1.
Sertões
Coração da gente -
o escuro, escuros.
Riobaldo
Segundo a narrativa
mítica do Gênesis, no jardim do
Éden o homem vivia
aquém do bem
e do mal, protegido
dos perigos da própria
vontade, pois
desconhecia a distinção entre ambos, o
que pode significar tanto que o bem e o mal não existissem quanto
que, existindo, o próprio
homem não
possuía faculdades de juízo para percebê-los. Mas ter consciência de algo
não é justamente
o que permite que
esse algo
seja “objetivado” pelo
nosso espírito?
Como dizer
que algo “existe”
se não existe para
nós, isto
é, se não é sensivelmente/cognitivamente
percebido por nós?
Assim sendo, parece-nos que o mito edênico propõe um
‘lugar’ paradisíaco
onde não
havia realmente bem
e mal, que
são objetivações de ações
humanas diante de situações
que demandam um
gesto consciente
e livre, o que
parece tornar plausível
a interpretação de que,
no Éden, o homem
ainda não
gozava plenamente de seu livre-arbítrio. Assim, consciência
e liberdade eram características
que estavam potencialmente
inscritas no humano, mas apenas se
manifestaram no momento em que ele decide desobedecer a uma
ordem expressa
de Deus:
Eis que o homem é como um de nós, sabendo
o bem e o mal;
ora, pois,
para que não estenda a sua
mão, e tome também
da árvore da vida,
e coma e viva
eternamente; o Senhor
Deus o lançou fora
do jardim do Éden,
para lavrar a
terra de que fora tomado. E havendo lançado fora
o homem, pôs querubins
ao oriente do jardim
do Éden, e uma espada
inflamada que andava ao redor, para guardar
o caminho da árvore
da vida (Gênesis 3:22-24, Bíblica
Sagrada).
Resta saber se a ‘escolha’
pela liberdade
poderia ter
sido feita sem
significar uma ‘escolha’
pelo mal,
isto é, será que
o mito expressa
a emancipação humana
- a possibilidade de decidir, de forma
que o comer
do fruto proibido
seja o paradigma dos riscos que a liberdade implica - ou
apenas a entrada
do Mal no mundo,
devido a uma decisão
‘ruim’? A interpretação
por que
optamos é a de que o mito edênico elabora
a emancipação do homem, que se
assume como agente
do seu próprio
pro-jeto(1) de vida.
Esta perspectiva é otimista, pois o comer do “fruto proibido”
significou um passo,
temerário talvez,
mas inegavelmente belo,
em direção
a uma maior autonomia
do humano. O mito
oferece indícios para
essa interpretação: por
que a árvore
estaria ali, no jardim
criado para
habitação da raça humana, se não
para que o humano ‘soubesse’ da possibilidade de “distinguir”
o bem e o mal?
A árvore estrategicamente disposta em sua plena visibilidade não
representava um desafio,
uma meta, uma provocação
à “maioridade” do humano?
Tal perspectiva implicará uma curiosa dubiedade na interpretação
do evento ‘expulsão
do paraíso’, pois,
se por um
lado isso
significa agora a vivência
consciente do mal,
por outro
lado indica a emancipação
humana, o “ter
que se virar”
pelos próprios
méritos, saindo de uma posição confortavelmente passiva
quanto à própria
existência. Afinal,
é justamente no “comer
do fruto proibido”
que o livre-arbítrio
humano se concretiza em ação.
É
interessante notar que
a expulsão do paraíso
teve, mais do que
um caráter
punitivo, um
aspecto preventivo e protetor:
“...para que
não estenda a sua
mão, e tome também
da árvore da vida,
e coma e viva
eternamente” (versículo 22). Parece que apenas após ter comido do fruto da árvore
do conhecimento é que
o homem poderia
‘reconhecer’ a árvore
da vida, com
a conseqüência de que,
caso o homem
comesse do seu fruto,
tornar-se-ia também imortal,
prolongando pela eternidade
esse estado
de criatura imperfeita,
na qual se inscreve a dicotomia do bem e do mal. O homem seria
então ético
e imortal, ao contrário
dos deuses, que
habitam o sagrado mundo
da indiferenciação e da indistinção, conforme
argumentação de Galimberti, para quem o mundo sagrado
dos deuses é “aquela reserva de toda
diferença, aquela indecifrabilidade
que os homens,
depois que dela
se separaram, perceberam ser seu
horizonte de procedência
e a mantiveram à distância, fora da sua comunidade” (GALIMBERTI, 2003, p. 16).
Umberto
Galimberti compreende a experiência
com o sagrado
a partir de uma perspectiva
antropológica e psicológica, onde o sagrado
seria não apenas
exterior, mas
também interno
ao homem, “seu
fundo inconsciente,
do qual um
dia a consciência
se emancipou e tornou autônoma,
sem contudo suprimir o cenário enigmático
e obscuro de sua origem”(IDEM, p. 12). O sagrado
seria uma espécie de loucura, não aquela
reconhecida pela psicanálise e psicologia,
que se caracteriza por
ser uma transgressão
da razão, mas
uma outra, que
é anterior à própria
distinção entre
razão e loucura:
Mas existe uma espécie
de loucura que
não é transgressão,
pelo simples
motivo que ela precede as regras
e as transgressões; a essa não conhecemos, porque
todo saber
pertence à ordem
da razão que
só pode encenar
seu discurso
tranqüilo quando
a loucura deixa
o palco, quando
a palavra é dada
à solução do conflito,
não à sua
explosão, à sua
ameaça (IDEM,
p. 13).
O
terreno do sagrado
é, portanto, o do indiferenciado,
onde não imperam
os princípios da lógica, da linguagem
cognoscente, da ética e das organizações sociais
e políticas. Em
oposição a ele,
o mundo do trabalho
e da razão se sustenta
sobre dois
alicerces lógicos:
os princípios da identidade
e não-contradição, que postulam
as seguintes premissas:
a)
para que
uma coisa seja isto é preciso
que ela
seja idêntica a si
mesma;
b)
uma coisa não
pode ser idêntica
a si mesma
(isto)
e, ao mesmo tempo,
ser outra
coisa (aquilo) que
é diferente de si.
É
dessa violência primária
que introduz a diferença
em meio
ao indiferenciado que a própria humanidade
pôde surgir; a partir
das operações da razão
que separa isto e aquilo criando
a diferença dos múltiplos significados
culturais, sociais e éticos. Esse é
um gesto violento porque
desloca a continuidade primordial
e intuitiva para uma pseudo-continuidade representacional
entre mundo e pensamento:
“O gesto da razão
é um gesto
violento, porque
dizer que
isto é isto e
não outra coisa, dizer que
o cavalo é o cavalo
e não o instinto,
o desejo, o ímpeto,
a fidelidade, o sacrifício,
a morte, é uma decisão
da razão e não
a verdade das coisas”(GALIMBERTI,
2003, p.15). A esse respeito
Octávio Paz ainda
dirá:
Desde Parmênides nosso
mundo tem sido o da distinção
nítida e incisiva
entre o que
é e o que não
é. O ser não
é o não ser.
