1. 
        Sertões
      Coração da gente - 
      o escuro, escuros. 
      Riobaldo
Segundo a narrativa 
        mítica do Gênesis, no jardim do 
        Éden o homem vivia 
        aquém do bem 
        e do mal, protegido 
        dos perigos da própria 
        vontade, pois 
        desconhecia a distinção entre ambos, o 
        que pode significar tanto que o bem e o mal não existissem quanto 
        que, existindo, o próprio 
        homem não 
        possuía faculdades de juízo para percebê-los. Mas ter consciência de algo 
        não é justamente 
        o que permite que 
        esse algo 
        seja “objetivado”  pelo 
        nosso espírito? 
        Como dizer 
        que algo “existe” 
        se não existe para 
        nós, isto 
        é, se não é sensivelmente/cognitivamente 
        percebido por nós? 
        Assim sendo, parece-nos que o mito edênico propõe um 
        ‘lugar’ paradisíaco 
        onde não 
        havia realmente bem 
        e mal, que 
        são objetivações de ações 
        humanas diante de situações 
        que demandam um 
        gesto consciente 
        e livre, o que 
        parece tornar plausível 
        a interpretação de que, 
        no Éden, o homem 
        ainda não 
        gozava plenamente de seu livre-arbítrio. Assim, consciência 
        e liberdade eram características 
        que estavam potencialmente 
        inscritas no humano, mas apenas se 
        manifestaram no momento em que ele decide desobedecer a uma 
        ordem expressa 
        de Deus:  
        
        Eis que o homem é como um de nós, sabendo 
          o bem e o mal; 
          ora, pois, 
          para que não estenda a sua 
          mão, e tome também 
          da árvore da vida, 
          e coma e viva 
          eternamente; o Senhor 
          Deus o lançou fora 
          do jardim do Éden, 
          para lavrar a 
          terra de que fora tomado. E havendo lançado fora 
          o homem, pôs querubins 
          ao oriente do jardim 
          do Éden, e uma espada 
          inflamada que andava ao redor, para guardar 
          o caminho da árvore 
          da vida (Gênesis 3:22-24, Bíblica 
          Sagrada). 
       
       
      Resta saber se a ‘escolha’ 
        pela liberdade 
        poderia ter 
        sido feita sem 
        significar uma ‘escolha’ 
        pelo mal, 
        isto é, será que 
        o mito expressa 
        a emancipação humana 
        - a possibilidade de decidir, de forma 
        que o comer 
        do fruto proibido 
        seja o paradigma dos riscos que a liberdade implica - ou 
        apenas a entrada 
        do Mal no mundo, 
        devido a uma decisão 
        ‘ruim’? A interpretação 
        por que 
        optamos é a de que o mito edênico elabora 
        a emancipação do homem, que se 
        assume como agente 
        do seu próprio 
        pro-jeto(1) de vida. 
        Esta perspectiva é otimista, pois o comer do “fruto proibido” 
        significou um passo, 
        temerário talvez, 
        mas inegavelmente belo, 
        em direção 
        a uma maior autonomia 
        do humano. O mito 
        oferece indícios para 
        essa interpretação: por 
        que a árvore 
        estaria ali, no jardim 
        criado para 
        habitação da raça humana, se não 
        para que o humano ‘soubesse’ da possibilidade de “distinguir” 
        o bem e o mal? 
        A árvore estrategicamente disposta em sua plena visibilidade não 
        representava um desafio, 
        uma meta, uma provocação 
        à “maioridade” do humano?  
      Tal perspectiva implicará uma curiosa dubiedade na interpretação 
        do evento ‘expulsão 
        do paraíso’, pois, 
        se por um 
        lado isso 
        significa agora a vivência 
        consciente do mal, 
        por outro 
        lado indica a emancipação 
        humana, o “ter 
        que se virar” 
        pelos próprios 
        méritos, saindo de uma posição confortavelmente passiva 
        quanto à própria 
        existência. Afinal, 
        é justamente no “comer 
        do fruto proibido” 
        que o livre-arbítrio 
        humano se concretiza em ação. 
      É 
        interessante notar que 
        a expulsão do paraíso 
        teve, mais do que 
        um caráter 
        punitivo, um 
        aspecto preventivo e protetor: 
        “...para que 
        não estenda a sua 
        mão, e tome também 
        da árvore da vida, 
        e coma e viva 
        eternamente” (versículo 22). Parece que apenas após ter comido do fruto da árvore 
        do conhecimento é que 
        o homem poderia 
        ‘reconhecer’ a árvore 
        da vida, com 
        a conseqüência de que, 
        caso o homem 
        comesse do seu fruto, 
        tornar-se-ia também imortal, 
        prolongando pela eternidade 
        esse estado 
        de criatura imperfeita, 
        na qual se inscreve a dicotomia do bem e do mal. O homem seria 
        então ético 
        e imortal, ao contrário 
        dos deuses, que 
        habitam o sagrado mundo 
        da indiferenciação e da indistinção, conforme 
        argumentação de Galimberti, para quem o mundo sagrado 
        dos deuses é “aquela reserva de toda 
        diferença, aquela indecifrabilidade 
        que os homens, 
        depois que dela 
        se separaram, perceberam ser seu 
        horizonte de procedência 
        e a mantiveram à distância, fora da sua comunidade” (GALIMBERTI, 2003, p. 16). 
      Umberto 
        Galimberti compreende a experiência 
        com o sagrado 
        a partir de uma perspectiva 
        antropológica e psicológica, onde o sagrado 
        seria não apenas 
        exterior, mas 
        também interno 
        ao homem, “seu 
        fundo inconsciente, 
        do qual um 
        dia a consciência 
        se emancipou e tornou autônoma, 
        sem contudo suprimir o cenário enigmático 
        e obscuro de sua origem”(IDEM, p. 12). O sagrado 
        seria uma espécie de loucura, não aquela 
        reconhecida pela psicanálise e psicologia, 
        que se caracteriza por 
        ser uma transgressão 
        da razão, mas 
        uma outra, que 
        é anterior à própria 
        distinção entre 
        razão e loucura: 
        
        Mas existe uma espécie 
          de loucura que 
          não é transgressão, 
          pelo simples 
          motivo que ela precede as regras 
          e as transgressões; a essa não conhecemos, porque 
          todo saber 
          pertence à ordem 
          da razão que 
          só pode encenar 
          seu discurso 
          tranqüilo quando 
          a loucura deixa 
          o palco, quando 
          a palavra é dada 
          à solução do conflito, 
          não à sua 
          explosão, à sua 
          ameaça (IDEM, 
          p. 13). 
       
       
      O 
        terreno do sagrado 
        é, portanto, o do indiferenciado, 
        onde não imperam 
        os princípios da lógica, da linguagem 
        cognoscente, da ética e das organizações sociais 
        e políticas. Em 
        oposição a ele, 
        o mundo do trabalho 
        e da razão se sustenta 
        sobre dois 
        alicerces lógicos: 
        os princípios da identidade 
        e não-contradição, que postulam 
        as seguintes premissas: 
        
        a) 
          para que 
          uma coisa seja isto é preciso 
          que ela 
          seja idêntica a si 
          mesma; 
        b) 
          uma coisa não 
          pode ser idêntica 
          a si mesma 
          (isto) 
          e, ao mesmo tempo, 
          ser outra 
          coisa (aquilo) que 
          é diferente de si. 
       
       
      É 
        dessa violência primária 
        que introduz a diferença 
        em meio 
        ao indiferenciado que a própria humanidade 
        pôde surgir; a partir 
        das operações da razão 
        que separa isto e aquilo criando 
        a diferença dos múltiplos significados 
        culturais, sociais e éticos. Esse é 
        um gesto violento porque 
        desloca a continuidade primordial 
        e intuitiva para uma pseudo-continuidade representacional 
        entre mundo e pensamento: 
        “O gesto da razão 
        é um gesto 
        violento,  porque 
        dizer que 
        isto é isto e 
        não outra coisa, dizer que 
        o cavalo é o cavalo 
        e não o instinto, 
        o desejo, o ímpeto, 
        a fidelidade, o sacrifício, 
        a morte, é uma decisão 
        da razão e não 
        a verdade das coisas”(GALIMBERTI, 
        2003, p.15). A esse respeito 
        Octávio Paz ainda 
        dirá: 
        
        Desde Parmênides nosso 
          mundo tem sido o da distinção 
          nítida e incisiva 
          entre o que 
          é e o que não 
          é. O ser não 
          é o não ser. 
          Este primeiro desenraizamento 
          - porque foi como arrancar o ser do caos primordial - constitui o fundamento 
          de nosso pensar. 
          Sobre essa concepção 
          construiu-se o edifício das “idéias claras 
          e distintas”, que se tornou possível a história 
          do Ocidente, também 
          condenou a uma espécie de ilegalidade todas as tentativas 
          de prender o ser 
          por caminhos que não fossem 
          os desses princípios. Mística e poesia 
          viveram assim uma vida 
          subsidiária, clandestina 
          e diminuída (PAZ, 2003, p. 40). 
       
