? A interpretação por que optamos é a de que o mito edênico elabora a emancipação do homem, que se assume como agente do seu próprio pro-jeto(1) de vida. Esta perspectiva é otimista, pois o comer do “fruto proibido” significou um passo, temerário talvez, mas inegavelmente belo, em direção a uma maior autonomia do humano. O mito oferece indícios para essa interpretação: por que a árvore estaria ali, no jardim criado para habitação da raça humana, se não para que o humano ‘soubesse’ da possibilidade de “distinguir” o bem e o mal? A árvore estrategicamente disposta em sua plena visibilidade não representava um desafio, uma meta, uma provocação à “maioridade” do humano? 

Tal perspectiva implicará uma curiosa dubiedade na interpretação do eventoexpulsão do paraíso’, pois, se por um lado isso significa agora a vivência consciente do mal, por outro lado indica a emancipação humana, o “ter que se virarpelos próprios méritos, saindo de uma posição confortavelmente passiva quanto à própria existência. Afinal, é justamente no “comer do fruto proibidoque o livre-arbítrio humano se concretiza em ação.

É interessante notar que a expulsão do paraíso teve, mais do que um caráter punitivo, um aspecto preventivo e protetor: “...para que não estenda a sua mão, e tome também da árvore da vida, e coma e viva eternamente (versículo 22). Parece que apenas após ter comido do fruto da árvore do conhecimento é que o homem poderiareconhecer’ a árvore da vida, com a conseqüência de que, caso o homem comesse do seu fruto, tornar-se-ia também imortal, prolongando pela eternidade esse estado de criatura imperfeita, na qual se inscreve a dicotomia do bem e do mal. O homem seria então ético e imortal, ao contrário dos deuses, que habitam o sagrado mundo da indiferenciação e da indistinção, conforme argumentação de Galimberti, para quem o mundo sagrado dos deuses é “aquela reserva de toda diferença, aquela indecifrabilidade que os homens, depois que dela se separaram, perceberam ser seu horizonte de procedência e a mantiveram à distância, fora da sua comunidade” (GALIMBERTI, 2003, p. 16).

Umberto Galimberti compreende a experiência com o sagrado a partir de uma perspectiva antropológica e psicológica, onde o sagrado seria não apenas exterior, mas também interno ao homem, “seu fundo inconsciente, do qual um dia a consciência se emancipou e tornou autônoma, sem contudo suprimir o cenário enigmático e obscuro de sua origem”(IDEM, p. 12). O sagrado seria uma espécie de loucura, não aquela reconhecida pela psicanálise e psicologia, que se caracteriza por ser uma transgressão da razão, mas uma outra, que é anterior à própria distinção entre razão e loucura:

Mas existe uma espécie de loucura que não é transgressão, pelo simples motivo que ela precede as regras e as transgressões; a essa não conhecemos, porque todo saber pertence à ordem da razão que pode encenar seu discurso tranqüilo quando a loucura deixa o palco, quando a palavra é dada à solução do conflito, não à sua explosão, à sua ameaça (IDEM, p. 13).

O terreno do sagrado é, portanto, o do indiferenciado, onde não imperam os princípios da lógica, da linguagem cognoscente, da ética e das organizações sociais e políticas. Em oposição a ele, o mundo do trabalho e da razão se sustenta sobre dois alicerces lógicos: os princípios da identidade e não-contradição, que postulam as seguintes premissas:

a) para que uma coisa seja isto é preciso que ela seja idêntica a si mesma;

b) uma coisa não pode ser idêntica a si mesma (isto) e, ao mesmo tempo, ser outra coisa (aquilo) que é diferente de si.

É dessa violência primária que introduz a diferença em meio ao indiferenciado que a própria humanidade pôde surgir; a partir das operações da razão que separa isto e aquilo criando a diferença dos múltiplos significados culturais, sociais e éticos. Esse é um gesto violento porque desloca a continuidade primordial e intuitiva para uma pseudo-continuidade representacional entre mundo e pensamento: “O gesto da razão é um gesto violento,  porque dizer que isto é isto e não outra coisa, dizer que o cavalo é o cavalo e não o instinto, o desejo, o ímpeto, a fidelidade, o sacrifício, a morte, é uma decisão da razão e não a verdade das coisas”(GALIMBERTI, 2003, p.15). A esse respeito Octávio Paz ainda dirá:

Desde Parmênides nosso mundo tem sido o da distinção nítida e incisiva entre o que é e o que não é. O ser não é o não ser. Este primeiro desenraizamento - porque foi como arrancar o ser do caos primordial - constitui o fundamento de nosso pensar. Sobre essa concepção construiu-se o edifício das “idéias claras e distintas”, que se tornou possível a história do Ocidente, também condenou a uma espécie de ilegalidade todas as tentativas de prender o ser por caminhos que não fossem os desses princípios. Mística e poesia viveram assim uma vida subsidiária, clandestina e diminuída (PAZ, 2003, p. 40).

O homem, vivendo sobre o signo da distinção, articula sua existência a partir do reconhecimento das diferenças e do trato com a alteridade, e o interdito em relação ao incesto é exemplar para entender a importância do reconhecimento da diferença para a ordenação social. A linguagem, a lógica, a ética, a moral e todas as demais instituições humanas são frutos dessa violência fundamental, onde mesmo a identidade aparece porque existe umoutro”, umistoque continua em si em meio a outrosaquilo”.

o sagrado se rege pelo princípio do simbólico (syn-ballein: do grego, lançar junto), onde os deuses são e não são, obedecendo a regras distintas das dos mortais, como se na citação abaixo de um fragmento de Heráclito, em que o deus é identificado com elementos paradoxais, díspares, ressaltando como característica própria do sagrado a impossibilidade de cerceá-lo em sistemas conceituais ou predicativos,

O deus é dia e noite, inverno e verão, guerra e paz, saciedade e fome, e muda como fogo quando se mistura a incensos, absorvendo de vez em quando os seus aromas. O homem toma por justas umas coisas e por injustas outras; para o deus tudo é belo, bom e justo. (apud GALIMBERTI, 2003)