Este primeiro desenraizamento
- porque foi como arrancar o ser do caos primordial - constitui o fundamento
de nosso pensar.
Sobre essa concepção
construiu-se o edifício das “idéias claras
e distintas”, que se tornou possível a história
do Ocidente, também
condenou a uma espécie de ilegalidade todas as tentativas
de prender o ser
por caminhos que não fossem
os desses princípios. Mística e poesia
viveram assim uma vida
subsidiária, clandestina
e diminuída (PAZ, 2003, p. 40).
O
homem, vivendo sobre
o signo da distinção,
articula sua existência
a partir do reconhecimento
das diferenças e do trato
com a alteridade,
e o interdito em
relação ao incesto
é exemplar para
entender a importância
do reconhecimento da diferença para a ordenação social. A
linguagem, a lógica,
a ética, a moral
e todas as demais instituições
humanas são frutos
dessa violência fundamental,
onde mesmo
a identidade aparece porque existe um
“outro”, um
“isto” que
continua em si
em meio
a outros “aquilo”.
Já o sagrado se rege pelo princípio do simbólico
(syn-ballein: do grego, lançar junto), onde os
deuses são
e não são,
obedecendo a regras distintas das
dos mortais, como
se vê na citação
abaixo de um
fragmento de Heráclito, em que o deus é identificado com
elementos paradoxais,
díspares, ressaltando como característica própria do sagrado
a impossibilidade de cerceá-lo em
sistemas conceituais ou
predicativos,
O
deus é dia
e noite, inverno
e verão, guerra
e paz, saciedade
e fome, e muda
como fogo
quando se mistura
a incensos, absorvendo de vez em quando os seus
aromas. O homem
toma por
justas umas coisas
e por injustas outras; para
o deus tudo
é belo, bom
e justo. (apud
GALIMBERTI, 2003)
Galimberti
lembrará da narrativa sagrada de Jó, o homem
justo que
se vê assolado por
diversas calamidades e lança diante da
face divina
seus lamentos
e angustiadas perguntas. É interessante
notar que suas perguntas
permanecem sem resposta,
ou melhor,
a ele é negada a legitimidade
de apresentar suas
questões. Conforme
apontado por Jack Milles (1997),
Deus responde a Jó com
o argumento - incontestável
- da sua soberania
e poder, tentando com
isso negacear
a pergunta que
havia sido feita, que
na verdade dizia respeito
à justiça divina,
a única das “propriedades”
divinas que estava em
questão. Parece que
a ‘personagem’ Deus
usa o truque,
bastante comum
entre os humanos,
de, quando sem
argumentos, tergiversar
e atacar o interlocutor,
pretendendo com isso
lançar uma nuvem
de fumaça que
o desoriente:
Onde estavas, quando
lancei os fundamentos da terra?
Dize-mo, se é que sabes tanto. Quem lhe fixou as dimensões
- se o sabes -, ou quem
estendeu sobre ela
a régua? Onde
se encaixam suas bases,
ou quem
assentou sua pedra
angular entre
as aclamações dos astros
da manhã e o aplauso
de todos os filhos
de Deus? Quem
fechou as portas do mar
quando irrompeu jorrando do seio materno;
quando lhe dei
nuvens como vestidos e espessas névoas
como cueiros;
quando lhe
impus os limites e lhe
firmei porta e ferrolhos,
[...] Entrastes pelas fontes
do mar, ou passeastes
pelo fundo
do abismo? Foram-te indicadas
as portas da morte, ou viste os porteiros
da terra da sombra?
Examinaste a extensão da terra?
Conta-me, se sabes tudo isso! (Livro de
Jó, 38: 4-18, Bíblia Sagrada, 1997)
Como se vê, a razão
humana não
pode pretender dar
conta da (des)razão
divina, e a comunicação
entre essas duas dimensões
- sagrada e humana
- será sempre tensa
e problemática. A violência
do sagrado, que
na verdade é a violência
da não-diferenciação (e, portanto,
não-civilização) será exteriorizada pelo homem e divinizada, manifestando-se de forma
exemplar na mitologia
grega, em
que os deuses
antropomorfizam desejos e sentimentos humanos
sem qualquer
exigência ética
ou moral.
Exteriorizar a violência
é salvaguardar a razão
humana, que
recua frente a violência
que vê
em si
mesma e da qual
se emancipou. Libertando-se do indiferenciado, a consciência
produz a diferença, que
é tanto constituída pelo
homem como
constituinte dele. Interditada,
a violência torna-se pharmakon,
o remédio/veneno
que cura
ou mata
dependendo das doses em que é ministrado.
Pondo-se à distância do sagrado, expulsando-se a si
mesmo do paraíso
mitológico do Éden,
o homem torna-se conhecedor
do bem e do mal,
torna-se ético, sem
que suas
ligações com
o divino sejam cortadas:
Maldito na comunidade
dos homens, o sagrado,
com toda
sua bagagem
de transgressões divinas, de
práticas sexuais
proibidas, de formas de violência e brutalidade, que toda a mitologia abriga
sem pudor
e sem reserva,
torna-se bendito quando
se transfere para o exterior.
Com essa expulsão
o homem é arrebatado à sua violência
que, divinizada, é posta
além do humano
como entidade
separada, como coisa
que diz respeito
aos deuses (GALIMBERT, 2003,
p. 17).
Se
a diferença é a condição
de possibilidade para a cultura
humana, o indiferenciado permanecerá
como aquele não-lugar
onde não
há distinção possível,
ou desejável. Diferente
dos homens, que
são ou
“isto” ou
“aquilo” e vivem sob
a imposição ética
de de-cidir (de-caedere, cortar) seu posicionamento enquanto
seres históricos
e contingentes, o sagrado
está além do bem
e do mal, abrangendo, como dirá Bataille, aspectos
fastos e nefastos (aqui
basta lembrar
os sacrifícios humanos
nas religiões arcaicas).
O
sagrado, portanto,
é aquele panorama
indistinto, aquela reserva de toda
diferença, aquela indecifrabilidade
que os homens,
depois que dela
se separaram, perceberam ser seu
horizonte de procedência
e a mantiveram distinta, fora da sua comunidade, no mundo
dos deuses, que
por isso
antecederam os homens. (...)
Freud deu a esse mundo
o nome de inconsciente,
e na escolha da palavra
já está o ponto
de vista de quem
observa de uma consciência alcançada
e pacificada. Os homens conheceram
o inconsciente na forma mais dramática
do divino e do sagrado
(GALIMBERT, 2003, p. 16).