       
      O 
        homem, vivendo sobre 
        o signo da distinção, 
        articula sua existência 
        a partir do reconhecimento 
        das diferenças e do trato 
        com a alteridade, 
        e o interdito em 
        relação ao incesto 
        é exemplar para 
        entender a importância 
        do reconhecimento da diferença para a ordenação social. A 
        linguagem, a lógica, 
        a ética, a moral 
        e todas as demais instituições 
        humanas são frutos 
        dessa violência fundamental, 
        onde mesmo 
        a identidade aparece porque existe um 
        “outro”, um 
        “isto” que 
        continua em si 
        em meio 
        a outros “aquilo”. 
      Já o sagrado se rege pelo princípio do simbólico 
        (syn-ballein: do grego, lançar junto), onde os 
        deuses são 
        e não são, 
        obedecendo a regras distintas das 
        dos mortais, como 
        se vê na citação 
        abaixo de um 
        fragmento de Heráclito, em que o deus é identificado com 
        elementos paradoxais, 
        díspares, ressaltando como característica própria do sagrado 
        a impossibilidade de cerceá-lo em 
        sistemas conceituais ou 
        predicativos, 
        
        O 
          deus é dia 
          e noite, inverno 
          e verão, guerra 
          e paz, saciedade 
          e fome, e muda 
          como fogo 
          quando se mistura 
          a incensos, absorvendo de vez em quando os seus 
          aromas. O homem 
          toma por 
          justas umas coisas 
          e por injustas outras; para 
          o deus tudo 
          é belo, bom 
          e justo. (apud 
          GALIMBERTI, 2003) 
       
       
      Galimberti 
        lembrará da narrativa sagrada de Jó, o homem 
        justo que 
        se vê assolado por 
        diversas calamidades e lança diante da 
        face divina 
        seus lamentos 
        e angustiadas perguntas. É interessante 
        notar que suas perguntas 
        permanecem sem resposta, 
        ou melhor, 
        a ele é negada a legitimidade 
        de apresentar suas 
        questões. Conforme 
        apontado por Jack Milles (1997), 
        Deus responde a Jó com 
        o argumento - incontestável 
        - da sua soberania 
        e poder, tentando com 
        isso negacear 
        a pergunta que 
        havia sido feita, que 
        na verdade dizia respeito 
        à justiça divina, 
        a única das “propriedades” 
        divinas que estava em 
        questão. Parece que 
        a ‘personagem’ Deus 
        usa o truque, 
        bastante comum 
        entre os humanos, 
        de, quando sem 
        argumentos, tergiversar 
        e atacar o interlocutor, 
        pretendendo com isso 
        lançar uma nuvem 
        de fumaça que 
        o desoriente: 
        
        Onde estavas, quando 
          lancei os fundamentos da terra? 
          Dize-mo, se é que sabes tanto. Quem lhe fixou as dimensões 
          - se o sabes -, ou quem 
          estendeu sobre ela 
          a régua? Onde 
          se encaixam suas bases, 
          ou quem 
          assentou sua pedra 
          angular entre 
          as aclamações dos astros 
          da manhã e o aplauso 
          de todos os filhos 
          de Deus? Quem 
          fechou as portas do mar 
          quando irrompeu jorrando do seio materno; 
          quando lhe dei 
          nuvens como vestidos e espessas névoas 
          como cueiros; 
          quando lhe 
          impus os limites e lhe 
          firmei porta e ferrolhos, 
          [...] Entrastes pelas fontes 
          do mar, ou passeastes 
          pelo fundo 
          do abismo? Foram-te indicadas 
          as portas da morte, ou viste os porteiros 
          da terra da sombra? 
          Examinaste a extensão da terra? 
          Conta-me, se sabes tudo isso! (Livro de 
          Jó, 38: 4-18, Bíblia Sagrada, 1997) 
       
       
      Como se vê, a razão 
        humana não 
        pode pretender dar 
        conta da (des)razão 
        divina, e a comunicação 
        entre essas duas dimensões 
        - sagrada e humana 
        - será sempre tensa 
        e problemática. A violência 
        do sagrado, que 
        na verdade é a violência 
        da não-diferenciação (e, portanto, 
        não-civilização) será exteriorizada pelo homem e divinizada, manifestando-se de forma 
        exemplar na mitologia 
        grega, em 
        que os deuses 
        antropomorfizam desejos e sentimentos humanos 
        sem qualquer 
        exigência ética 
        ou moral. 
        Exteriorizar a violência 
        é salvaguardar a razão 
        humana, que 
        recua frente a violência 
        que vê 
        em si 
        mesma e da qual 
        se emancipou. Libertando-se do indiferenciado, a consciência 
        produz a diferença, que 
        é tanto constituída pelo 
        homem como 
        constituinte dele. Interditada, 
        a violência torna-se pharmakon, 
        o remédio/veneno 
        que cura 
        ou mata 
        dependendo das doses em que é ministrado. 
        Pondo-se à distância do sagrado, expulsando-se a si 
        mesmo do paraíso 
        mitológico do Éden, 
        o homem torna-se conhecedor 
        do bem e do mal, 
        torna-se ético, sem 
        que suas 
        ligações com 
        o divino sejam cortadas: 
        
        Maldito na comunidade 
          dos homens, o sagrado, 
          com toda 
          sua bagagem 
          de transgressões divinas, de 
          práticas sexuais 
          proibidas, de formas de violência e brutalidade, que toda a mitologia abriga 
          sem pudor 
          e sem reserva, 
          torna-se bendito quando 
          se transfere para o exterior. 
          Com essa expulsão 
          o homem é arrebatado à sua violência 
          que, divinizada, é posta 
          além do humano 
          como entidade 
          separada, como coisa 
          que diz respeito 
          aos deuses (GALIMBERT, 2003, 
          p. 17). 
       
       
      Se 
        a diferença é a condição 
        de possibilidade para a cultura 
        humana, o indiferenciado permanecerá 
        como aquele não-lugar 
        onde não 
        há distinção possível, 
        ou desejável. Diferente 
        dos homens, que 
        são ou 
        “isto” ou 
        “aquilo” e vivem sob 
        a imposição ética 
        de de-cidir (de-caedere, cortar) seu posicionamento enquanto 
        seres históricos 
        e contingentes, o sagrado 
        está além do bem 
        e do mal, abrangendo, como dirá Bataille, aspectos 
        fastos e nefastos (aqui 
        basta lembrar 
        os sacrifícios humanos 
        nas religiões arcaicas). 
        
        O 
          sagrado, portanto, 
          é aquele panorama 
          indistinto, aquela reserva de toda 
          diferença, aquela indecifrabilidade 
          que os homens, 
          depois que dela 
          se separaram, perceberam ser seu 
          horizonte de procedência 
          e a mantiveram distinta, fora da sua comunidade, no mundo 
          dos deuses, que 
          por isso 
          antecederam os homens. (...) 
          Freud deu a esse mundo 
          o nome de inconsciente, 
          e na escolha da palavra 
          já está o ponto 
          de vista de quem 
          observa de uma consciência alcançada 
          e pacificada. Os homens conheceram 
          o inconsciente na forma mais dramática 
          do divino e do sagrado 
          (GALIMBERT, 2003, p. 16). 
       
       
      Entretanto, se no Éden 
        a indistinção entre bem 
        e mal implicava uma impossibilidade 
        de de-cisão ética, significava 
        também ausência 
        de angústia e de sofrimento: é a infância da humanidade, 
        antes do corte 
        com a  
        Mãe amorosa, 
        que supre todas as necessidades 
        da criança (do homem) 
        em uma relação 
        simbiótica a que nada 
        falta, exceto 
        a própria falta 
        — a ausência, o desejo, 
        o pro-jeto. Instaurado o corte, e expulso do jardim, 
        resta ao homem 
        empreender a difícil 
        tarefa de domesticar 
        o inóspito sertão, 
        onde viver 
        será perigoso, porque 
        demandará sempre novos 
        cortes, novas 
        decisões que 
        implicarão um ethos que 
        precisará ser culturalmente legitimado. 
        