Galimberti lembrará da narrativa sagrada de Jó, o homem justo que se assolado por diversas calamidades e lança diante da face divina seus lamentos e angustiadas perguntas. É interessante notar que suas perguntas permanecem sem resposta, ou melhor, a ele é negada a legitimidade de apresentar suas questões. Conforme apontado por Jack Milles (1997), Deus responde a Jó com o argumento - incontestável - da sua soberania e poder, tentando com isso negacear a pergunta que havia sido feita, que na verdade dizia respeito à justiça divina, a única das “propriedades” divinas que estava em questão. Parece que a ‘personagemDeus usa o truque, bastante comum entre os humanos, de, quando sem argumentos, tergiversar e atacar o interlocutor, pretendendo com isso lançar uma nuvem de fumaça que o desoriente:

Onde estavas, quando lancei os fundamentos da terra? Dize-mo, se é que sabes tanto. Quem lhe fixou as dimensões - se o sabes -, ou quem estendeu sobre ela a régua? Onde se encaixam suas bases, ou quem assentou sua pedra angular entre as aclamações dos astros da manhã e o aplauso de todos os filhos de Deus? Quem fechou as portas do mar quando irrompeu jorrando do seio materno; quando lhe dei nuvens como vestidos e espessas névoas como cueiros; quando lhe impus os limites e lhe firmei porta e ferrolhos, [...] Entrastes pelas fontes do mar, ou passeastes pelo fundo do abismo? Foram-te indicadas as portas da morte, ou viste os porteiros da terra da sombra? Examinaste a extensão da terra? Conta-me, se sabes tudo isso! (Livro de Jó, 38: 4-18, Bíblia Sagrada, 1997)

Como se , a razão humana não pode pretender dar conta da (des)razão divina, e a comunicação entre essas duas dimensões - sagrada e humana - será sempre tensa e problemática. A violência do sagrado, que na verdade é a violência da não-diferenciação (e, portanto, não-civilização) será exteriorizada pelo homem e divinizada, manifestando-se de forma exemplar na mitologia grega, em que os deuses antropomorfizam desejos e sentimentos humanos sem qualquer exigência ética ou moral. Exteriorizar a violência é salvaguardar a razão humana, que recua frente a violência que em si mesma e da qual se emancipou. Libertando-se do indiferenciado, a consciência produz a diferença, que é tanto constituída pelo homem como constituinte dele. Interditada, a violência torna-se pharmakon, o remédio/veneno que cura ou mata dependendo das doses em que é ministrado. Pondo-se à distância do sagrado, expulsando-se a si mesmo do paraíso mitológico do Éden, o homem torna-se conhecedor do bem e do mal, torna-se ético, sem que suas ligações com o divino sejam cortadas:

Maldito na comunidade dos homens, o sagrado, com toda sua bagagem de transgressões divinas, de práticas sexuais proibidas, de formas de violência e brutalidade, que toda a mitologia abriga sem pudor e sem reserva, torna-se bendito quando se transfere para o exterior. Com essa expulsão o homem é arrebatado à sua violência que, divinizada, é posta além do humano como entidade separada, como coisa que diz respeito aos deuses (GALIMBERT, 2003, p. 17).

Se a diferença é a condição de possibilidade para a cultura humana, o indiferenciado permanecerá como aquele não-lugar onde nãodistinção possível, ou desejável. Diferente dos homens, que são ouistoouaquilo” e vivem sob a imposição ética de de-cidir (de-caedere, cortar) seu posicionamento enquanto seres históricos e contingentes, o sagrado está além do bem e do mal, abrangendo, como dirá Bataille, aspectos fastos e nefastos (aqui basta lembrar os sacrifícios humanos nas religiões arcaicas).

O sagrado, portanto, é aquele panorama indistinto, aquela reserva de toda diferença, aquela indecifrabilidade que os homens, depois que dela se separaram, perceberam ser seu horizonte de procedência e a mantiveram distinta, fora da sua comunidade, no mundo dos deuses, que por isso antecederam os homens. (...) Freud deu a esse mundo o nome de inconsciente, e na escolha da palavra está o ponto de vista de quem observa de uma consciência alcançada e pacificada. Os homens conheceram o inconsciente na forma mais dramática do divino e do sagrado (GALIMBERT, 2003, p. 16).

Entretanto, se no Éden a indistinção entre bem e mal implicava uma impossibilidade de de-cisão ética, significava também ausência de angústia e de sofrimento: é a infância da humanidade, antes do corte com a  Mãe amorosa, que supre todas as necessidades da criança (do homem) em uma relação simbiótica a que nada falta, exceto a própria falta — a ausência, o desejo, o pro-jeto. Instaurado o corte, e expulso do jardim, resta ao homem empreender a difícil tarefa de domesticar o inóspito sertão, onde viver será perigoso, porque demandará sempre novos cortes, novas decisões que implicarão um ethos que precisará ser culturalmente legitimado.

 

2. Veredas

No ano de 1995 a revista italiana Liberal publicou um diálogo epistolar entre o cardeal Carlo Maria Martini e Umberto Eco, diálogo que foi posteriormente publicado no livro de título Em que crêem os que não crêem?, em que também está incluída uma posterior discussão acerca dos temas tratados por outros seis interlocutores, abrangendo dois jornalistas, dois filósofos e dois políticos. A quarta missiva do Cardeal Martini a Eco tinha por título a pergunta: Onde o leigo encontra a luz do bem?”. Nela, o Cardeal Martini problematiza a possibilidade de uma ética laica e não apoiada em princípios metafísicos universais, na qual o homem assumisse radicalmente a “responsabilidadetanto pela execução das normas ético-morais quanto pelaconstrução’ e legitimação das mesmas: 

Tenho dificuldades para enxergar como uma existência inspirada nestas normas (altruísmo, sinceridade, justiça, solidariedade, perdão) pode sustentar-se a longo prazo e em qualquer circunstância se o valor absoluto da norma moral não está fundado em princípios metafísicos ou em um Deus pessoal (ECO & MARTINI, 2003, p. 77). 