Entretanto, se no Éden
a indistinção entre bem
e mal implicava uma impossibilidade
de de-cisão ética, significava
também ausência
de angústia e de sofrimento: é a infância da humanidade,
antes do corte
com a
Mãe amorosa,
que supre todas as necessidades
da criança (do homem)
em uma relação
simbiótica a que nada
falta, exceto
a própria falta
— a ausência, o desejo,
o pro-jeto. Instaurado o corte, e expulso do jardim,
resta ao homem
empreender a difícil
tarefa de domesticar
o inóspito sertão,
onde viver
será perigoso, porque
demandará sempre novos
cortes, novas
decisões que
implicarão um ethos que
precisará ser culturalmente legitimado.
2. Veredas
No
ano de 1995 a revista
italiana Liberal
publicou um diálogo
epistolar entre
o cardeal Carlo Maria Martini e
Umberto Eco, diálogo que foi posteriormente
publicado no livro de título Em que crêem os que
não crêem?, em
que também
está incluída uma posterior discussão
acerca dos temas
tratados por
outros seis
interlocutores, abrangendo dois jornalistas, dois filósofos e dois políticos. A quarta
missiva do Cardeal
Martini a Eco tinha
por título
a pergunta: “Onde o leigo encontra a luz
do bem?”. Nela, o Cardeal
Martini problematiza a possibilidade de uma ética
laica e não
apoiada em princípios
metafísicos universais,
na qual o homem
assumisse radicalmente a “responsabilidade” tanto
pela execução
das normas ético-morais quanto pela ‘construção’ e legitimação
das mesmas:
Tenho
dificuldades para
enxergar como
uma existência inspirada nestas
normas (altruísmo,
sinceridade, justiça,
solidariedade, perdão)
pode sustentar-se a longo prazo e em qualquer circunstância
se o valor absoluto
da norma moral
não está fundado
em princípios
metafísicos ou
em um
Deus pessoal
(ECO & MARTINI, 2003, p.
77).
As
respostas encenadas, tanto por Eco quanto pelos demais interlocutores, que
em menor
ou maior
grau discutirão a necessidade
de um diálogo
entre a ética
laica e a(s) religiosa(s),
são diversas, e bastante
interessantes. Entretanto, dada a limitação
de nosso estudo,
abordaremos a resposta de Eco (uma ética
que nasce quando
o “outro” entra em
cena) e a de Eugênio Scalfari (uma
ética “natural”,
“biológica”). O que pretendemos
é preparar o terreno para a entrada do jagunço Riobaldo, que
em sua
narrativa épica
irá encenar a angústia
do humano diante
da necessidade de tomar
decisões éticas,
porque livres.
Parece-nos que a própria
insistência de Riobaldo em “ter certeza” da não-existência do Diabo
e da não-validade do pacto feito
com o mesmo
é indicativo de que
ele reluta entre
o assumir definitivamente
a responsabilidade por
suas ações/decisões ético-morais e a tendência
a delegar a outro
- nesse caso ao Diabo
- tal responsabilidade.
Antes porém de ouvir
o jagunço Riobaldo, percorreremos
algumas veredas trilhadas por outros pensadores em
sua tentativa de compreender os fundamentos
para uma ética
e uma moral na sociedade
contemporânea. Inicialmente
é preciso ressaltar
que a perspectiva
que adotamos é a de uma ética laica e
historicizada, em outras palavras, sem
valores absolutos.
Desta forma, tomaremos a pergunta
inicial do Cardeal
Carlo Maria Martini - “onde o leigo encontra
a luz do bem?”
- como uma provocação
autêntica que
se propõe a qualquer investigação sobre
as possibilidades e limites de
uma ética laica. É
preciso lembrar que apenas o homem é um animal ético,
e portanto é o único
capaz de ações
que podem ser
consideradas “boas” ou “más” de
acordo com um código de valores vigente. Ao homem
humano foi dada,
como um
presente ou
condenação, a capacidade
de se “descolar” do momento
vivido e se projetar
no tempo (o passado
como memória
social e pessoal
acumulada, o futuro
como expectativa
compartilhada, o presente como
mediação entre ambos),
de modo que
ele age ‘sabendo’ que
‘sabe que age’. Logo,
ele é moral.
Logo, pode ser
mau, de uma forma
que os tubarões
e as hienas selvagens
não o podem. Mas
também pode ser
“bom”, no sentido
em que
suas ações
sejam gratuitas, “descompromissadas” com
seus interesses
pessoais e imediatos.
Na
perspectiva de uma ética
laica Umberto Eco
propõe uma ética baseada
na consciência do outro,
pois entende que
é “o outro,
é seu olhar,
que nos define
e nos forma”
(p. 83), enfatizando com isso o aspecto sócio-cultural
da existência humana; afinal,
diz-nos Eco, “Mesmo
quem mata,
estupra, rouba,
espanca, o faz em momentos
excepcionais, e pelo
resto da vida
lá estará a mendigar
aprovação, amor,
respeito, elogios
de seus semelhantes”
(p. 83). Com isso
Eco nega
qualquer maniqueísmo ou
essencialismo, por afirmar
que o bem
e o mal são
conseqüências de ações
pragmáticas, historicamente inscritas,
e não entidades
metafísicas, de existência
independente a uma objetivação
humana. O imperativo
de uma ética do outro
nasce da constatação de que a necessidade
da con-vivência é aquilo que nos determina
enquanto espécie:
“poderíamos morrer ou
enlouquecer se vivêssemos em
uma comunidade na qual,
sistematicamente, todos tivessem
decidido não nos olhar jamais ou comporta-se
como se não
existíssemos” (p. 84). Para Eco,
a solidariedade para
com o outro
é uma possibilidade de dar sentido
à própria existência
que se abre para
aqueles que
nunca tiveram a experiência
da transcendência, ou a perderam, pois na “tentativa de garantir a alguém uma vida
vivível, mesmo depois
que ele
mesmo já
tenha desaparecido” (p. 85) o homem
poderá encontrar o sentimento
de eternidade que
geralmente é o que
o conduz à experiência religiosa.
Diante da contestação
de que não
são todos
que se preocupam em
dar sentido
à própria morte,
Eco argumenta
que, mesmo
entre aqueles
que crêem, existem os que não se questionam
quanto à validade
das suas ações
morais e éticas;
ainda que
esses sejam maioria,
isto não
traz problemas para
se fundamentar uma ética
da alteridade, pois
“a força de uma ética
julga-se através do comportamento
dos santos, não
dos insipientes cuius deus venter est” (p. 85). Eco
ainda destaca a necessidade
do diálogo entre
essas duas posturas éticas:
a religiosa e a laica,
e as ‘negociações’ de sentido aqui seriam similares
ao que ocorre entre
duas religiões, imbuídas do sentimento de mútuo
respeito: “E nos
conflitos de fé
devem prevalecer a Caridade
e a Prudência” (p. 90).