      2. Veredas 
      No 
        ano de 1995 a revista 
        italiana Liberal 
        publicou um diálogo 
        epistolar entre 
        o cardeal Carlo Maria Martini e 
        Umberto Eco, diálogo que foi posteriormente 
        publicado no livro de título Em que crêem os que 
        não crêem?, em 
        que também 
        está incluída uma posterior discussão 
        acerca dos temas 
        tratados por 
        outros seis 
        interlocutores, abrangendo dois jornalistas, dois filósofos e dois políticos. A quarta 
        missiva do Cardeal 
        Martini a Eco tinha 
        por título 
        a pergunta: “Onde o leigo encontra a luz 
        do bem?”. Nela, o Cardeal 
        Martini problematiza a possibilidade de uma ética 
        laica e não 
        apoiada em princípios 
        metafísicos universais, 
        na qual o homem 
        assumisse radicalmente a “responsabilidade” tanto 
        pela execução 
        das normas ético-morais quanto pela ‘construção’ e legitimação 
        das mesmas:  
        
        Tenho 
          dificuldades para 
          enxergar como 
          uma existência inspirada nestas 
          normas (altruísmo, 
          sinceridade, justiça, 
          solidariedade, perdão) 
          pode sustentar-se a longo prazo e em qualquer circunstância 
          se o valor absoluto 
          da norma moral 
          não está fundado 
          em princípios 
          metafísicos ou 
          em um 
          Deus pessoal 
          (ECO & MARTINI, 2003, p. 
          77).  
       
       
      As 
        respostas encenadas, tanto por Eco quanto pelos demais interlocutores, que 
        em menor 
        ou maior 
        grau discutirão a necessidade 
        de um diálogo 
        entre a ética 
        laica e a(s) religiosa(s), 
        são diversas, e bastante 
        interessantes. Entretanto, dada a limitação 
        de nosso estudo, 
        abordaremos a resposta de Eco (uma ética 
        que nasce quando 
        o “outro” entra em 
        cena) e a de Eugênio Scalfari (uma 
        ética “natural”, 
        “biológica”). O que pretendemos 
        é preparar o terreno para a entrada do jagunço Riobaldo, que 
        em sua 
        narrativa épica 
        irá encenar a angústia 
        do humano diante 
        da necessidade de tomar 
        decisões éticas, 
        porque livres. 
        Parece-nos que a própria 
        insistência de Riobaldo em “ter certeza” da não-existência do Diabo 
        e da não-validade do pacto feito 
        com o mesmo 
        é indicativo de que 
        ele reluta entre 
        o assumir definitivamente 
        a responsabilidade por 
        suas ações/decisões ético-morais e a tendência 
        a delegar a outro 
        - nesse caso ao Diabo 
        - tal responsabilidade.  
      Antes porém de ouvir 
        o jagunço Riobaldo, percorreremos 
        algumas veredas trilhadas por outros pensadores em 
        sua tentativa de compreender os fundamentos 
        para uma ética 
        e uma moral na sociedade 
        contemporânea. Inicialmente 
        é preciso ressaltar 
        que a perspectiva 
        que adotamos é a de uma ética laica e 
        historicizada, em outras palavras, sem 
        valores absolutos. 
        Desta forma, tomaremos a pergunta 
        inicial do Cardeal 
        Carlo Maria Martini - “onde o leigo encontra 
        a luz do bem?” 
        - como uma provocação 
        autêntica que 
        se propõe a qualquer investigação sobre 
        as possibilidades e limites de 
        uma ética laica. É 
        preciso lembrar que apenas o homem é um animal ético, 
        e portanto é o único 
        capaz de ações 
        que podem ser 
        consideradas “boas” ou “más” de 
        acordo com um código de valores vigente. Ao homem 
        humano foi dada, 
        como um 
        presente ou 
        condenação, a capacidade 
        de se “descolar” do momento 
        vivido e se projetar 
        no tempo (o passado 
        como memória 
        social e pessoal 
        acumulada, o futuro 
        como expectativa 
        compartilhada, o presente como 
        mediação entre ambos), 
        de modo que 
        ele age ‘sabendo’ que 
        ‘sabe que age’. Logo, 
        ele é moral. 
        Logo, pode ser 
        mau, de uma forma 
        que os tubarões 
        e as hienas selvagens 
        não o podem. Mas 
        também pode ser 
        “bom”, no sentido 
        em que 
        suas ações 
        sejam gratuitas, “descompromissadas” com 
        seus interesses 
        pessoais e imediatos.  
      Na 
        perspectiva de uma ética 
        laica Umberto Eco 
        propõe uma ética baseada 
        na consciência do outro, 
        pois entende que 
        é “o outro, 
        é seu olhar, 
        que nos define 
        e nos forma” 
        (p. 83), enfatizando com isso o aspecto sócio-cultural 
        da existência humana; afinal, 
        diz-nos Eco, “Mesmo 
        quem mata, 
        estupra, rouba, 
        espanca, o faz em momentos 
        excepcionais, e pelo 
        resto da vida 
        lá estará a mendigar 
        aprovação, amor, 
        respeito, elogios 
        de seus semelhantes” 
        (p. 83). Com isso 
        Eco nega 
        qualquer maniqueísmo ou 
        essencialismo, por afirmar 
        que o bem 
        e o mal são 
        conseqüências de ações 
        pragmáticas, historicamente inscritas, 
        e não entidades 
        metafísicas, de existência 
        independente a uma objetivação 
        humana. O imperativo 
        de uma ética do outro 
        nasce da constatação de que a necessidade 
        da con-vivência é aquilo que nos determina 
        enquanto espécie: 
        “poderíamos morrer ou 
        enlouquecer se vivêssemos em 
        uma comunidade na qual, 
        sistematicamente, todos tivessem 
        decidido não nos olhar jamais ou comporta-se 
        como se não 
        existíssemos” (p. 84). Para Eco, 
        a solidariedade para 
        com o outro 
        é uma possibilidade de dar sentido 
        à própria existência 
        que se abre para 
        aqueles que 
        nunca tiveram a experiência 
        da transcendência, ou a perderam,  pois na  “tentativa de garantir a alguém uma vida 
        vivível, mesmo depois 
        que ele 
        mesmo já 
        tenha desaparecido” (p. 85) o homem 
        poderá encontrar o sentimento 
        de eternidade que 
        geralmente é o que 
        o conduz à experiência religiosa.  
      Diante da contestação 
        de que não 
        são todos 
        que se preocupam em 
        dar sentido 
        à própria morte, 
        Eco argumenta 
        que, mesmo 
        entre aqueles 
        que crêem, existem os que não se questionam 
        quanto à validade 
        das suas ações 
        morais e éticas; 
        ainda que 
        esses sejam maioria, 
        isto não 
        traz problemas para 
        se fundamentar uma ética 
        da alteridade, pois 
        “a força de uma ética 
        julga-se através do comportamento 
        dos santos, não 
        dos insipientes cuius deus venter est” (p. 85). Eco 
        ainda destaca a necessidade 
        do diálogo entre 
        essas duas posturas éticas: 
        a religiosa e a laica, 
        e as ‘negociações’ de sentido aqui seriam similares 
        ao que ocorre entre 
        duas religiões, imbuídas do sentimento de mútuo 
        respeito: “E nos 
        conflitos de fé 
        devem prevalecer a Caridade 
        e a Prudência” (p. 90).  
      Um outro autor 
        que irá buscar 
        os fundamentos éticos 
        em uma espécie 
        de solidariedade entre 
        indivíduos sociais 
        é o filósofo Thomas Nagel (2001), que 
        a partir de uma brilhante argumentação acerca 
        da relatividade dos sistemas éticos e morais, 
        discute o que leva, 
        mesmo o mais 
        impiedoso criminoso, 
        a reconhecer que 
        determinadas ações são 
        “corretas” e outras “erradas”. Ainda 
        quando essa distinção 
        não sai do âmbito 
        teórico, e a prática 
        desse suposto “homem 
        mau” seja contraditória 
        com determinados 
        valores aceitos pelo 
        mesmo, ele 
        reconhece que algumas atitudes são ilegítimas, 
        pelo menos 
        no sentido kantiano de que tais ações não devam 
        ser universalizadas. Para 
        Nagel, a sociedade humana 
        se estrutura a partir 
        de um acordo 
        tácito que 
        manda que 
        cada indivíduo 
        se comprometa, pelo menos 
        em certa 
        medida, com 
        as demais.  
        