As respostas encenadas, tanto por Eco quanto pelos demais interlocutores, que em menor ou maior grau discutirão a necessidade de um diálogo entre a ética laica e a(s) religiosa(s), são diversas, e bastante interessantes. Entretanto, dada a limitação de nosso estudo, abordaremos a resposta de Eco (uma ética que nasce quando o “outro” entra em cena) e a de Eugênio Scalfari (uma éticanatural”, “biológica”). O que pretendemos é preparar o terreno para a entrada do jagunço Riobaldo, que em sua narrativa épica irá encenar a angústia do humano diante da necessidade de tomar decisões éticas, porque livres. Parece-nos que a própria insistência de Riobaldo emter certeza” da não-existência do Diabo e da não-validade do pacto feito com o mesmo é indicativo de que ele reluta entre o assumir definitivamente a responsabilidade por suas ações/decisões ético-morais e a tendência a delegar a outro - nesse caso ao Diabo - tal responsabilidade. 

Antes porém de ouvir o jagunço Riobaldo, percorreremos algumas veredas trilhadas por outros pensadores em sua tentativa de compreender os fundamentos para uma ética e uma moral na sociedade contemporânea. Inicialmente é preciso ressaltar que a perspectiva que adotamos é a de uma ética laica e historicizada, em outras palavras, sem valores absolutos. Desta forma, tomaremos a pergunta inicial do Cardeal Carlo Maria Martini - “onde o leigo encontra a luz do bem?” - como uma provocação autêntica que se propõe a qualquer investigação sobre as possibilidades e limites de uma ética laica. É preciso lembrar que apenas o homem é um animal ético, e portanto é o único capaz de ações que podem ser consideradas “boas” ou “más” de acordo com um código de valores vigente. Ao homem humano foi dada, como um presente ou condenação, a capacidade de se “descolar” do momento vivido e se projetar no tempo (o passado como memória social e pessoal acumulada, o futuro como expectativa compartilhada, o presente como mediação entre ambos), de modo que ele age ‘sabendo’ que ‘sabe que age’. Logo, ele é moral. Logo, pode ser mau, de uma forma que os tubarões e as hienas selvagens não o podem. Mas também pode serbom”, no sentido em que suas ações sejam gratuitas, “descompromissadas” com seus interesses pessoais e imediatos. 

Na perspectiva de uma ética laica Umberto Eco propõe uma ética baseada na consciência do outro, pois entende que é “o outro, é seu olhar, que nos define e nos forma” (p. 83), enfatizando com isso o aspecto sócio-cultural da existência humana; afinal, diz-nos Eco, “Mesmo quem mata, estupra, rouba, espanca, o faz em momentos excepcionais, e pelo resto da vida estará a mendigar aprovação, amor, respeito, elogios de seus semelhantes” (p. 83). Com isso Eco nega qualquer maniqueísmo ou essencialismo, por afirmar que o bem e o mal são conseqüências de ações pragmáticas, historicamente inscritas, e não entidades metafísicas, de existência independente a uma objetivação humana. O imperativo de uma ética do outro nasce da constatação de que a necessidade da con-vivência é aquilo que nos determina enquanto espécie: “poderíamos morrer ou enlouquecer se vivêssemos em uma comunidade na qual, sistematicamente, todos tivessem decidido não nos olhar jamais ou comporta-se como se não existíssemos” (p. 84). Para Eco, a solidariedade para com o outro é uma possibilidade de dar sentido à própria existência que se abre para aqueles que nunca tiveram a experiência da transcendência, ou a perderam,  pois na  tentativa de garantir a alguém uma vida vivível, mesmo depois que ele mesmo tenha desaparecido” (p. 85) o homem poderá encontrar o sentimento de eternidade que geralmente é o que o conduz à experiência religiosa. 

Diante da contestação de que não são todos que se preocupam em dar sentido à própria morte, Eco argumenta que, mesmo entre aqueles que crêem, existem os que não se questionam quanto à validade das suas ações morais e éticas; ainda que esses sejam maioria, isto não traz problemas para se fundamentar uma ética da alteridade, pois “a força de uma ética julga-se através do comportamento dos santos, não dos insipientes cuius deus venter est” (p. 85). Eco ainda destaca a necessidade do diálogo entre essas duas posturas éticas: a religiosa e a laica, e as ‘negociações’ de sentido aqui seriam similares ao que ocorre entre duas religiões, imbuídas do sentimento de mútuo respeito: “E nos conflitos de devem prevalecer a Caridade e a Prudência (p. 90). 

Um outro autor que irá buscar os fundamentos éticos em uma espécie de solidariedade entre indivíduos sociais é o filósofo Thomas Nagel (2001), que a partir de uma brilhante argumentação acerca da relatividade dos sistemas éticos e morais, discute o que leva, mesmo o mais impiedoso criminoso, a reconhecer que determinadas ações são “corretas” e outras “erradas”. Ainda quando essa distinção não sai do âmbito teórico, e a prática desse supostohomem mau” seja contraditória com determinados valores aceitos pelo mesmo, ele reconhece que algumas atitudes são ilegítimas, pelo menos no sentido kantiano de que tais ações não devam ser universalizadas. Para Nagel, a sociedade humana se estrutura a partir de um acordo tácito que manda que cada indivíduo se comprometa, pelo menos em certa medida, com as demais. 

É claro que a maioria das pessoas se importa, em certa medida, com as demais. Mas, se alguém não se preocupa, não concluiríamos que ele está isento da moral. Uma pessoa que mata outra apenas para roubar-lhe a carteira, sem se importar com a vítima, não está automaticamente justificada. O fato de ela não se importar não legitima sua ação: ela deveria se importar. Mas por que deveria se importar? (2001, p. 66) 

Dentre as tentativas de responder essa pergunta, Nagel aponta as seguintes: a) as motivações religiosas, que podem variar desde o “medo” de um castigo divino até o amor, que levaria o fiel a se identificar com um Deus amoroso e querer “imitá-lo”; b) a expectativa de que se levevantagem” na ação moral, isto é, nesse argumento a ação moral será tomada pela expectativa de que, ao se agir de forma correta com alguém se receba o mesmo tipo de tratamentocorretonão apenas dele como também de outros circunvizinhos; c) o argumento racional da busca de coerência entre o que se espera para si e a forma de agir para com o outro,(2) classicamente ilustrado pela pergunta: “você gostaria que fizessem o mesmo com você?” 