Um outro autor
que irá buscar
os fundamentos éticos
em uma espécie
de solidariedade entre
indivíduos sociais
é o filósofo Thomas Nagel (2001), que
a partir de uma brilhante argumentação acerca
da relatividade dos sistemas éticos e morais,
discute o que leva,
mesmo o mais
impiedoso criminoso,
a reconhecer que
determinadas ações são
“corretas” e outras “erradas”. Ainda
quando essa distinção
não sai do âmbito
teórico, e a prática
desse suposto “homem
mau” seja contraditória
com determinados
valores aceitos pelo
mesmo, ele
reconhece que algumas atitudes são ilegítimas,
pelo menos
no sentido kantiano de que tais ações não devam
ser universalizadas. Para
Nagel, a sociedade humana
se estrutura a partir
de um acordo
tácito que
manda que
cada indivíduo
se comprometa, pelo menos
em certa
medida, com
as demais.
É
claro que
a maioria das pessoas
se importa, em certa
medida, com
as demais. Mas,
se alguém não
se preocupa, não concluiríamos
que ele está isento da moral.
Uma pessoa que
mata outra
apenas para roubar-lhe a carteira, sem
se importar com
a vítima, não
está automaticamente justificada. O fato
de ela não
se importar não
legitima sua ação:
ela deveria se importar.
Mas por
que deveria se importar?
(2001, p. 66)
Dentre as tentativas
de responder essa pergunta,
Nagel aponta as seguintes: a) as motivações religiosas, que podem variar desde o “medo” de um castigo divino até o amor, que levaria
o fiel a se identificar
com um
Deus amoroso
e querer “imitá-lo”; b) a expectativa de que
se leve “vantagem”
na ação moral,
isto é, nesse argumento
a ação moral
será tomada pela
expectativa de que,
ao se agir de forma
correta com alguém se receba o mesmo
tipo de tratamento
“correto” não
apenas dele como
também de outros
circunvizinhos; c) o argumento racional da busca
de coerência entre
o que se espera
para si
e a forma de agir para
com o outro,(2)
classicamente ilustrado pela pergunta: “você gostaria que fizessem o mesmo
com você?”
Nagel
irá apontar problemas
em todos
esses argumentos
citados. Em relação
à motivação religiosa,
ele rebate
afirmando que os fundamentos
éticos não
podem atender apenas
àqueles que
crêem em um
Deus, afinal
esses não
são os únicos
que deverão se submeter
a tais princípios.
Mais ainda,
a proibição divina
acerca de algo
não faz dele algo
errado, apenas desaconselhável:
“Se Ele proibisse, por
exemplo, de calçar
a meia esquerda
antes da direita,
e o punisse por não
agir assim,
seria desaconselhável fazê-lo, mas
não seria errado” (p. 67). Uma outra
ressalva quanto a esse
tipo de motivação é que
o medo do castigo
ou a esperança
da recompensa não
parecem ser motivos
legítimos para
se fundamentar a moral.
O
segundo tipo
de motivação é a intenção de algum tipo de
recompensa que
possa se ter na prática
de uma ação moral
correta. A esse
respeito é bastante
esclarecedora a fala de uma das
personagens de Eça de Queiroz no romance
Os maias; é o avô de Carlos Maia,
que quando
questionado pela
sua decisão
de dar ao neto
uma educação laica
afirma: “Eu quero que
ele seja bom
por amor
à bondade, que
seja verdadeiro por
amor à verdade,
e justo por
amor à justiça,
e não por
medo do inferno
ou desejo
de alcançar um
paraíso extraterreno”.(3)
Ainda quanto
a essa motivação bancária, Nagel
argumenta que
essa “Não é uma razão
para fazer o que é certo se
os outros não
vão saber,
ou contra fazer o que é errado
se você pode escapar
impune (como atropelar alguém e fugir)” (p. 68).
O
terceiro tipo
de motivação, a busca de coerência entre
o que se deseja
para si
e o que se faz ao outro,
pressupõe uma razão para
que algo
que não
desejo que
seja feito a mim
(o exemplo que
o autor dá é o de alguém
que tem seu
guarda-chuva roubado em
um dia
de chuva) seja considerado “ruim” quando feito a qualquer
outra pessoa,
inclusive se eu
for o agente da ação.
É
uma questão de simples
coerência. Ao admitir
que outra
pessoa teria uma razão
para não
prejudicá-lo em circunstâncias
semelhantes e ao admitir
que a razão
que ela
teria é muito geral
e não se aplica somente
a você, ou
a ela, então por uma questão de coerência, você teria de admitir que a mesma razão se
aplica a você agora
(p. 70).
Muito embora contra
esse argumento
possam se levantar os que
digam que, apesar
de não gostarem de sofrer
uma ação ruim
(serem roubados, por exemplo), não
vêem nenhum motivo
especial para
que o autor
da ação (o ladrão)
considere os seus sentimentos.
Nagel argumenta que
a maior parte
dos indivíduos em
sociedade “pensaria que
seus interesses
e os danos que
possam sofrer dizem respeito
a todos, não
apenas a si
mesmas - o que dá aos outros uma razão
para se importarem com
eles também” (p. 70). A partir
disso o autor propõe que as bases da
moral estão em
uma espécie de sentimento
de “solidariedade” entre
os sujeitos sociais,
que, ainda
quando tomam atitudes
moralmente duvidosas, não pretendem que
tais ações
sejam legitimadas e universalizadas, vindo eles
a sofrer ações
semelhantes às que
praticaram. Essa última proposta de fundamento
para o agir ético-moral
se origina no desejo de Nagel demonstrar que a motivação
moral pode ser
desvinculada tanto das preocupações religiosas (e com
isso atingir
a todos, inclusive
os não-religiosos) quanto das motivações
baseadas em interesses
próprios (sentir-se bem
por ter
feito o que se
considera “correto” ou
não querer
sentir-se culpado por não tê-lo feito).
Mas muitos são
os problemas que
nem sequer
foram tocados: a relatividade da moral;
(4) a aceitação
(ou não)
e determinação de alguns
valores universais
(mas quais
seriam eles?); a organização,
em nível
hierárquico, de nosso comprometimento com
os demais (meus
interesses pessoais,
família, amigos,
comunidade próxima,
outros povos
e países, etc: em
que ordem
de importância devem ser
postos esses
“outros”?). De qualquer
forma, as conclusões
de Nagel, apesar de precisas, são pouco otimistas:
O
argumento moral
tenta apelar
para uma capacidade
de motivação imparcial que se supõe existir em todos nós. Infelizmente
ela pode estar
profundamente enterrada e, em alguns casos, pode simplesmente
não existir.
Em todo caso, precisa
competir com poderosos motivos
egoístas, e com outros
motivos pessoais
que talvez
não sejam tão
egoístas, em sua
luta para
controlar nosso comportamento. A dificuldade
de justificar a moral
não está em
haver apenas
um motivo humano, mas em haver muitos (p. 80).