        É 
          claro que 
          a maioria das pessoas 
          se importa, em certa 
          medida, com 
          as demais. Mas, 
          se alguém não 
          se preocupa, não concluiríamos 
          que ele está isento da moral. 
          Uma pessoa que 
          mata outra 
          apenas para roubar-lhe a carteira, sem 
          se importar com 
          a vítima, não 
          está automaticamente justificada. O fato 
          de ela não 
          se importar não 
          legitima sua ação: 
          ela deveria se importar. 
          Mas por 
          que deveria se importar? 
          (2001, p. 66)  
       
       
      Dentre as tentativas 
        de responder essa pergunta, 
        Nagel aponta as seguintes: a) as motivações religiosas, que podem variar desde o “medo” de um castigo divino até o amor, que levaria 
        o fiel a se identificar 
        com um 
        Deus amoroso 
        e querer “imitá-lo”; b) a expectativa de que 
        se leve “vantagem” 
        na ação moral, 
        isto é, nesse argumento 
        a ação moral 
        será tomada pela 
        expectativa de que, 
        ao se agir de forma 
        correta com alguém se receba o mesmo 
        tipo de tratamento 
        “correto” não 
        apenas dele como 
        também de outros 
        circunvizinhos; c) o argumento racional da busca 
        de coerência entre 
        o que se espera 
        para si 
        e a forma de agir para 
        com o outro,(2) 
        classicamente ilustrado pela pergunta: “você gostaria que fizessem o mesmo 
        com você?”  
      Nagel 
        irá apontar problemas 
        em todos 
        esses argumentos 
        citados. Em relação 
        à motivação religiosa, 
        ele rebate 
        afirmando que os fundamentos 
        éticos não 
        podem atender apenas 
        àqueles que 
        crêem em um 
        Deus, afinal 
        esses não 
        são os únicos 
        que deverão se submeter 
        a tais princípios. 
        Mais ainda, 
        a proibição divina 
        acerca de algo 
        não faz dele algo 
        errado, apenas desaconselhável: 
        “Se Ele proibisse, por 
        exemplo, de calçar 
        a meia esquerda 
        antes da direita, 
        e o punisse por não 
        agir assim, 
        seria desaconselhável fazê-lo, mas 
        não seria errado” (p. 67). Uma outra 
        ressalva quanto a esse 
        tipo de motivação é que 
        o medo do castigo 
        ou a esperança 
        da recompensa não 
        parecem ser motivos 
        legítimos para 
        se fundamentar a moral.  
      O 
        segundo tipo 
        de motivação é a intenção de algum tipo de 
        recompensa que 
        possa se ter na prática 
        de uma ação moral 
        correta. A esse 
        respeito é bastante 
        esclarecedora a fala de uma das 
        personagens de Eça de Queiroz no romance 
        Os maias; é o avô de Carlos Maia, 
        que quando 
        questionado pela 
        sua decisão 
        de dar ao neto 
        uma educação laica 
        afirma: “Eu quero que 
        ele seja bom 
        por amor 
        à bondade, que 
        seja verdadeiro por 
        amor à verdade, 
        e justo por 
        amor à justiça, 
        e não por 
        medo do inferno 
        ou desejo 
        de alcançar um 
        paraíso extraterreno”.(3) 
        Ainda quanto 
        a essa motivação bancária, Nagel 
        argumenta que 
        essa “Não é uma razão 
        para fazer o que é certo se 
        os outros não 
        vão saber, 
        ou contra fazer o que é errado 
        se você pode escapar 
        impune (como atropelar alguém e fugir)” (p. 68).  
      O 
        terceiro tipo 
        de motivação, a busca de coerência entre 
        o que se deseja 
        para si 
        e o que se faz ao outro, 
        pressupõe uma razão para 
        que algo 
        que não 
        desejo que 
        seja feito a mim 
        (o exemplo que 
        o autor dá é o de alguém 
        que tem seu 
        guarda-chuva roubado em 
        um dia 
        de chuva) seja considerado “ruim” quando feito a qualquer 
        outra pessoa, 
        inclusive se eu 
        for o agente da ação.  
        
        É 
          uma questão de simples 
          coerência. Ao admitir 
          que outra 
          pessoa teria uma razão 
          para não 
          prejudicá-lo em circunstâncias 
          semelhantes e ao admitir 
          que a razão 
          que ela 
          teria é muito geral 
          e não se aplica somente 
          a você, ou 
          a ela, então por uma questão de coerência, você teria de admitir que a mesma razão se 
          aplica a você agora 
          (p. 70).  
       
       
      Muito embora contra 
        esse argumento 
        possam se levantar os que 
        digam que, apesar 
        de não gostarem de sofrer 
        uma ação ruim 
        (serem roubados, por exemplo), não 
        vêem nenhum motivo 
        especial para 
        que o autor 
        da ação (o ladrão) 
        considere os seus sentimentos. 
        Nagel argumenta que 
        a maior parte 
        dos indivíduos em 
        sociedade “pensaria que 
        seus interesses 
        e os danos que 
        possam sofrer dizem respeito 
        a todos, não 
        apenas a si 
        mesmas - o que dá aos outros uma razão 
        para se importarem com 
        eles também” (p. 70). A partir 
        disso o autor propõe que as bases da 
        moral estão em 
        uma espécie de sentimento 
        de “solidariedade” entre 
        os sujeitos sociais, 
        que, ainda 
        quando tomam atitudes 
        moralmente duvidosas, não pretendem que 
        tais ações 
        sejam legitimadas e universalizadas, vindo eles 
        a sofrer ações 
        semelhantes às que 
        praticaram. Essa última proposta de fundamento 
        para o agir ético-moral 
        se origina no desejo de Nagel demonstrar que a motivação 
        moral pode ser 
        desvinculada tanto das preocupações religiosas (e com 
        isso atingir 
        a todos, inclusive 
        os não-religiosos) quanto das motivações 
        baseadas em interesses 
        próprios (sentir-se bem 
        por ter 
        feito o que se 
        considera “correto” ou 
        não querer 
        sentir-se culpado por não tê-lo feito). 
      Mas muitos são 
        os problemas que 
        nem sequer 
        foram tocados: a relatividade da moral; 
        (4) a aceitação 
        (ou não) 
        e determinação de alguns 
        valores universais 
        (mas quais 
        seriam eles?); a organização, 
        em nível 
        hierárquico, de nosso comprometimento com 
        os demais (meus 
        interesses pessoais, 
        família, amigos, 
        comunidade próxima, 
        outros povos 
        e países, etc: em 
        que ordem 
        de importância devem ser 
        postos esses 
        “outros”?). De qualquer 
        forma, as conclusões 
        de Nagel, apesar de precisas, são pouco otimistas:  
        
        O 
          argumento moral 
          tenta apelar 
          para uma capacidade 
          de motivação imparcial que se supõe existir em todos nós. Infelizmente 
          ela pode estar 
          profundamente enterrada e, em alguns casos, pode simplesmente 
          não existir. 
          Em todo caso, precisa 
          competir com poderosos motivos 
          egoístas, e com outros 
          motivos pessoais 
          que talvez 
          não sejam tão 
          egoístas, em sua 
          luta para 
          controlar nosso comportamento. A dificuldade 
          de justificar a moral 
          não está em 
          haver apenas 
          um motivo humano, mas em haver muitos (p. 80).  
       