Nagel irá apontar problemas em todos esses argumentos citados. Em relação à motivação religiosa, ele rebate afirmando que os fundamentos éticos não podem atender apenas àqueles que crêem em um Deus, afinal esses não são os únicos que deverão se submeter a tais princípios. Mais ainda, a proibição divina acerca de algo não faz dele algo errado, apenas desaconselhável: “Se Ele proibisse, por exemplo, de calçar a meia esquerda antes da direita, e o punisse por não agir assim, seria desaconselhável fazê-lo, mas não seria errado” (p. 67). Uma outra ressalva quanto a esse tipo de motivação é que o medo do castigo ou a esperança da recompensa não parecem ser motivos legítimos para se fundamentar a moral. 

O segundo tipo de motivação é a intenção de algum tipo de recompensa que possa se ter na prática de uma ação moral correta. A esse respeito é bastante esclarecedora a fala de uma das personagens de Eça de Queiroz no romance Os maias; é o avô de Carlos Maia, que quando questionado pela sua decisão de dar ao neto uma educação laica afirma: “Eu quero que ele seja bom por amor à bondade, que seja verdadeiro por amor à verdade, e justo por amor à justiça, e não por medo do inferno ou desejo de alcançar um paraíso extraterreno”.(3) Ainda quanto a essa motivação bancária, Nagel argumenta que essa “Não é uma razão para fazer o que é certo se os outros não vão saber, ou contra fazer o que é errado se você pode escapar impune (como atropelar alguém e fugir)” (p. 68). 

O terceiro tipo de motivação, a busca de coerência entre o que se deseja para si e o que se faz ao outro, pressupõe uma razão para que algo que não desejo que seja feito a mim (o exemplo que o autor dá é o de alguém que tem seu guarda-chuva roubado em um dia de chuva) seja considerado “ruimquando feito a qualquer outra pessoa, inclusive se eu for o agente da ação. 

É uma questão de simples coerência. Ao admitir que outra pessoa teria uma razão para não prejudicá-lo em circunstâncias semelhantes e ao admitir que a razão que ela teria é muito geral e não se aplica somente a você, ou a ela, então por uma questão de coerência, você teria de admitir que a mesma razão se aplica a você agora (p. 70). 

Muito embora contra esse argumento possam se levantar os que digam que, apesar de não gostarem de sofrer uma ação ruim (serem roubados, por exemplo), não vêem nenhum motivo especial para que o autor da ação (o ladrão) considere os seus sentimentos. Nagel argumenta que a maior parte dos indivíduos em sociedade “pensaria que seus interesses e os danos que possam sofrer dizem respeito a todos, não apenas a si mesmas - o que dá aos outros uma razão para se importarem com eles também (p. 70). A partir disso o autor propõe que as bases da moral estão em uma espécie de sentimento de “solidariedadeentre os sujeitos sociais, que, ainda quando tomam atitudes moralmente duvidosas, não pretendem que tais ações sejam legitimadas e universalizadas, vindo eles a sofrer ações semelhantes às que praticaram. Essa última proposta de fundamento para o agir ético-moral se origina no desejo de Nagel demonstrar que a motivação moral pode ser desvinculada tanto das preocupações religiosas (e com isso atingir a todos, inclusive os não-religiosos) quanto das motivações baseadas em interesses próprios (sentir-se bem por ter feito o que se considera “corretoou não querer sentir-se culpado por não tê-lo feito).

Mas muitos são os problemas que nem sequer foram tocados: a relatividade da moral; (4) a aceitação (ou não) e determinação de alguns valores universais (mas quais seriam eles?); a organização, em nível hierárquico, de nosso comprometimento com os demais (meus interesses pessoais, família, amigos, comunidade próxima, outros povos e países, etc: em que ordem de importância devem ser postos essesoutros”?). De qualquer forma, as conclusões de Nagel, apesar de precisas, são pouco otimistas: 

O argumento moral tenta apelar para uma capacidade de motivação imparcial que se supõe existir em todos nós. Infelizmente ela pode estar profundamente enterrada e, em alguns casos, pode simplesmente não existir. Em todo caso, precisa competir com poderosos motivos egoístas, e com outros motivos pessoais que talvez não sejam tão egoístas, em sua luta para controlar nosso comportamento. A dificuldade de justificar a moral não está em haver apenas um motivo humano, mas em haver muitos (p. 80). 

Na mesma linha de Umberto Eco e Thomas Nagel, o jornalista Eugênio Scalfari, fazendo coro às discussões entre Eco e o Cardeal Matini, advoga que, “para agir moralmente, confiemos no instinto”, (5) propondo uma moral que tenha fundamento biológico, ao mesmo tempo em que nega a possibilidade de “ancorar a moral no tema do Absoluto, seja esse de natureza metafísica, seja de natureza religiosa, porque a imutabilidade do Absoluto não impediu que, na história, a moral mudasse segundo os tempos, os lugares ou os contextos” (GALIMBERTI, 2003, p. 352), conforme nos alerta Galimberti, ao comentar a proposta de Eugênio Scalfari desenvolvida com maior precisão na obra Alla ricerca della morale perduta. A moral instintiva de Scalfari está ligada à constatação de que existem dois fortes instintos na espécie humana: o da sobrevivência do indivíduo e o da sobrevivência da espécie, instinto que Galimberti irá identificar com a pulsão de vida (Eros) de Freud: 

É o instinto enraizado no indivíduo para garantir a sobrevivência da espécie, simétrico ao instinto de conservação destinado a assegurar a sobrevivência do indivíduo. E, como o instinto de conservação não impede o indivíduo de experimentar a autodestrutividade até o limite extremo do suicídio, assim o instinto moral, preposto à defesa da espécie, não impede a imoralidade até o limite extremo da guerra. Religião e razão vêm depois para delimitar, cada uma com seus argumentos, o espaço da autodestrutividade individual e da destruição da espécie, e por isso a discussão entre razão e religião é discussão sucessiva ao fundamento da moral, é discussão que intervém para conter ulteriormente os espaços de destrutividade que fogem ao instinto de conservação tanto do indivíduo quanto da espécie (GALIMBERTI, 2003, p. 353). 