Na
mesma linha
de Umberto Eco e Thomas Nagel,
o jornalista Eugênio Scalfari, fazendo coro
às discussões entre
Eco e o Cardeal
Matini, advoga que, “para
agir moralmente,
confiemos no instinto”, (5)
propondo uma moral que
tenha fundamento biológico, ao
mesmo tempo em que nega a possibilidade de “ancorar
a moral no tema
do Absoluto, seja esse
de natureza metafísica,
seja de natureza religiosa,
porque a imutabilidade
do Absoluto não
impediu que, na história,
a moral mudasse segundo
os tempos, os lugares
ou os contextos”
(GALIMBERTI, 2003, p. 352), conforme
nos alerta Galimberti,
ao comentar a proposta
de Eugênio Scalfari desenvolvida
com maior precisão na obra
Alla ricerca della morale perduta.
A moral instintiva
de Scalfari está ligada à constatação de que
existem dois fortes
instintos na espécie
humana: o da sobrevivência
do indivíduo e o da sobrevivência da espécie,
instinto que
Galimberti irá identificar com
a pulsão de vida (Eros) de Freud:
É
o instinto enraizado no indivíduo para garantir a sobrevivência
da espécie, simétrico ao instinto de conservação destinado
a assegurar a sobrevivência
do indivíduo. E, como
o instinto de conservação
não impede o indivíduo
de experimentar a autodestrutividade até o limite extremo do suicídio, assim o instinto
moral, preposto
à defesa da espécie,
não impede a imoralidade
até o limite
extremo da guerra.
Religião e razão
vêm depois para
delimitar, cada
uma com seus
argumentos, o espaço
da autodestrutividade individual
e da destruição da espécie,
e por isso
a discussão entre
razão e religião
é discussão sucessiva
ao fundamento da moral,
é discussão que
intervém para conter
ulteriormente os espaços
de destrutividade que fogem ao
instinto de conservação tanto do indivíduo
quanto da espécie
(GALIMBERTI, 2003, p. 353).
Scalfari
entende a moral como
um ultrapassar
do ponto de vista
do Eu, quando
o homem se põe “cheio
de amor próprio
em todos
os seus apetites
e em todas as suas
ações, acima
e fora de si”
(Apud GALIMBERTI, 2003, p. 356).
O agir moral pressupõe
um esquecimento,
ao menos temporário,
das próprias razões e necessidades, e um
lançar-se para o outro,
um comprometer-se com
as necessidades do não-Eu. Essa
moral instintiva
teria raízes biológicas, e não
culturais, muito embora
ela assuma configurações
distintas em distintas culturas, em práticas e valores
historicamente determinados e socialmente inscritos que
põem em descrédito
qualquer tentativa
de universalizar esses
mesmos valores.
Antes, é “Nesse instinto
de co-pertencer, que cada Eu reprime
no seu inconsciente,
(que) está a raiz
primeira de toda
moral” (IDEM,
p. 360).
Como se vê, pelos
argumentos acima
expostos, existem outras possibilidades
para se fundamentar o agir moral fora da motivação religiosa
ou de princípios
metafísicos universais,
tais como
o bem supremo
ou a razão
universal. Conceber
a moral como uma
realização humana
é aceitar o desafio
de não se ter balizas eternas para legitimar nossas ações,
exceto o nosso
frágil desejo
de bondade, beleza
e harmonia, que
infelizmente coexiste com o nosso “ruidoso desamor”.(6)
Mas, para
além de todo relativismo
que se possa apontar
na construção de uma ethos, concordamos com Soares e Vilhena quando
afirmam que:
Esta
constatação não
invalida que hoje
consideremos como mal
tudo o que
fragilize, atente, agrida, elimine, coloque em
risco qualquer
das dimensões constitutivas do
ser humano, dos demais seres,
da natureza em
geral, da vida,
do mundo (2003, p. 80).
Se
é possível identificar
o Mal com
a dor e o sofrimento e o bem
com a vida
(potencialidade de vida), o nosso
próprio entendimento
do mal se dá em
contraponto ao bem
que identificamos no existir:
e o mistério do mal
torna-se tão insondável
quanto o mistério
do bem.
3. Travessias
Viver é negócio muito
perigoso... diz-nos
Riobaldo ainda nas primeiras páginas da narrativa
épica que
irá protagonizar. Esse
é o mote que
ele irá repetir por todo o romance, reiterando no leitor
a suspeita de que,
mais do que
as aparências possam inicialmente fazer acreditar, existe entre
ele e Riobaldo uma cumplicidade
dada pelo
consenso quanto
a essa afirmativa; afinal,
também a nós
está posta a angústia
do jagunço, pois,
se ‘Tudo é e não
é’, resta ao homem
humano fazer
com que certas coisas
sejam (legitimando-as) e outras não
sejam (relegando-as à impossibilidade do não
ser). As escolhas
de Riobaldo são sempre
éticas, porque
ele é bastante
lúcido em
relação aos limites
(e deslimites) do humano em fundamentar esse estar-no-mundo compartilhado, bem
como da impossibilidade de não exercer seu arbítrio.(7)
Daí que ele
estará sempre, ao contrário
dos demais jagunços,
inclusive Diadorim, permeado de dúvidas
e crises de consciência
quanto à legitimidade
das próprias ações.
A
questão proposta
por Riobaldo - a existência
do diabo e a possibilidade de ter
feito um
pacto com
o mesmo - é uma questão ética, essa é a nossa
hipótese. A existência
do Mal - assim
mesmo, em
maiúscula - é inegável,
tanto na ficção
roseana quanto na hiper-realidade
das sociedades contemporâneas, e as reflexões
do jagunço Riobaldo sobre
essa questão surpreendem pela
argúcia e perspicácia,
pois ele
avança resolutamente
em meio
ao grande sertão(8)
inóspito e trágico
como um
cão farejador(9)
que, perplexo,
quer entender
a substância das próprias ações,
separar, qual
joio do trigo,
o bem e o mal
que tão
bem se misturaram na sua
própria existência.
A constatação de que
“.... Querer o bem
com demais força,
de incerto jeito, pode já estar sendo se querendo
o mal, por
principiar” (ROSA,
2001, p. 32), acompanha a narrativa
que Riobaldo fará ao visitante-leitor; ele narra para entender a matéria vertente (p.116) da vida,
aquilo que
move os homens (que
a ele mesmo
moveu) para “dar
corpo ao suceder” das boas
e das más ações.
De
onde vem o mal,
entendido aqui
como ação
objetiva que viola a liberdade
do outro e causa
sofrimento e desespero; como explicar que tanto a beleza quanto a dor venham das mãos
do mesmo homem
humano; como
entender que
bem e mal se alternem
qual duas faces
de uma mesma moeda
em um
jogo perverso
do qual todos
participamos? Ou, em
outros termos,
francamente “paulinos”,(10)
porque, mesmo
querendo o bem (pelo
menos para si) o homem realiza
o mal? Ainda,
porque o mal,
sinônimo de sofrimento e destruição, parece ter tão maior força que o bem, identificado no romance
com a força
criadora do amor (“Qualquer
amor já
é um descanso
na loucura”)? Essas são
questões que
perpassam todo o romance,
enquanto nosso
jagunço-filósofo tenta ordenar
o caos reinante
em um
mundo onde
o bem e o mal
estão misturados, por isso a conclusão
óbvia é que
“todo-o-mundo é louco”, cabendo
à religião dar o arcabouço ontológico
capaz de ‘desendoidecer’ os homens
(p. 92), re-ligando-os a uma parte
alienada de si:
o Bem - assim
mesmo, em
maiúsculo.