       
      Na 
        mesma linha 
        de Umberto Eco e Thomas Nagel, 
        o jornalista Eugênio Scalfari, fazendo coro 
        às discussões entre 
        Eco e o Cardeal 
        Matini, advoga que, “para 
        agir moralmente, 
        confiemos no instinto”, (5) 
        propondo uma moral que 
        tenha fundamento biológico, ao 
        mesmo tempo em que nega a possibilidade de “ancorar 
        a moral no tema 
        do Absoluto, seja esse 
        de natureza metafísica, 
        seja de natureza religiosa, 
        porque a imutabilidade 
        do Absoluto não 
        impediu que, na história, 
        a moral mudasse segundo 
        os tempos, os lugares 
        ou os contextos” 
        (GALIMBERTI, 2003, p. 352), conforme 
        nos alerta Galimberti, 
        ao comentar a proposta 
        de Eugênio Scalfari desenvolvida 
        com maior precisão na obra 
        Alla ricerca della morale perduta. 
        A moral instintiva 
        de Scalfari está ligada à constatação de que 
        existem dois fortes 
        instintos na espécie 
        humana: o da sobrevivência 
        do indivíduo e o da sobrevivência da espécie, 
        instinto que 
        Galimberti irá identificar com 
        a pulsão de vida (Eros) de Freud:  
        
        É 
          o instinto enraizado no indivíduo para garantir a sobrevivência 
          da espécie, simétrico ao instinto de conservação destinado 
          a assegurar a sobrevivência 
          do indivíduo. E, como 
          o instinto de conservação 
          não impede o indivíduo 
          de experimentar a autodestrutividade até o limite extremo do suicídio, assim o instinto 
          moral, preposto 
          à defesa da espécie, 
          não impede a imoralidade 
          até o limite 
          extremo da guerra. 
          Religião e razão 
          vêm depois para 
          delimitar, cada 
          uma com seus 
          argumentos, o espaço 
          da autodestrutividade individual 
          e da destruição da espécie, 
          e por isso 
          a discussão entre 
          razão e religião 
          é discussão sucessiva 
          ao fundamento da moral, 
          é discussão que 
          intervém para conter 
          ulteriormente os espaços 
          de destrutividade que fogem ao 
          instinto de conservação tanto do indivíduo 
          quanto da espécie 
          (GALIMBERTI, 2003, p. 353).  
       
       
      Scalfari 
        entende a moral como 
        um ultrapassar 
        do ponto de vista 
        do Eu, quando 
        o homem se põe “cheio 
        de amor próprio 
        em todos 
        os seus apetites 
        e em todas as suas 
        ações, acima 
        e fora de si” 
        (Apud GALIMBERTI, 2003, p. 356). 
        O agir moral pressupõe 
        um esquecimento, 
        ao menos temporário, 
        das próprias razões e necessidades, e um 
        lançar-se para o outro, 
        um comprometer-se com 
        as necessidades do não-Eu. Essa 
        moral instintiva 
        teria raízes biológicas, e não 
        culturais, muito embora 
        ela assuma configurações 
        distintas em distintas culturas, em práticas e valores 
        historicamente determinados e socialmente inscritos que 
        põem em descrédito 
        qualquer tentativa 
        de universalizar esses 
        mesmos valores. 
        Antes, é “Nesse instinto 
        de co-pertencer, que cada Eu reprime 
        no seu inconsciente, 
        (que) está a raiz 
        primeira de toda 
        moral” (IDEM, 
        p. 360).  
      Como se vê, pelos 
        argumentos acima 
        expostos, existem outras possibilidades 
        para se fundamentar o agir moral fora da motivação religiosa 
        ou de princípios 
        metafísicos universais, 
        tais como 
        o bem supremo 
        ou a razão 
        universal. Conceber 
        a moral como uma 
        realização humana 
        é aceitar o desafio 
        de não se ter balizas eternas para legitimar nossas ações, 
        exceto o nosso 
        frágil desejo 
        de bondade, beleza 
        e harmonia, que 
        infelizmente coexiste com o nosso “ruidoso desamor”.(6) 
        Mas, para 
        além de todo relativismo 
        que se possa apontar 
        na construção de uma ethos, concordamos com Soares e Vilhena quando 
        afirmam que:  
        
        Esta 
          constatação não 
          invalida que hoje 
          consideremos como mal 
          tudo o que 
          fragilize, atente, agrida, elimine, coloque em 
          risco qualquer 
          das dimensões constitutivas do 
          ser humano, dos demais seres, 
          da natureza em 
          geral, da vida, 
          do mundo (2003, p. 80).  
       
       
      Se 
        é possível identificar 
        o Mal com 
        a dor e o sofrimento e o bem 
        com a vida 
        (potencialidade de vida), o nosso 
        próprio entendimento 
        do mal se dá em 
        contraponto ao bem 
        que identificamos no existir: 
        e o mistério do mal 
        torna-se tão insondável 
        quanto o mistério 
        do bem. 
        