Scalfari entende a moral como um ultrapassar do ponto de vista do Eu, quando o homem se põe “cheio de amor próprio em todos os seus apetites e em todas as suas ações, acima e fora de si” (Apud GALIMBERTI, 2003, p. 356). O agir moral pressupõe um esquecimento, ao menos temporário, das próprias razões e necessidades, e um lançar-se para o outro, um comprometer-se com as necessidades do não-Eu. Essa moral instintiva teria raízes biológicas, e não culturais, muito embora ela assuma configurações distintas em distintas culturas, em práticas e valores historicamente determinados e socialmente inscritos que põem em descrédito qualquer tentativa de universalizar esses mesmos valores. Antes, é “Nesse instinto de co-pertencer, que cada Eu reprime no seu inconsciente, (que) está a raiz primeira de toda moral” (IDEM, p. 360). 

Como se , pelos argumentos acima expostos, existem outras possibilidades para se fundamentar o agir moral fora da motivação religiosa ou de princípios metafísicos universais, tais como o bem supremo ou a razão universal. Conceber a moral como uma realização humana é aceitar o desafio de não se ter balizas eternas para legitimar nossas ações, exceto o nosso frágil desejo de bondade, beleza e harmonia, que infelizmente coexiste com o nossoruidoso desamor”.(6) Mas, para além de todo relativismo que se possa apontar na construção de uma ethos, concordamos com Soares e Vilhena quando afirmam que: 

Esta constatação não invalida que hoje consideremos como mal tudo o que fragilize, atente, agrida, elimine, coloque em risco qualquer das dimensões constitutivas do ser humano, dos demais seres, da natureza em geral, da vida, do mundo (2003, p. 80). 

Se é possível identificar o Mal com a dor e o sofrimento e o bem com a vida (potencialidade de vida), o nosso próprio entendimento do mal se dá em contraponto ao bem que identificamos no existir: e o mistério do mal torna-se tão insondável quanto o mistério do bem.

 

3. Travessias 

Viver é negócio muito perigoso... diz-nos Riobaldo ainda nas primeiras páginas da narrativa épica que irá protagonizar. Esse é o mote que ele irá repetir por todo o romance, reiterando no leitor a suspeita de que, mais do que as aparências possam inicialmente fazer acreditar, existe entre ele e Riobaldo uma cumplicidade dada pelo consenso quanto a essa afirmativa; afinal, também a nós está posta a angústia do jagunço, pois, se ‘Tudo é e não é’, resta ao homem humano fazer com que certas coisas sejam (legitimando-as) e outras não sejam (relegando-as à impossibilidade do não ser). As escolhas de Riobaldo são sempre éticas, porque ele é bastante lúcido em relação aos limites (e deslimites) do humano em fundamentar esse estar-no-mundo compartilhado, bem como da impossibilidade de não exercer seu arbítrio.(7) Daí que ele estará sempre, ao contrário dos demais jagunços, inclusive Diadorim, permeado de dúvidas e crises de consciência quanto à legitimidade das próprias ações. 

A questão proposta por Riobaldo - a existência do diabo e a possibilidade de ter feito um pacto com o mesmo - é uma questão ética, essa é a nossa hipótese. A existência do Mal - assim mesmo, em maiúscula - é inegável, tanto na ficção roseana quanto na hiper-realidade das sociedades contemporâneas, e as reflexões do jagunço Riobaldo sobre essa questão surpreendem pela argúcia e perspicácia, pois ele avança resolutamente em meio ao grande sertão(8) inóspito e trágico como um cão farejador(9) que, perplexo, quer entender a substância das próprias ações, separar, qual joio do trigo, o bem e o mal que tão bem se misturaram na sua própria existência. A constatação de que “.... Querer o bem com demais força, de incerto jeito, pode estar sendo se querendo o mal, por principiar” (ROSA, 2001, p. 32), acompanha a narrativa que Riobaldo fará ao visitante-leitor; ele narra para entender a matéria vertente (p.116) da vida, aquilo que move os homens (que a ele mesmo moveu) paradar corpo ao suceder” das boas e das más ações. 

De onde vem o mal, entendido aqui como ação objetiva que viola a liberdade do outro e causa sofrimento e desespero; como explicar que tanto a beleza quanto a dor venham das mãos do mesmo homem humano; como entender que bem e mal se alternem qual duas faces de uma mesma moeda em um jogo perverso do qual todos participamos? Ou, em outros termos, francamente “paulinos”,(10) porque, mesmo querendo o bem (pelo menos para si) o homem realiza o mal? Ainda, porque o mal, sinônimo de sofrimento e destruição, parece ter tão maior força que o bem, identificado no romance com a força criadora do amor (“Qualquer amor é um descanso na loucura”)? Essas são questões que perpassam todo o romance, enquanto nosso jagunço-filósofo tenta ordenar o caos reinante em um mundo onde o bem e o mal estão misturados, por isso a conclusão óbvia é que “todo-o-mundo é louco”, cabendo à religião dar o arcabouço ontológico capaz de ‘desendoidecer’ os homens (p. 92), re-ligando-os a uma parte alienada de si: o Bem - assim mesmo, em maiúsculo. 

Riobaldo é, na travessia dessas veredas existenciais, um propositor de perplexidades, ensinando-nos “outras maiores perguntasque abrangem temas tão vastos quanto o amor, o erotismo, a amizade, a morte, Deus, o Diabo, a beleza, o papel da ficção na vida do não-especialista, a riqueza infinita da linguagem poética, etc. Como o disse Adélia Prado, “Tudo é bíblias. Tudo é grande sertão” (1986), verso que sintetiza a inesgotável capacidade dessas duas escrituras de propor, de forma plural e multifacetada, as mais diversas questões sobre a existência humana. Entretanto, nos detemos nesse pequeno ensaio nas considerações de Riobaldo acerca do bem e do mal, tentando entender, através dos fatos narrados e das suas reflexões, um pouco do ‘perigoque a vida, fora do Éden, implica. 