Riobaldo
é, na travessia dessas veredas existenciais, um
propositor de perplexidades, ensinando-nos “outras maiores
perguntas” que
abrangem temas tão
vastos quanto
o amor, o erotismo,
a amizade, a morte,
Deus, o Diabo,
a beleza, o papel
da ficção na vida
do não-especialista, a riqueza infinita
da linguagem poética,
etc. Como o disse Adélia Prado,
“Tudo é bíblias. Tudo
é grande sertão”
(1986), verso que
sintetiza a inesgotável capacidade dessas duas escrituras
de propor, de forma
plural e multifacetada, as mais
diversas questões sobre
a existência humana.
Entretanto, nos
detemos nesse pequeno ensaio nas considerações
de Riobaldo acerca do bem
e do mal, tentando entender,
através dos fatos
narrados e das suas reflexões,
um pouco
do ‘perigo’ que
a vida, fora
do Éden, implica.
Percorrendo
as trilhas desse sertão
tentamos pensar o problema
do bem e do mal
a partir de uma perspectiva
ética, ou,
nas palavras de Paul
Ricouer, buscando a convergência entre pensamento,
ação (moral
e política) e transformação emocional dos sentimentos.
Entenda-se aqui ética
como a construção
de ethos: identidades,
culturas e ações
pragmáticas que
abrangem os diversos âmbitos da vida
humana em
sociedade. Nesse sentido,
a ética não
é algo que
seja reservado à ação
dos santos ou
à reflexão dos filósofos: todo o homem humano é ético,
porque a ele
se demanda, cotidianamente,
posicionamentos concretos
e historicamente determinados,
ele deve “agir”, e ao agir torna legítima (ou não) esta ou aquela
ação.
O
romance Grande sertão:
veredas inicia com
uma dúvida - “E me
inventei o gosto de especular
idéia. O diabo
existe e não existe?” (p. 26) -
e termina com uma provável
certeza: “Nonada. O diabo
não há! É o que
eu digo, se for .... Existe é o
homem humano.
Travessia” (p. 624). Entre
as duas afirmativas uma travessia: o velho
jagunço Riobaldo, antigo
Tatarana e Urutu-Branco, divide
com o leitor suas preciosas lembranças(11)
na tentativa de tornar
entendível a substância da vida,
clareando aqueles pontos
obscuros dessa vida
movente que vai “em
erros, como
um relato sem
pés nem
cabeça, por
falta de sisudez
e alegria” (p. 261). Riobaldo conta e pede ao leitor
que ponha o ponto
(p. 546) nessa trágica história de amor
e ódio onde
o bem e o mal
estão de tal modo
misturados que não
é possível perceber
onde um
começa e o outro
acaba.
Diadorim
- o nome
perpetual (p. 387) - é um bom exemplo para ilustrar essa caótica mistura
de enganos e verdades
que permeiam os sertões,
onde “tudo é e não
é”. Diadorim: menino valente, sensível
apreciador das belezas
sertanejas, jagunço vingador, amigo
fiel, enamorado ciumentíssimo,
donzela guerreira
- corpo branco
de mulher repisado de sangue... quantas verdades
se escondem em uma só
existência. As personas se sobrepõem
e Diadorim-Reinaldo-menino não
pode ser compreendido em
apenas um desses
papéis: sua identidade
polifônica e andrógena é um desafio posto a Riobaldo,
como o enigma
da esfinge: “Decifra-me ou devoro-te”.
A
Riobaldo incomoda esse caos assombroso,
ele sente necessidade
de ter “todos
pastos demarcados”, para
que “o bom
seja bom e o rúim ruím, que dum lado esteja
o preto e do outro
o branco, que
o feio fique bem
apartado do bonito e a alegria longe
da tristeza” (p. 234). Mas
como ter
certezas, ainda
que provisórias, nesse mundo onde as
coisas se misturam imprudentemente?
Enquanto a maior
parte dos homens
vive das convicções alheias, Riobaldo
diverge do senso comum
por ser
homem ‘forro’
(p. 34), que tem dificuldades
em aceitar
verdades prontas e domesticadas: “Eu
quase que
nada não
sei. Mas desconfio de muita coisa.” (p. 31)
E
é esse desconfiar
que caracteriza Riobaldo como um homem duvidoso.
Nesse sentido ele
se apresenta como figura
simbólica para caracterizar
um humano
que se localiza ‘fora
do Éden’ e precisa
se posicionar eticamente em
um mundo
do qual ele
próprio desconfia da fragilidade
dos valores. Viver
é perigoso porque
a vida não
é entendível, e os acontecimentos
da própria existência
parecem não compor
um todo
orgânico e integrado, é o que nos diz Riobaldo
em diferentes
momentos da narrativa:
Em desde aquele tempo,
eu já achava que a vida da
gente vai em erros, como um relato sem
pés nem cabeça, por falta de sisudez
e alegria. Vida
devia de ser como
na sala do teatro,
cada um
inteiro fazendo com
forte gostos
seu papel,
desempenho. Era
o que eu
acho, é o que eu
achava (p. 261).
A
lembrança da vida
da gente se guarda
em trechos
diversos, cada
um com
seu signo
e sentimento, uns com
os outros acho que
nem não
misturam. Contar seguido, alinhavado, só mesmo sendo
as coisas de rasa
importância. De cada
vivimento que eu
real tive, de alegria
forte ou
pesar, cada
vez daquela hoje
vejo que era
como se fosse diferente
pessoa. Sucedido desgovernado. Assim
eu acho, assim
é que eu
conto (p. 115).
Triste é a vida
do jagunço - dirá o senhor.
Ah! Fico me rindo. O senhor
nem não
diga nada. “Vida”
é noção que
a gente completa
seguida assim,
mas só
por lei
de uma idéia falsa.
Cada dia
é um dia
(p. 414).
A
cosmogonia de Riobaldo é interessante: muito
embora seja impossível
negar a doideira
da vida, ele
acredita em um
modelo ético-moral em
que cada
ação esteja perfeitamente
conformada com as demais,
e na existência de uma bússola que aponte
para um
rumo certo,
um norte
a partir do qual o homem humano possa
direcionar seus
passos e saber
certamente do bem
e do mal que
lhe rodeia.