      3. Travessias  
      Viver é negócio muito 
        perigoso... diz-nos 
        Riobaldo ainda nas primeiras páginas da narrativa 
        épica que 
        irá protagonizar. Esse 
        é o mote que 
        ele irá repetir por todo o romance, reiterando no leitor 
        a suspeita de que, 
        mais do que 
        as aparências possam inicialmente fazer acreditar, existe entre 
        ele e Riobaldo uma cumplicidade 
        dada pelo 
        consenso quanto 
        a essa afirmativa; afinal, 
        também a nós 
        está posta a angústia 
        do jagunço, pois, 
        se ‘Tudo é e não 
        é’, resta ao homem 
        humano fazer 
        com que certas coisas 
        sejam (legitimando-as) e outras não 
        sejam (relegando-as à impossibilidade do não 
        ser). As escolhas 
        de Riobaldo são sempre 
        éticas, porque 
        ele é bastante 
        lúcido em 
        relação aos limites 
        (e deslimites) do humano em fundamentar esse estar-no-mundo compartilhado, bem 
        como da impossibilidade de não exercer seu arbítrio.(7) 
        Daí que ele 
        estará sempre, ao contrário 
        dos demais jagunços, 
        inclusive Diadorim, permeado de dúvidas 
        e crises de consciência 
        quanto à legitimidade 
        das próprias ações.  
      A 
        questão proposta 
        por Riobaldo - a existência 
        do diabo e a possibilidade de ter 
        feito um 
        pacto com 
        o mesmo - é uma questão ética, essa é a nossa 
        hipótese. A existência 
        do Mal - assim 
        mesmo, em 
        maiúscula - é inegável, 
        tanto na ficção 
        roseana quanto na hiper-realidade 
        das sociedades contemporâneas, e as reflexões 
        do jagunço Riobaldo sobre 
        essa questão surpreendem pela 
        argúcia e perspicácia, 
        pois ele 
        avança resolutamente 
        em meio 
        ao grande sertão(8) 
        inóspito e trágico 
        como um 
        cão farejador(9) 
        que, perplexo, 
        quer entender 
        a substância das próprias ações, 
        separar, qual 
        joio do trigo, 
        o bem e o mal 
        que tão 
        bem se misturaram na sua 
        própria existência. 
        A constatação de que 
        “.... Querer o bem 
        com demais força, 
        de incerto jeito, pode já estar sendo se querendo 
        o mal, por 
        principiar” (ROSA, 
        2001, p. 32), acompanha a narrativa 
        que Riobaldo fará ao visitante-leitor; ele narra para entender a matéria vertente (p.116) da vida, 
        aquilo que 
        move os homens (que 
        a ele mesmo 
        moveu) para “dar 
        corpo ao suceder” das boas 
        e das más ações.  
      De 
        onde vem o mal, 
        entendido aqui 
        como ação 
        objetiva que viola a liberdade 
        do outro e causa 
        sofrimento e desespero; como explicar que tanto a beleza quanto a dor venham das mãos 
        do mesmo homem 
        humano; como 
        entender que 
        bem e mal se alternem 
        qual duas faces 
        de uma mesma moeda 
        em um 
        jogo perverso 
        do qual todos 
        participamos? Ou, em 
        outros termos, 
        francamente “paulinos”,(10) 
        porque, mesmo 
        querendo o bem (pelo 
        menos para si) o homem realiza 
        o mal? Ainda, 
        porque o mal, 
        sinônimo de sofrimento e destruição, parece ter tão maior força que o bem, identificado no romance 
        com a força 
        criadora do amor (“Qualquer 
        amor já 
        é um descanso 
        na loucura”)? Essas são 
        questões que 
        perpassam todo o romance, 
        enquanto nosso 
        jagunço-filósofo tenta ordenar 
        o caos reinante 
        em um 
        mundo onde 
        o bem e o mal 
        estão misturados, por isso a conclusão 
        óbvia é que 
        “todo-o-mundo é louco”, cabendo 
        à religião dar o arcabouço ontológico 
        capaz de ‘desendoidecer’ os homens 
        (p. 92), re-ligando-os a uma parte 
        alienada de si: 
        o Bem - assim 
        mesmo, em 
        maiúsculo.  
      Riobaldo 
        é, na travessia dessas veredas existenciais, um 
        propositor de perplexidades, ensinando-nos “outras maiores 
        perguntas” que 
        abrangem temas tão 
        vastos quanto 
        o amor, o erotismo, 
        a amizade, a morte, 
        Deus, o Diabo, 
        a beleza, o papel 
        da ficção na vida 
        do não-especialista, a riqueza infinita 
        da linguagem poética, 
        etc. Como o disse Adélia Prado, 
        “Tudo é bíblias. Tudo 
        é grande sertão” 
        (1986), verso que 
        sintetiza a inesgotável capacidade dessas duas escrituras 
        de propor, de forma 
        plural e multifacetada, as mais 
        diversas questões sobre 
        a existência humana. 
        Entretanto, nos 
        detemos nesse pequeno ensaio nas considerações 
        de Riobaldo acerca do bem 
        e do mal, tentando entender, 
        através dos fatos 
        narrados e das suas reflexões, 
        um pouco 
        do ‘perigo’ que 
        a vida, fora 
        do Éden, implica.  
      Percorrendo 
        as trilhas desse sertão 
        tentamos pensar o problema 
        do bem e do mal 
        a partir de uma perspectiva 
        ética, ou, 
        nas palavras de Paul 
        Ricouer, buscando a convergência entre pensamento, 
        ação (moral 
        e política) e transformação emocional dos sentimentos. 
        Entenda-se aqui ética 
        como a construção 
        de ethos: identidades, 
        culturas e ações 
        pragmáticas que 
        abrangem os diversos âmbitos da vida 
        humana em 
        sociedade. Nesse sentido, 
        a ética não 
        é algo que 
        seja reservado à ação 
        dos santos ou 
        à reflexão dos filósofos: todo o homem humano é ético, 
        porque a ele 
        se demanda, cotidianamente, 
        posicionamentos concretos 
        e historicamente determinados, 
        ele deve “agir”, e ao agir torna legítima (ou não) esta ou aquela 
        ação.  
      O 
        romance Grande sertão: 
        veredas inicia com 
        uma dúvida - “E me 
        inventei o gosto de especular 
        idéia. O diabo 
        existe e não existe?” (p. 26) - 
        e termina com uma provável 
        certeza: “Nonada. O diabo 
        não há! É o que 
        eu digo, se for .... Existe é o 
        homem humano. 
        Travessia” (p. 624). Entre 
        as duas afirmativas uma travessia: o velho 
        jagunço Riobaldo, antigo 
        Tatarana e Urutu-Branco, divide 
        com o leitor suas preciosas lembranças(11) 
        na tentativa de tornar 
        entendível a substância da vida, 
        clareando aqueles pontos 
        obscuros dessa vida 
        movente que vai “em 
        erros, como 
        um relato sem 
        pés nem 
        cabeça, por 
        falta de sisudez 
        e alegria” (p. 261). Riobaldo conta e pede ao leitor 
        que ponha o ponto 
        (p. 546) nessa trágica história de amor 
        e ódio onde 
        o bem e o mal 
        estão de tal modo 
        misturados que não 
        é possível perceber 
        onde um 
        começa e o outro 
        acaba.  
      Diadorim 
        - o nome 
        perpetual (p. 387) - é um bom exemplo para ilustrar essa caótica mistura 
        de enganos e verdades 
        que permeiam os sertões, 
        onde “tudo é e não 
        é”. Diadorim: menino valente, sensível 
        apreciador das belezas 
        sertanejas, jagunço vingador, amigo 
        fiel, enamorado ciumentíssimo, 
        donzela guerreira 
        - corpo branco 
        de mulher repisado de sangue... quantas verdades 
        se escondem em uma só 
        existência. As personas se sobrepõem 
        e Diadorim-Reinaldo-menino não 
        pode ser compreendido em 
        apenas um desses 
        papéis: sua identidade 
        polifônica e andrógena é um desafio posto a Riobaldo, 
        como o enigma 
        da esfinge: “Decifra-me ou devoro-te”.  
      A 
        Riobaldo incomoda esse caos assombroso, 
        ele sente necessidade 
        de ter “todos 
        pastos demarcados”, para 
        que “o bom 
        seja bom e o rúim ruím, que dum lado esteja 
        o preto e do outro 
        o branco, que 
        o feio fique bem 
        apartado do bonito e a alegria longe 
        da tristeza” (p. 234). Mas 
        como ter 
        certezas, ainda 
        que provisórias, nesse mundo onde as 
        coisas se misturam imprudentemente? 
        Enquanto a maior 
        parte dos homens 
        vive das convicções alheias, Riobaldo 
        diverge do senso comum 
        por ser 
        homem ‘forro’ 
        (p. 34), que tem dificuldades 
        em aceitar 
        verdades prontas e domesticadas: “Eu 
        quase que 
        nada não 
        sei. Mas desconfio de muita coisa.” (p. 31)  
      E 
        é esse desconfiar 
        que caracteriza Riobaldo como um homem duvidoso. 
        Nesse sentido ele 
        se apresenta como figura 
        simbólica para caracterizar 
        um humano 
        que se localiza ‘fora 
        do Éden’ e precisa 
        se posicionar eticamente em 
        um mundo 
        do qual ele 
        próprio desconfia da fragilidade 
        dos valores. Viver 
        é perigoso porque 
        a vida não 
        é entendível, e os acontecimentos 
        da própria existência 
        parecem não compor 
        um todo 
        orgânico e integrado, é o que nos diz Riobaldo 
        em diferentes 
        momentos da narrativa: 
        
        Em desde aquele tempo, 
          eu já achava que a vida da 
          gente vai em erros, como um relato sem 
          pés nem cabeça, por falta de sisudez 
          e alegria. Vida 
          devia de ser como 
          na sala do teatro, 
          cada um 
          inteiro fazendo com 
          forte gostos 
          seu papel, 
          desempenho. Era 
          o que eu 
          acho, é o que eu 
          achava (p. 261). 
        A 
          lembrança da vida 
          da gente se guarda 
          em trechos 
          diversos, cada 
          um com 
          seu signo 
          e sentimento, uns com 
          os outros acho que 
          nem não 
          misturam. Contar seguido, alinhavado, só mesmo sendo 
          as coisas de rasa 
          importância. De cada 
          vivimento que eu 
          real tive, de alegria 
          forte ou 
          pesar, cada 
          vez daquela hoje 
          vejo que era 
          como se fosse diferente 
          pessoa. Sucedido desgovernado. Assim 
          eu acho, assim 
          é que eu 
          conto (p. 115). 
        Triste é a vida 
          do jagunço - dirá o senhor. 
          Ah! Fico me rindo. O senhor 
          nem não 
          diga nada. “Vida” 
          é noção que 
          a gente completa 
          seguida assim, 
          mas só 
          por lei 
          de uma idéia falsa. 
          Cada dia 
          é um dia 
          (p. 414). 
       
       
      A 
        cosmogonia de Riobaldo é interessante: muito 
        embora seja impossível 
        negar a doideira 
        da vida, ele 
        acredita em um 
        modelo ético-moral em 
        que cada 
        ação esteja perfeitamente 
        conformada com as demais, 
        e na existência de uma bússola que aponte 
        para um 
        rumo certo, 
        um norte 
        a partir do qual o homem humano possa 
        direcionar seus 
        passos e saber 
        certamente do bem 
        e do mal que 
        lhe rodeia. 
        Para cada 
        conjunto de possibilidades, apenas 
        uma ação correta, 
        comparando a vida a um 
        grande teatro 
        onde cada 
        um deve cumprir 
        o papel a ele 
        designado com empenho 
        e escrúpulos. Entretanto, 
        quais personagens 
        cujas falas foram trocadas, e desandam 
        loucamente a representar 
        a ‘fala’ uns dos outros, 
        fazendo ruir o próprio 
        tecido da vida, 
        os ‘atores’  não conseguem 
        encontrar a pauta 
        adequada para cada 
        dia e a vida 
        continua ininteligível: 
        
        Só o que eu quis, todo 
          o tempo, o que 
          eu pelejei para 
          achar, era 
          uma só coisa 
          - a inteira - cujo 
          significado e vislumbrado dela 
          eu vejo que sempre tive. A que 
          era: que 
          existe uma receita, a norma dum caminho 
          certo, estreito, 
          de cada uma pessoa 
          viver - e essa pauta 
          cada um 
          tem - mas a gente 
          mesmo, no comum, 
          não sabe que, 
          sozinho, por 
          si, alguém 
          ia poder encontrar 
          e saber? Mas, esse norteado, tem. Tem que 
          ter. Se não, 
          a vida de todos 
          ficava sendo sempre o confuso 
          dessa doideira que 
          é. E que: para 
          cada dia, 
          e cada hora, 
          só uma ação 
          possível da gente 
          é que consegue ser 
          a certa. Aquilo 
          está no encoberto; mas, 
          fora dessa conseqüência, 
          tudo o que 
          fizer, ou deixar 
          de fazer, fica sendo falso, 
          e é o errado. Ah, porque aquela 
          outra é a lei, 
          escondida e vivível mas não achável, do verdadeiro 
          viver: que 
          para cada pessoa, sua continuação, já 
          foi projetada, como o que se põe, em 
          teatro, para cada representador - sua 
          parte, que 
          antes já 
          foi inventada, num papel... (p. 500) 
       