Percorrendo as trilhas desse sertão tentamos pensar o problema do bem e do mal a partir de uma perspectiva ética, ou, nas palavras de Paul Ricouer, buscando a convergência entre pensamento, ação (moral e política) e transformação emocional dos sentimentos. Entenda-se aqui ética como a construção de ethos: identidades, culturas e ações pragmáticas que abrangem os diversos âmbitos da vida humana em sociedade. Nesse sentido, a ética não é algo que seja reservado à ação dos santos ou à reflexão dos filósofos: todo o homem humano é ético, porque a ele se demanda, cotidianamente, posicionamentos concretos e historicamente determinados, ele deve “agir”, e ao agir torna legítima (ou não) esta ou aquela ação. 

O romance Grande sertão: veredas inicia com uma dúvida - “E me inventei o gosto de especular idéia. O diabo existe e não existe?” (p. 26) - e termina com uma provável certeza: “Nonada. O diabo não há! É o que eu digo, se for .... Existe é o homem humano. Travessia” (p. 624). Entre as duas afirmativas uma travessia: o velho jagunço Riobaldo, antigo Tatarana e Urutu-Branco, divide com o leitor suas preciosas lembranças(11) na tentativa de tornar entendível a substância da vida, clareando aqueles pontos obscuros dessa vida movente que vai “em erros, como um relato sem pés nem cabeça, por falta de sisudez e alegria” (p. 261). Riobaldo conta e pede ao leitor que ponha o ponto (p. 546) nessa trágica história de amor e ódio onde o bem e o mal estão de tal modo misturados que não é possível perceber onde um começa e o outro acaba. 

Diadorim - o nome perpetual (p. 387) - é um bom exemplo para ilustrar essa caótica mistura de enganos e verdades que permeiam os sertões, onde tudo é e não é”. Diadorim: menino valente, sensível apreciador das belezas sertanejas, jagunço vingador, amigo fiel, enamorado ciumentíssimo, donzela guerreira - corpo branco de mulher repisado de sangue... quantas verdades se escondem em uma existência. As personas se sobrepõem e Diadorim-Reinaldo-menino não pode ser compreendido em apenas um desses papéis: sua identidade polifônica e andrógena é um desafio posto a Riobaldo, como o enigma da esfinge: “Decifra-me ou devoro-te”. 

A Riobaldo incomoda esse caos assombroso, ele sente necessidade de tertodos pastos demarcados”, para que “o bom seja bom e o rúim ruím, que dum lado esteja o preto e do outro o branco, que o feio fique bem apartado do bonito e a alegria longe da tristeza” (p. 234). Mas como ter certezas, ainda que provisórias, nesse mundo onde as coisas se misturam imprudentemente? Enquanto a maior parte dos homens vive das convicções alheias, Riobaldo diverge do senso comum por ser homemforro’ (p. 34), que tem dificuldades em aceitar verdades prontas e domesticadas: “Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa.” (p. 31) 

E é esse desconfiar que caracteriza Riobaldo como um homem duvidoso. Nesse sentido ele se apresenta como figura simbólica para caracterizar um humano que se localiza ‘fora do Éden’ e precisa se posicionar eticamente em um mundo do qual ele próprio desconfia da fragilidade dos valores. Viver é perigoso porque a vida não é entendível, e os acontecimentos da própria existência parecem não compor um todo orgânico e integrado, é o que nos diz Riobaldo em diferentes momentos da narrativa:

Em desde aquele tempo, eu achava que a vida da gente vai em erros, como um relato sem pés nem cabeça, por falta de sisudez e alegria. Vida devia de ser como na sala do teatro, cada um inteiro fazendo com forte gostos seu papel, desempenho. Era o que eu acho, é o que eu achava (p. 261).

A lembrança da vida da gente se guarda em trechos diversos, cada um com seu signo e sentimento, uns com os outros acho que nem não misturam. Contar seguido, alinhavado, mesmo sendo as coisas de rasa importância. De cada vivimento que eu real tive, de alegria forte ou pesar, cada vez daquela hoje vejo que era como se fosse diferente pessoa. Sucedido desgovernado. Assim eu acho, assim é que eu conto (p. 115).

Triste é a vida do jagunço - dirá o senhor. Ah! Fico me rindo. O senhor nem não diga nada. “Vida” é noção que a gente completa seguida assim, mas por lei de uma idéia falsa. Cada dia é um dia (p. 414).

A cosmogonia de Riobaldo é interessante: muito embora seja impossível negar a doideira da vida, ele acredita em um modelo ético-moral em que cada ação esteja perfeitamente conformada com as demais, e na existência de uma bússola que aponte para um rumo certo, um norte a partir do qual o homem humano possa direcionar seus passos e saber certamente do bem e do mal que lhe rodeia. Para cada conjunto de possibilidades, apenas uma ação correta, comparando a vida a um grande teatro onde cada um deve cumprir o papel a ele designado com empenho e escrúpulos. Entretanto, quais personagens cujas falas foram trocadas, e desandam loucamente a representar a ‘fala’ uns dos outros, fazendo ruir o próprio tecido da vida, os ‘atores  não conseguem encontrar a pauta adequada para cada dia e a vida continua ininteligível:

o que eu quis, todo o tempo, o que eu pelejei para achar, era uma coisa - a inteira - cujo significado e vislumbrado dela eu vejo que sempre tive. A que era: que existe uma receita, a norma dum caminho certo, estreito, de cada uma pessoa viver - e essa pauta cada um tem - mas a gente mesmo, no comum, não sabe que, sozinho, por si, alguém ia poder encontrar e saber? Mas, esse norteado, tem. Tem que ter. Se não, a vida de todos ficava sendo sempre o confuso dessa doideira que é. E que: para cada dia, e cada hora, uma ação possível da gente é que consegue ser a certa. Aquilo está no encoberto; mas, fora dessa conseqüência, tudo o que fizer, ou deixar de fazer, fica sendo falso, e é o errado. Ah, porque aquela outra é a lei, escondida e vivível mas não achável, do verdadeiro viver: que para cada pessoa, sua continuação, foi projetada, como o que se põe, em teatro, para cada representador - sua parte, que antes foi inventada, num papel... (p. 500)

Alguns eventos do romance são exemplares para mostrar as dúvidas ético-morais que perseguem Riobaldo. Nesse sentido pode-se citar alguns, dos muitos momentos em que o questionamento ético aparece: a primeira luta que Riobaldo enfrentou no bando de Titão Passos, em lealdade a Joca Ramiro e contra Bebelo, aquele que havia sido protetor e aluno de Riobaldo; o julgamento de Bebelo; o quase estupro da mocinha neta de Seo Ornelas; a tripla tentação para matar Constâncio Alves, com quem o bando de Riobaldo havia topado no Chapéu-do-Boi; após ter poupado a vida de Constâncio Alves, os apertos de Riobaldo paradriblar’ a promessa que ele mesmo havia feito de matar o primeiro ser vivente que aparecesse em sua frente; o desejo de matar o “lázaro” entocaiado na árvore (pps: 285, 472-473, 485, 491, 508-510).