Para cada
conjunto de possibilidades, apenas
uma ação correta,
comparando a vida a um
grande teatro
onde cada
um deve cumprir
o papel a ele
designado com empenho
e escrúpulos. Entretanto,
quais personagens
cujas falas foram trocadas, e desandam
loucamente a representar
a ‘fala’ uns dos outros,
fazendo ruir o próprio
tecido da vida,
os ‘atores’ não conseguem
encontrar a pauta
adequada para cada
dia e a vida
continua ininteligível:
Só o que eu quis, todo
o tempo, o que
eu pelejei para
achar, era
uma só coisa
- a inteira - cujo
significado e vislumbrado dela
eu vejo que sempre tive. A que
era: que
existe uma receita, a norma dum caminho
certo, estreito,
de cada uma pessoa
viver - e essa pauta
cada um
tem - mas a gente
mesmo, no comum,
não sabe que,
sozinho, por
si, alguém
ia poder encontrar
e saber? Mas, esse norteado, tem. Tem que
ter. Se não,
a vida de todos
ficava sendo sempre o confuso
dessa doideira que
é. E que: para
cada dia,
e cada hora,
só uma ação
possível da gente
é que consegue ser
a certa. Aquilo
está no encoberto; mas,
fora dessa conseqüência,
tudo o que
fizer, ou deixar
de fazer, fica sendo falso,
e é o errado. Ah, porque aquela
outra é a lei,
escondida e vivível mas não achável, do verdadeiro
viver: que
para cada pessoa, sua continuação, já
foi projetada, como o que se põe, em
teatro, para cada representador - sua
parte, que
antes já
foi inventada, num papel... (p. 500)
Alguns eventos do
romance são exemplares para mostrar as dúvidas
ético-morais que perseguem Riobaldo.
Nesse sentido pode-se citar
alguns, dos muitos
momentos em
que o questionamento
ético aparece: a primeira
luta que
Riobaldo enfrentou no bando de
Titão Passos, em lealdade
a Joca Ramiro e contra Zé Bebelo, aquele
que havia sido protetor
e aluno de Riobaldo; o julgamento
de Zé Bebelo; o quase
estupro da mocinha
neta de Seo Ornelas; a tripla tentação para matar Constâncio Alves, com quem o bando de Riobaldo havia topado no Chapéu-do-Boi; após ter poupado a vida de Constâncio Alves, os apertos
de Riobaldo para ‘driblar’
a promessa que
ele mesmo
havia feito de matar
o primeiro ser vivente que aparecesse
em sua
frente; o desejo
de matar o “lázaro”
entocaiado na árvore (pps: 285,
472-473, 485, 491, 508-510).
Tomemos
como exemplo
a situação da tentação
de Riobaldo para matar
Constâncio Alves e, posteriormente,
o ‘homem da égua’
com a cachorrinha, que
ficou “por preencher
o lugar que
devia de ser o do nhô Constâncio Alves” (p.
489). A situação é bastante
delicada para
Riobaldo, que se sentindo tentado
pelo diabo para
matar o desconhecido
viajante que
topara com seu
bando pelos
ermos dos gerais,
arquiteta um
ardil para sair
da armadilha preparada
pelo demo:
ele decide fazer uma pergunta, e caso o homem respondesse errado seria morto
sem mais
demoras ou
piedades. O que
Riobaldo pretende com esse ‘acordo’,
feito em silêncio em seu íntimo, é
que a morte de nhô Constâncio
Alves não fosse mais exclusiva
responsabilidade sua,
ação arbitrária
movida pela mão
do diabo, e sim
fruto da ‘sorte’
de uma má resposta dada
pela vítima.
Mas Constâncio Alves responde adequadamente,
e Riobaldo, “para se pacificar
e enterter o Outro” promete: “-
Perdoei este; mas, o primeiro que se surgir, destas estradas,
paga!” (p. 489) E logo
aparece, no horizonte do bando, um pobre miserável
com sua
égua e uma cachorrinha. Ainda que “a vontade de matar tinha se acabado”,
Riobaldo está preso pela
palavra empenhada a si
mesmo, ao diabo
e a seus homens:
“Porque eu
não podia voltar
atrás na promessa
da minha palavra
declarada, que meus
cabras haviam escutado e glosado.
Ah, o demo bem me conhecia! Devia de estar
no astuto, ali
por perto,
do meu querer
de crime!” (p. 490)
Riobaldo,
o Urutu-Branco, dono da vida de muitos,
sabe que aquela morte
é sem-sentido, e logo encontra meios
de salvar sua
honra sem
cometer essa injustiça,
afirmando que quem
deveria de morrer era
a cachorrinha, e não o homem, pois fora ela a que primeiro avistou. Mas também a cachorrinha
que “prezava correta, latindo tão
relatado” (p. 493) ele não queria
matar; não, foi a égua que viu primeiro e é ela que deve morrer, decide.
No momento em
que a égua
se encontra desapeada do dono e pronta
para o abate, Riobaldo
se sente tomado pela vontade de chorar, fazendo
coro ao homem
da cachorrinha, desgostoso de si
(p. 495), mas decidido
a dar um
fim razoável àquela desastrada história
por ele
mesmo começada. Quem
o impede é Fafafa, que se oferece
para pagar o resgate
pelo animal,
considerado inocente dos pecados humanos.
À sugestão do companheiro
de armas Riobaldo reage com alívio, pois entende que “do
Demo era que eles discordavam”
(p. 495), e finaliza a má história
afirmando que o dito
ficava pelo não
dito, pois
a promessa feita fora para o primeiro
homem que
visse e não para
uma cachorrinha ou uma égua.
Ao
fim da narrativa,
Riobaldo compartilha com o ouvinte-leitor
a seguinte dúvida: “Será - mal
pergunto ao senhor - que
viajei este sertão
com o Outro
sendo meu sócio?”
(p. 497) Como entender
esse duelo
com o diabo,
no qual a vontade
humana torna-se refém
de pensamentos arquitetados nos sombrios da
alma, sob
a influência dos maus
humores do maligno?
Penso que
o diabo deva
ser entendido,
nas travessias de Riobaldo, como uma exteriorização do próprio
mal que
permanece latente em
cada um
de nós, um
mal contra
o qual precisamos reivindicar
nossa ‘posse’,
afastando-nos dele em busca de perspectivas
menos egocêntricas e autocentralizadas.
Riobaldo luta contra
o mal que
sente em si
- sócio indesejável
-, e busca fundamentar
sua identidade
no pertencimento a um Bem
superior a sua
fraca vontade: “Mas a minha alma tem de ser de Deus: se não como é que ela podia ser minha?”
(p. 501) Se Deus é o Ser,
e o diabo o não-ser, a ausência,
a falta, e a carência,
uma resposta possível
ao mal é uma radical
proximidade com
o bem, sem
nunca se esquecer que “essa alma
(vontade) é minha”,
pois não
há como fugir das responsabilidades pelas próprias ações.
Segundo apontado por
Leonardo Almeida (2004), o romance
opera um interessante deslocamento
na ‘geografia’ imaginária
do inferno, em
uma “longa trajetória
do inferno das regiões
do submundo terreno
para a luz
do dia”. O diabo
não habita apenas
os recantos das Veredas-Mortas
- onde o pacto se deu - ou o Liso do Sussuarão
- lugar maldito
de impossível travessia
que apenas
será ‘domado’ após
o pacto de Riobaldo com
o diabo -, ele
anda entre
os homens, conforme
a epígrafe que
abre o romance: “o diabo na rua,
no meio do redemoinho”.