       
      Alguns eventos do 
        romance são exemplares para mostrar as dúvidas 
        ético-morais que perseguem Riobaldo. 
        Nesse sentido pode-se citar 
        alguns, dos muitos 
        momentos em 
        que o questionamento 
        ético aparece: a primeira 
        luta que 
        Riobaldo enfrentou no bando de 
        Titão Passos, em lealdade 
        a Joca Ramiro e contra Zé Bebelo, aquele 
        que havia sido protetor 
        e aluno de Riobaldo; o julgamento 
        de Zé Bebelo; o quase 
        estupro da mocinha 
        neta de Seo Ornelas; a tripla tentação para matar Constâncio Alves, com quem o bando de Riobaldo havia topado no Chapéu-do-Boi; após ter poupado a vida de Constâncio Alves, os apertos 
        de Riobaldo para ‘driblar’ 
        a promessa que 
        ele mesmo 
        havia feito de matar 
        o primeiro ser vivente que aparecesse 
        em sua 
        frente; o desejo 
        de matar o “lázaro” 
        entocaiado na árvore (pps: 285, 
        472-473, 485, 491, 508-510). 
      Tomemos 
        como exemplo 
        a situação da tentação 
        de Riobaldo para matar 
        Constâncio Alves e, posteriormente, 
        o ‘homem da égua’ 
        com a cachorrinha, que 
        ficou “por preencher 
        o lugar que 
        devia de ser o do nhô Constâncio Alves” (p. 
        489). A situação é bastante 
        delicada para 
        Riobaldo, que se sentindo tentado 
        pelo diabo para 
        matar o desconhecido 
        viajante que 
        topara com seu 
        bando pelos 
        ermos dos gerais, 
        arquiteta um 
        ardil para sair 
        da armadilha preparada 
        pelo demo: 
        ele decide fazer uma pergunta, e caso o homem respondesse errado seria morto 
        sem mais 
        demoras ou 
        piedades. O que 
        Riobaldo pretende com esse ‘acordo’, 
        feito em silêncio em seu íntimo, é 
        que a morte de nhô Constâncio 
        Alves não fosse mais exclusiva 
        responsabilidade sua, 
        ação arbitrária 
        movida pela mão 
        do diabo, e sim 
        fruto da ‘sorte’ 
        de uma má resposta dada 
        pela vítima. 
        Mas Constâncio Alves responde adequadamente, 
        e Riobaldo, “para se pacificar 
        e enterter o Outro” promete: “- 
        Perdoei este; mas, o primeiro que se surgir, destas estradas, 
        paga!” (p. 489) E logo 
        aparece, no horizonte do bando, um pobre miserável 
        com sua 
        égua e uma cachorrinha. Ainda que “a vontade de matar tinha se acabado”, 
        Riobaldo está preso pela 
        palavra empenhada a si 
        mesmo, ao diabo 
        e a seus homens: 
        “Porque eu 
        não podia voltar 
        atrás na promessa 
        da minha palavra 
        declarada, que meus 
        cabras haviam escutado e glosado. 
        Ah, o demo bem me conhecia! Devia de estar 
        no astuto, ali 
        por perto, 
        do meu querer 
        de crime!” (p. 490) 
      Riobaldo, 
        o Urutu-Branco, dono da vida de muitos, 
        sabe que aquela morte 
        é sem-sentido, e logo encontra meios 
        de salvar sua 
        honra sem 
        cometer essa injustiça, 
        afirmando que quem 
        deveria de morrer era 
        a cachorrinha, e não o homem, pois fora ela a que primeiro avistou. Mas também a cachorrinha 
        que “prezava correta, latindo tão 
        relatado” (p. 493) ele não queria 
        matar; não, foi a égua que viu primeiro e é ela que deve morrer, decide. 
        No momento em 
        que a égua 
        se encontra desapeada do dono e pronta 
        para o abate, Riobaldo 
        se sente tomado pela vontade de chorar, fazendo 
        coro ao homem 
        da cachorrinha, desgostoso de si 
        (p. 495), mas decidido 
        a dar um 
        fim razoável àquela desastrada história 
        por ele 
        mesmo começada. Quem 
        o impede é Fafafa, que se oferece 
        para pagar o resgate 
        pelo animal, 
        considerado inocente dos pecados humanos. 
        À sugestão do companheiro 
        de armas Riobaldo reage com alívio, pois entende que “do 
        Demo era que eles discordavam” 
        (p. 495), e finaliza a má história 
        afirmando que o dito 
        ficava pelo não 
        dito, pois 
        a promessa feita fora para o primeiro 
        homem que 
        visse e não para 
        uma cachorrinha ou uma égua. 
      Ao 
        fim da narrativa, 
        Riobaldo compartilha com o ouvinte-leitor 
        a seguinte dúvida: “Será - mal 
        pergunto ao senhor - que 
        viajei este sertão 
        com o Outro 
        sendo meu sócio?” 
        (p. 497) Como entender 
        esse duelo 
        com o diabo, 
        no qual a vontade 
        humana torna-se refém 
        de pensamentos arquitetados nos sombrios da 
        alma, sob 
        a influência dos maus 
        humores do maligno? 
        Penso que 
        o diabo deva 
        ser entendido, 
        nas travessias de Riobaldo, como uma exteriorização do próprio 
        mal que 
        permanece latente em 
        cada um 
        de nós, um 
        mal contra 
        o qual precisamos reivindicar 
        nossa ‘posse’, 
        afastando-nos dele em busca de perspectivas 
        menos egocêntricas e autocentralizadas. 
        Riobaldo luta contra 
        o mal que 
        sente em si 
        - sócio indesejável 
        -, e busca fundamentar 
        sua identidade 
        no pertencimento a um Bem 
        superior a sua 
        fraca vontade: “Mas a minha alma tem de ser de Deus: se não como é que ela podia ser minha?” 
        (p. 501) Se Deus é o Ser, 
        e o diabo o não-ser, a ausência, 
        a falta, e a carência, 
        uma resposta possível 
        ao mal é uma radical 
        proximidade com 
        o bem, sem 
        nunca se esquecer que “essa alma 
        (vontade) é minha”, 
        pois não 
        há como fugir das responsabilidades pelas próprias ações. 
      Segundo apontado por 
        Leonardo Almeida (2004), o romance 
        opera um interessante deslocamento 
        na ‘geografia’ imaginária 
        do inferno, em 
        uma “longa trajetória 
        do inferno das regiões 
        do submundo terreno 
        para a luz 
        do dia”. O diabo 
        não habita apenas 
        os recantos das Veredas-Mortas 
        - onde o pacto se deu - ou o Liso do Sussuarão 
        - lugar maldito 
        de impossível travessia 
        que apenas 
        será ‘domado’ após 
        o pacto de Riobaldo com 
        o diabo -, ele 
        anda entre 
        os homens, conforme 
        a epígrafe que 
        abre o romance: “o diabo na rua, 
        no meio do redemoinho”. 
        Essa desterritorialização do inferno 
        parece indicar uma “falta 
        de fronteiras entre 
        o bem e o mal” 
        (ALMEIDA, 2004) que implode os 
        limites de uma concepção 
        maniqueísta de mundo 
        para localizar o 
        titânico duelo 
        na frágil matéria 
        humana: “Um 
        homem, coisa 
        fraca em si, macia mesmo, aos pulos 
        de vida e morte, 
        no meio das duras pedras” (ROSA, 
        p.268). 
      O 
        perigo da vida 
        está em que 
        cada ação 
        traz em si 
        uma série de conseqüências 
        imprevisíveis, e não 
        raramente indesejáveis; 
        em muitos 
        momentos Riobaldo se sente “propriedade” de forças 
        alheias, ao mesmo tempo 
        em que 
        precisa tomar 
        decisões individuais 
        acerca desse ou 
        daquele acontecimento, decisões que pretende 
        que sejam suas, 
        apenas suas. 
        Riobaldo quer o exílio 
        da liberdade: “Não 
        sou do demo e não 
        sou de Deus!” (p. 510), dirá ele, raivoso, a Diadorim, quando 
        o amigo tenta 
        impedi-lo de matar o lázaro; 
        e antes, no momento 
        do pacto: “Eu 
        queria ser mais 
        do que eu” 
        (p. 437). Se decidir é arriscado, 
        pois implica na possibilidade do mal, ainda assim é a mais 
        humana de todas as características, 
        tão humana 
        que se torna distintiva 
        entre os homens 
        e os deuses: apenas 
        os homens podem escolher 
        o mal, aos deuses, 
        pelo menos 
        ao deus cristão, 
        é vedada a opção pela 
        transgressão, pelo 
        arrependimento, pelo 
        erro, conforme 
        se vê na promessa 
        bíblica: “Deus não 
        é um homem 
        para mentir, e nem filho de homem para se arrepender” (Números 
        23:19, in: Bíblia Sagrada, 1997). 
      Dissemos 
        que o romance 
        se inicia com uma dúvida 
        e termina com uma provável 
        certeza, a de que 
        o diabo não 
        existe, existe apenas o homem humano, 
        e o bem e o mal 
        que d(n)ele 
        se engendram. Mas tal 
        conclusão não 
        minimiza a perplexidade de Riobaldo: ainda 
        que o diabo 
        não exista sua 
        alma foi vendida, em 
        pacto firmado nas Veredas-Mortas. Alguma coisa ali aconteceu, 
        é o que nos 
        diz Riobaldo: 
      