Tomemos como exemplo a situação da tentação de Riobaldo para matar Constâncio Alves e, posteriormente, o ‘homem da éguacom a cachorrinha, que ficou “por preencher o lugar que devia de ser o do nhô Constâncio Alves” (p. 489). A situação é bastante delicada para Riobaldo, que se sentindo tentado pelo diabo para matar o desconhecido viajante que topara com seu bando pelos ermos dos gerais, arquiteta um ardil para sair da armadilha preparada pelo demo: ele decide fazer uma pergunta, e caso o homem respondesse errado seria morto sem mais demoras ou piedades. O que Riobaldo pretende com esseacordo’, feito em silêncio em seu íntimo, é que a morte de nhô Constâncio Alves não fosse mais exclusiva responsabilidade sua, ação arbitrária movida pela mão do diabo, e sim fruto da ‘sorte’ de uma má resposta dada pela vítima. Mas Constâncio Alves responde adequadamente, e Riobaldo, “para se pacificar e enterter o Outro” promete: “- Perdoei este; mas, o primeiro que se surgir, destas estradas, paga!” (p. 489) E logo aparece, no horizonte do bando, um pobre miserável com sua égua e uma cachorrinha. Ainda que “a vontade de matar tinha se acabado”, Riobaldo está preso pela palavra empenhada a si mesmo, ao diabo e a seus homens: “Porque eu não podia voltar atrás na promessa da minha palavra declarada, que meus cabras haviam escutado e glosado. Ah, o demo bem me conhecia! Devia de estar no astuto, ali por perto, do meu querer de crime!” (p. 490)

Riobaldo, o Urutu-Branco, dono da vida de muitos, sabe que aquela morte é sem-sentido, e logo encontra meios de salvar sua honra sem cometer essa injustiça, afirmando que quem deveria de morrer era a cachorrinha, e não o homem, pois fora ela a que primeiro avistou. Mas também a cachorrinha que “prezava correta, latindo tão relatado” (p. 493) ele não queria matar; não, foi a égua que viu primeiro e é ela que deve morrer, decide. No momento em que a égua se encontra desapeada do dono e pronta para o abate, Riobaldo se sente tomado pela vontade de chorar, fazendo coro ao homem da cachorrinha, desgostoso de si (p. 495), mas decidido a dar um fim razoável àquela desastrada história por ele mesmo começada. Quem o impede é Fafafa, que se oferece para pagar o resgate pelo animal, considerado inocente dos pecados humanos. À sugestão do companheiro de armas Riobaldo reage com alívio, pois entende que “do Demo era que eles discordavam” (p. 495), e finaliza a má história afirmando que o dito ficava pelo não dito, pois a promessa feita fora para o primeiro homem que visse e não para uma cachorrinha ou uma égua.

Ao fim da narrativa, Riobaldo compartilha com o ouvinte-leitor a seguinte dúvida: “Será - mal pergunto ao senhor - que viajei este sertão com o Outro sendo meu sócio?” (p. 497) Como entender esse duelo com o diabo, no qual a vontade humana torna-se refém de pensamentos arquitetados nos sombrios da alma, sob a influência dos maus humores do maligno? Penso que o diabo deva ser entendido, nas travessias de Riobaldo, como uma exteriorização do próprio mal que permanece latente em cada um de nós, um mal contra o qual precisamos reivindicar nossaposse’, afastando-nos dele em busca de perspectivas menos egocêntricas e autocentralizadas. Riobaldo luta contra o mal que sente em si - sócio indesejável -, e busca fundamentar sua identidade no pertencimento a um Bem superior a sua fraca vontade: Mas a minha alma tem de ser de Deus: se não como é que ela podia ser minha?” (p. 501) Se Deus é o Ser, e o diabo o não-ser, a ausência, a falta, e a carência, uma resposta possível ao mal é uma radical proximidade com o bem, sem nunca se esquecer que “essa alma (vontade) é minha”, pois nãocomo fugir das responsabilidades pelas próprias ações.

Segundo apontado por Leonardo Almeida (2004), o romance opera um interessante deslocamento na ‘geografiaimaginária do inferno, em uma “longa trajetória do inferno das regiões do submundo terreno para a luz do dia”. O diabo não habita apenas os recantos das Veredas-Mortas - onde o pacto se deu - ou o Liso do Sussuarão - lugar maldito de impossível travessia que apenas será ‘domadoapós o pacto de Riobaldo com o diabo -, ele anda entre os homens, conforme a epígrafe que abre o romance: “o diabo na rua, no meio do redemoinho”. Essa desterritorialização do inferno parece indicar uma “falta de fronteiras entre o bem e o mal” (ALMEIDA, 2004) que implode os limites de uma concepção maniqueísta de mundo para localizar o titânico duelo na frágil matéria humana: “Um homem, coisa fraca em si, macia mesmo, aos pulos de vida e morte, no meio das duras pedras (ROSA, p.268).

O perigo da vida está em que cada ação traz em si uma série de conseqüências imprevisíveis, e não raramente indesejáveis; em muitos momentos Riobaldo se sente “propriedade” de forças alheias, ao mesmo tempo em que precisa tomar decisões individuais acerca desse ou daquele acontecimento, decisões que pretende que sejam suas, apenas suas. Riobaldo quer o exílio da liberdade: “Não sou do demo e não sou de Deus!” (p. 510), dirá ele, raivoso, a Diadorim, quando o amigo tenta impedi-lo de matar o lázaro; e antes, no momento do pacto: “Eu queria ser mais do que eu” (p. 437). Se decidir é arriscado, pois implica na possibilidade do mal, ainda assim é a mais humana de todas as características, tão humana que se torna distintiva entre os homens e os deuses: apenas os homens podem escolher o mal, aos deuses, pelo menos ao deus cristão, é vedada a opção pela transgressão, pelo arrependimento, pelo erro, conforme se na promessa bíblica: “Deus não é um homem para mentir, e nem filho de homem para se arrepender” (Números 23:19, in: Bíblia Sagrada, 1997).