Essa desterritorialização do inferno
parece indicar uma “falta
de fronteiras entre
o bem e o mal”
(ALMEIDA, 2004) que implode os
limites de uma concepção
maniqueísta de mundo
para localizar o
titânico duelo
na frágil matéria
humana: “Um
homem, coisa
fraca em si, macia mesmo, aos pulos
de vida e morte,
no meio das duras pedras” (ROSA,
p.268).
O
perigo da vida
está em que
cada ação
traz em si
uma série de conseqüências
imprevisíveis, e não
raramente indesejáveis;
em muitos
momentos Riobaldo se sente “propriedade” de forças
alheias, ao mesmo tempo
em que
precisa tomar
decisões individuais
acerca desse ou
daquele acontecimento, decisões que pretende
que sejam suas,
apenas suas.
Riobaldo quer o exílio
da liberdade: “Não
sou do demo e não
sou de Deus!” (p. 510), dirá ele, raivoso, a Diadorim, quando
o amigo tenta
impedi-lo de matar o lázaro;
e antes, no momento
do pacto: “Eu
queria ser mais
do que eu”
(p. 437). Se decidir é arriscado,
pois implica na possibilidade do mal, ainda assim é a mais
humana de todas as características,
tão humana
que se torna distintiva
entre os homens
e os deuses: apenas
os homens podem escolher
o mal, aos deuses,
pelo menos
ao deus cristão,
é vedada a opção pela
transgressão, pelo
arrependimento, pelo
erro, conforme
se vê na promessa
bíblica: “Deus não
é um homem
para mentir, e nem filho de homem para se arrepender” (Números
23:19, in: Bíblia Sagrada, 1997).
Dissemos
que o romance
se inicia com uma dúvida
e termina com uma provável
certeza, a de que
o diabo não
existe, existe apenas o homem humano,
e o bem e o mal
que d(n)ele
se engendram. Mas tal
conclusão não
minimiza a perplexidade de Riobaldo: ainda
que o diabo
não exista sua
alma foi vendida, em
pacto firmado nas Veredas-Mortas. Alguma coisa ali aconteceu,
é o que nos
diz Riobaldo:
Então, se não
vendi? Digo ao senhor: meu
medo é esse.
Todos não vendem?
Digo ao senhor: o diabo
não existe, não
há, e a ele vendi a alma....
Meu medo
é este. A quem vendi?
Medo meu
é este, meu
senhor: então,
a alma, a gente
vende, só, é sem
nenhum comprador?
(p. 501)
Entre Deus e o Diabo
Riobaldo teima insistentemente
em afirmar-se livre,
sedento de possuir-se, tanto
que, por
ocasião do pacto,
ele dirá: “E o que
era que
eu queria? Ah, acho que
não queria mesmo
nada, de tanto
que queria só
tudo. Uma coisa,
a coisa, esta coisa:
eu somente queria era - ficar sendo!” (p. 436) Uma possível
interpretação para
o périplo de Riobaldo é entendê-lo
enquanto tentativa de uma
definitiva emancipação
do humano, que
se arrisca, longe do Éden, a uma existência
sem balizas
confortáveis ou
metadiscursos consoladores. Entretanto,
se pensarmos que o próprio
Riobaldo caracterizou-se como um homem a quem apenas dois destinos eram possíveis - chefe de jagunços ou padre religioso
-, isto é, personagens
que se encontram nos
extremos do bem
e do mal, precisamos admitir
que essa liberdade
absoluta - a ‘maioridade
ética’ - é uma utopia
que apenas
se manifesta em
momentos pontuais,
e que, mesmo
longe do Éden,
o humano continua a sonhar
com o fim
das dicotomias e com
um paraíso
onde o Bem
e o Mal sejam novamente
irreconhecíveis, porque
inexistentes.
NOTAS
(*)
Mestre em
Estudos de Literatura
pela PUC-Rio e Doutoranda
em Ciência
da Literatura pela
UFRJ.
(1) É interessante notar
que a etimologia
da palavra projeto
indica um “lançar-se para
o futuro”, enfatizando esse mesmo aspecto de risco que tencionamos destacar como próprio da ação humana.
(2) Esse
argumento lembra o ditado,
de cunho francamente
bíblico, “não faças ao outro
o que não
queres que
ele faça a ti”.
(3) A citação
é feita de memória,
preservando apenas o seu sentido geral.
(4)
Diz Nagel: “Muitas coisas que você provavelmente considera
erradas foram aceitas por grandes grupos
de pessoas no passado:
escravidão, servidão,
sacrifício humano,
segregação social, negação
de liberdade política
e religiosa, sistemas
de castas hereditárias. E provavelmente,
algumas coisas que
hoje você
julga serem certas serão
consideradas erradas pelas sociedades
futuras.” Op. Cit., p. 76.
(5)
Esse é o título
do pequeno ensaio
do autor que
consta na obra Em que crêem os que não crêem?
Op.Cit.
(6)
Remeto-me ao verso de Adelia Prado: “Houve, é certo,
sob nossos
telhados,/ ruidoso
desamor,/ fel
em gotas
de silêncio segregado”, verso do poema
Apelação, de PRADO, Adélia. Bagagem, 1986.
(7)
Estou fazendo referência aqui à definição
sartreana de liberdade: “a liberdade é um
exílio” porque
ontológica, isto
é, ao homem é impossível
recusar o agir ético, e apenas
a existência de má fé
pode iludir-se com o consolo de que
foram outros — as circunstâncias
históricas e sociais, as contingências, as inclinações
psicológicas irrecusáveis, etc
— que decidiram por
ela. Parece-me que
Riobaldo, segundo a terminologia
de Sartre, assume uma existência
autêntica, por
saber-se livre e não
recusar a liberdade.
(8)
Nesse ponto,
o sertão está sendo entendido como
metáfora da própria
existência humana.
(9)
“O senhor concedendo eu
digo: para pensar
longe sou cão
mestre — o senhor solte a
minha frente uma
idéia ligeira,
e eu rastreio essa por
fundo de todos
os matos, amém!”.
ROSA, Guimarães João. Grande sertão:
veredas, 2001, p. 31.
(10)
É Paulo quem nos
diz: “Porque não
faço o bem que
quero, mas o mal
que não
quero esse faço”. Romanos
7:19, in: Biblia Sagrada, 1997.
(11)
Para se entender
o valor que Riobaldo
a memória veja-se o que ele nos diz: “Não
gosto de me esquecer de coisa nenhuma. Esquecer para mim, é quase igual a perder dinheiro”. ROSA, 2001,
p. 18.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Leonardo Vieira. Uma construção
do Inferno: de Homero a Guimarães
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do Instituto de Letras
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