      
        Então, se não 
          vendi? Digo ao senhor: meu 
          medo é esse. 
          Todos não vendem? 
          Digo ao senhor: o diabo 
          não existe, não 
          há, e a ele vendi a alma.... 
          Meu medo 
          é este. A quem vendi? 
          Medo meu 
          é este, meu 
          senhor: então, 
          a alma, a gente 
          vende, só, é sem 
          nenhum comprador? 
          (p. 501) 
       
      
      Entre Deus e o Diabo 
        Riobaldo teima insistentemente 
        em afirmar-se livre, 
        sedento de possuir-se, tanto 
        que, por 
        ocasião do pacto, 
        ele dirá: “E o que 
        era que 
        eu queria? Ah, acho que 
        não queria mesmo 
        nada, de tanto 
        que queria só 
        tudo. Uma coisa, 
        a coisa, esta coisa: 
        eu somente queria era - ficar sendo!” (p. 436) Uma possível 
        interpretação para 
        o périplo de Riobaldo é entendê-lo 
        enquanto tentativa de uma 
        definitiva emancipação 
        do humano, que 
        se arrisca, longe do Éden, a uma existência 
        sem balizas 
        confortáveis ou 
        metadiscursos consoladores. Entretanto, 
        se pensarmos que o próprio 
        Riobaldo caracterizou-se como um homem a quem apenas dois destinos eram possíveis - chefe de jagunços ou padre religioso 
        -, isto é, personagens 
        que se encontram nos 
        extremos do bem 
        e do mal, precisamos admitir 
        que essa liberdade 
        absoluta - a ‘maioridade 
        ética’ - é uma utopia 
        que apenas 
        se manifesta em 
        momentos pontuais, 
        e que, mesmo 
        longe do Éden, 
        o humano continua a sonhar 
        com o fim 
        das dicotomias e com 
        um paraíso 
        onde o Bem 
        e o Mal sejam novamente 
        irreconhecíveis, porque 
        inexistentes. 
        
      NOTAS 
      (*) 
        Mestre em 
        Estudos de Literatura 
        pela PUC-Rio e Doutoranda 
        em Ciência 
        da Literatura pela 
        UFRJ.  
      (1) É interessante notar 
        que a etimologia 
        da palavra projeto 
        indica um “lançar-se para 
        o futuro”, enfatizando esse mesmo aspecto de risco que tencionamos destacar como próprio da ação humana. 
      (2) Esse 
        argumento lembra o ditado, 
        de cunho francamente 
        bíblico, “não faças ao outro 
        o que não 
        queres que 
        ele faça a ti”. 
      (3) A citação 
        é feita de memória, 
        preservando apenas o seu sentido geral. 
      (4) 
        Diz Nagel: “Muitas coisas que você provavelmente considera 
        erradas foram aceitas por grandes grupos 
        de pessoas no passado: 
        escravidão, servidão, 
        sacrifício humano, 
        segregação social, negação 
        de liberdade política 
        e religiosa, sistemas 
        de castas hereditárias. E provavelmente, 
        algumas coisas que 
        hoje você 
        julga serem certas serão 
        consideradas erradas pelas sociedades 
        futuras.” Op. Cit., p. 76. 
      (5) 
        Esse é o título 
        do pequeno ensaio 
        do autor que 
        consta na obra Em que crêem os que não crêem?  
        Op.Cit. 
      (6) 
        Remeto-me ao verso de Adelia Prado: “Houve, é certo, 
        sob nossos 
        telhados,/ ruidoso 
        desamor,/ fel 
        em gotas 
        de silêncio segregado”, verso do poema 
        Apelação, de PRADO, Adélia. Bagagem, 1986. 
      (7) 
        Estou fazendo referência aqui à definição 
        sartreana de liberdade: “a liberdade é um 
        exílio” porque 
        ontológica, isto 
        é, ao homem é impossível 
        recusar o agir ético, e apenas 
        a existência de má fé 
        pode iludir-se com o consolo de que 
        foram outros — as circunstâncias 
        históricas e sociais, as contingências, as inclinações 
        psicológicas irrecusáveis, etc 
        — que decidiram por 
        ela. Parece-me que 
        Riobaldo, segundo a terminologia 
        de Sartre, assume uma existência 
        autêntica, por 
        saber-se livre e não 
        recusar a liberdade. 
      (8) 
        Nesse ponto,  
        o sertão está sendo entendido como 
        metáfora da própria 
        existência humana. 
      (9) 
        “O senhor concedendo eu 
        digo: para pensar 
        longe sou cão 
        mestre — o senhor solte a 
        minha frente uma 
        idéia ligeira, 
        e eu rastreio essa por 
        fundo de todos 
        os matos, amém!”. 
        ROSA, Guimarães João. Grande sertão: 
        veredas, 2001, p. 31. 
      (10) 
        É Paulo quem nos 
        diz: “Porque não 
        faço o bem que 
        quero, mas o mal 
        que não 
        quero esse faço”. Romanos 
        7:19, in: Biblia Sagrada, 1997. 
      (11) 
        Para se entender 
        o valor que Riobaldo 
        a memória veja-se o que ele nos diz: “Não 
        gosto de me esquecer de coisa nenhuma. Esquecer para mim, é quase igual a perder dinheiro”. ROSA, 2001, 
        p. 18. 
        
      REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS  
      ALMEIDA, 
        Leonardo Vieira. Uma construção 
        do Inferno: de Homero a Guimarães 
        Rosa. Comunicação 
        apresentada no I Simpósio de Estudos Helênicos 
        do Instituto de Letras 
        da UERJ, novembro 2004. Inédito.  
      BÍBLIA 
        SAGRADA. Revista 
        e corrigida. São Paulo: Editora Vida, 
        1997.  
      ECO, Umberto; MARTINI, Carlo Maria. Em que crêem os que não crêem? 
        Rio de Janeiro: 
        Record, 2000.  
      GALIMBERTI, 
        Umberto. Rastros do sagrado: 
        o cristianismo e a dessacralização 
        do sagrado. São 
        Paulo: Paulus, 2003.  
      MILES, Jack. Deus: 
        uma biografia. Rio 
        de Janeiro: Companhia 
        das Letras, 1997.  
      NAGEL, 
        Thomas. Certo e errado. In: Uma breve 
        introdução à filosofia. 
        São Paulo: Martins Fontes, 
        2001.  
      PAZ, Octávio. Signos em 
        rotação. Rio de Janeiro: Perspectiva, 
        2003.  
      PRADO, Adélia. Bagagem. 
        Rio de Janeiro: 
        Guanabara, 1986.  
      RICOUER, 
        Paul. O mal: um 
        desafio à filosofia 
        e à teologia. São 
        Paulo: Editora Papirus, 1983.  
      ROSA, Guimarães João. Grande sertão: veredas. 
        Rio de Janeiro: 
        Nova Fronteira, 
        2001.  
      SOARES, Afonso M. A.; VILHENA, Maria Angela. O mal: 
        como explicá-lo? São Paulo: Paulus, 2003. 
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