Dissemos que o romance se inicia com uma dúvida e termina com uma provável certeza, a de que o diabo não existe, existe apenas o homem humano, e o bem e o mal que d(n)ele se engendram. Mas tal conclusão não minimiza a perplexidade de Riobaldo: ainda que o diabo não exista sua alma foi vendida, em pacto firmado nas Veredas-Mortas. Alguma coisa ali aconteceu, é o que nos diz Riobaldo:

Então, se não vendi? Digo ao senhor: meu medo é esse. Todos não vendem? Digo ao senhor: o diabo não existe, não há, e a ele vendi a alma.... Meu medo é este. A quem vendi? Medo meu é este, meu senhor: então, a alma, a gente vende, , é sem nenhum comprador? (p. 501)

Entre Deus e o Diabo Riobaldo teima insistentemente em afirmar-se livre, sedento de possuir-se, tanto que, por ocasião do pacto, ele dirá: “E o que era que eu queria? Ah, acho que não queria mesmo nada, de tanto que queria tudo. Uma coisa, a coisa, esta coisa: eu somente queria era - ficar sendo!” (p. 436) Uma possível interpretação para o périplo de Riobaldo é entendê-lo enquanto tentativa de uma definitiva emancipação do humano, que se arrisca, longe do Éden, a uma existência sem balizas confortáveis ou metadiscursos consoladores. Entretanto, se pensarmos que o próprio Riobaldo caracterizou-se como um homem a quem apenas dois destinos eram possíveis - chefe de jagunços ou padre religioso -, isto é, personagens que se encontram nos extremos do bem e do mal, precisamos admitir que essa liberdade absoluta - a ‘maioridade ética’ - é uma utopia que apenas se manifesta em momentos pontuais, e que, mesmo longe do Éden, o humano continua a sonhar com o fim das dicotomias e com um paraíso onde o Bem e o Mal sejam novamente irreconhecíveis, porque inexistentes.

 

NOTAS

(*) Mestre em Estudos de Literatura pela PUC-Rio e Doutoranda em Ciência da Literatura pela UFRJ. 

(1) É interessante notar que a etimologia da palavra projeto indica um “lançar-se para o futuro”, enfatizando esse mesmo aspecto de risco que tencionamos destacar como próprio da ação humana.

(2) Esse argumento lembra o ditado, de cunho francamente bíblico, “não faças ao outro o que não queres que ele faça a ti”.

(3) A citação é feita de memória, preservando apenas o seu sentido geral.

(4) Diz Nagel: “Muitas coisas que você provavelmente considera erradas foram aceitas por grandes grupos de pessoas no passado: escravidão, servidão, sacrifício humano, segregação social, negação de liberdade política e religiosa, sistemas de castas hereditárias. E provavelmente, algumas coisas que hoje você julga serem certas serão consideradas erradas pelas sociedades futuras.” Op. Cit., p. 76.

(5) Esse é o título do pequeno ensaio do autor que consta na obra Em que crêem os que não crêem?  Op.Cit.

(6) Remeto-me ao verso de Adelia Prado: “Houve, é certo, sob nossos telhados,/ ruidoso desamor,/ fel em gotas de silêncio segregado”, verso do poema Apelação, de PRADO, Adélia. Bagagem, 1986.

(7) Estou fazendo referência aqui à definição sartreana de liberdade: “a liberdade é um exílioporque ontológica, isto é, ao homem é impossível recusar o agir ético, e apenas a existência de má pode iludir-se com o consolo de que foram outros — as circunstâncias históricas e sociais, as contingências, as inclinações psicológicas irrecusáveis, etc — que decidiram por ela. Parece-me que Riobaldo, segundo a terminologia de Sartre, assume uma existência autêntica, por saber-se livre e não recusar a liberdade.

(8) Nesse ponto,  o sertão está sendo entendido como metáfora da própria existência humana.

(9) “O senhor concedendo eu digo: para pensar longe sou cão mestre — o senhor solte a minha frente uma idéia ligeira, e eu rastreio essa por fundo de todos os matos, amém!”. ROSA, Guimarães João. Grande sertão: veredas, 2001, p. 31.

(10) É Paulo quem nos diz: “Porque não faço o bem que quero, mas o mal que não quero esse faço”. Romanos 7:19, in: Biblia Sagrada, 1997.

(11) Para se entender o valor que Riobaldo a memória veja-se o que ele nos diz: “Não gosto de me esquecer de coisa nenhuma. Esquecer para mim, é quase igual a perder dinheiro”. ROSA, 2001, p. 18.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 

ALMEIDA, Leonardo Vieira. Uma construção do Inferno: de Homero a Guimarães Rosa. Comunicação apresentada no I Simpósio de Estudos Helênicos do Instituto de Letras da UERJ, novembro 2004. Inédito. 

BÍBLIA SAGRADA. Revista e corrigida. São Paulo: Editora Vida, 1997. 

ECO, Umberto; MARTINI, Carlo Maria. Em que crêem os que não crêem? Rio de Janeiro: Record, 2000. 

GALIMBERTI, Umberto. Rastros do sagrado: o cristianismo e a dessacralização do sagrado. São Paulo: Paulus, 2003. 

MILES, Jack. Deus: uma biografia. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 1997. 

NAGEL, Thomas. Certo e errado. In: Uma breve introdução à filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2001. 

PAZ, Octávio. Signos em rotação. Rio de Janeiro: Perspectiva, 2003. 

PRADO, Adélia. Bagagem. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986. 

RICOUER, Paul. O mal: um desafio à filosofia e à teologia. São Paulo: Editora Papirus, 1983. 

ROSA, Guimarães João. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. 

SOARES, Afonso M. A.; VILHENA, Maria Angela. O mal: como explicá-lo? São Paulo: Paulus, 2003.

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