Duas histórias na "Biblioteca de Babel"

Ana Paula Grillo El-Jaick(*)

O escritor argentino Ricardo Piglia teve seu textoTeses sobre o conto” publicado originalmente em seu livro O Laboratório do Escritor, mas posteriormente também tornado público no jornal Folha de São Paulo, no cadernoMais!”, de trinta de dezembro de 2001. Dividido em onze breves parágrafos, “Teses sobre o conto começa com uma passagem registrada no caderno de notas de Tchecov: “Um homem, em Monte Carlo, vai ao cassino, ganha um milhão, volta para casa, se suicida”. Tchecov não chegou a desenvolver futuramente esse argumento, o que não impediu Piglia de pegá-lo como mote para defender sua primeira tese sobre o conto: “Um conto sempre conta duas histórias”.

Ao longo dos parágrafos, Piglia vai reforçando sua tese à medida que a compara com formas-padrão de contos de todos os tempos como, por exemplo, o conto clássico (Poe, Quiroga). Isso até chegar ao quinto parágrafo e lançar sua segunda tese: “A história secreta é a chave da forma do conto e suas variantes”. Piglia então analisa a versão moderna do conto (que vem de Tchecov, Katherine Mansfield, Sherwood Anderson, o Joyce de Dublinenses) para concluir que, nesse caso, as duas histórias são contadas como se fossem uma . Segundo ele, no conto moderno o mais importante nunca se conta: a história secreta se constitui pelo não dito.

Com isso, Piglia desfia uma série de contos hipotéticos a partir do argumento tchecoviano. Assim, ele imagina a versão que Hemingway escreveria para aquele enredo, simula o provável conto kafkiano e, por fim, diz como seria o tratamento que Borges daria a esse motivo jogo-suicídio. E Piglia defende o seguinte ponto de vista com relação a Borges:

Para Borges a história 1 é um gênero e a história 2 sempre a mesma. Para atenuar ou dissimular a monotonia essencial dessa história secreta, Borges recorre às variantes narrativas que os gêneros lhe oferecem. Todos os contos de Borges são construídos com esse procedimento.

A história visível, o jogo no caso de Tchecov, seria contada por Borges segundo os estereótipos (levemente parodiados) de uma tradição ou de um gênero. Uma partida num armazém, na planície entrerriana, contada por um velho soldado da cavalaria de Urquiza, amigo de Hilario Ascasubi. A narração do suicídio seria uma história construída com a duplicidade e a condensação da vida de um homem numa cena ou ato único que define seu destino.

É partindo dessa afirmação de Piglia que pretendo analisar o notório conto borgeano “A Biblioteca de Babel(1). Antes, provavelmente, o leitor vai me cobrar um posicionamento teórico: estou concordando com Piglia no sentido de que um conto sempre conta duas histórias, e que a história secreta é a chave da forma do conto e suas variantes? Minha resposta é a seguinte. Nestas linhas, vou lançar mão das teses de Piglia mais como uma espécie de instrumento do que propriamente como uma teoria do conto. Isso quer dizer que, a meu ver, caso se queira ver sempre num conto duas histórias como dois planos que se intercruzam e que se constituem mutuamente, nada haverá que impeça o leitor. Por outro lado, não descarto possibilidades outras de se ler contos. Aliás, outro famoso conto de Borges, “O Jardim de Caminhos que se Bifurcam”(2), parece apontar para uma estrada bem diferente: esse conto trata de um livro como se ele fosse labirinto de infinitas estradas e bifurcações – o que leva o leitor a ver não o livro em questão no conto, mas, metonimicamente, todos os livros nos levando a infindas práticas de leitura. Dessa forma, não pretendo investigar a veracidade da declaração de Piglia, ou seja, não é meu objetivo estabelecer esse critério de leitura como universal e necessário a todos os contos. Não quero ratificar uma teoria literária nem defender que toda experiência estética com contos deve se dar de tal e tal maneira, buscando-se sempre dois caminhos que se bifurcam. Não busco reconhecer duas histórias como forma de provar a veridicidade de Piglia, tratando de permanecer irremediavelmente presa às malhas de suas teses. Desejo tão somente me apropriar de suas idéias como uma espécie de guia de viagem no labiríntico ato de leitura.

1.

A “Biblioteca de Babel”, na sua história 1 (como define Piglia), poderia ser lida como uma grande consideração acerca da própria leitura. A Biblioteca, assim, na concretude de suas incontáveis galerias hexagonais que, diz-se, inspirou a construção da biblioteca de Umberto Eco no seu romance O Nome da Rosa (inclusive o bibliotecário se chamava Jorge, numa provável referência, ou deferência, a esse outro autor argentino) –, seria significativa. Dessa forma, não é à toa que Borges escolhe o cenário de uma Biblioteca para sua história mais palpável. Os livros parecem esconder uma verdade que todos procuram – e delegável aos letrados, espécie de escolhidos. Leitores ávidos por adquirir conhecimento se lançam no universo dos livros, no mundo da escrita, à procura de sentidos. O livro se torna objeto fascinante, mítico – e de circulação restrita; um bem que é dado a conhecer a poucos. Ele guarda uma aura sacralizadora que legitima o conteúdo que veicula.

A Biblioteca de Borges é imensa. Ela é toda esférica, mas sua esfericidade é inalcançável. Seu centro pode ser qualquer um dos inumeráveis hexágonos. A algumas milhas à direita da galeria em que se encontra o narrador fala-se, de acordo com ele, um dialeto; e a noventa andares mais acima, uma língua incompreensível. Em Babel, como se sabe, falam-se vários idiomas: português, iídiche, um dialeto samoiedo-lituano do guarani, árabe clássico etc. As paredes da Biblioteca de Babel, da altura de um bibliotecário normal, são cobertas de livros (exceto em dois lados) em vinte estantes, distribuídas elegantemente em cinco longas prateleiras por lado. A luminosidade incessante e insuficiente das duas lâmpadas transversais em cada hexágono tem de ser aproveitada ao máximo, no esforço de ler linhas e linhas. Seus sanitários minúsculos à direita e à esquerda do saguão em que uma das frentes livres desemboca – para se seguir outra galeria, porque a Biblioteca é interminável – podem ser usados para dormir em e para satisfazer as necessidades fecais na sufocante escassez de espaço (afinal, por que se perder área para descanso e latrinas, se há tantos livros a decifrar?). No saguão um espelho em que o visitante pode se autocontemplar, além de ver a fantástica biblioteca duplicar-se vertiginosamente – daí a dúvida: a Biblioteca é, de fato, infinita, ou sua duplicação é apenas ilusória? O viajante pode se apoiar no corrimão antigo da escada espiral, subir seus degraus infatigáveis e ouvir o ranger da madeira estalando.

Entretanto, lembra o narrador, não se pode esquecer que essas mesmas escadas testemunharam disputas entre os viajantes, epidemias. Presenciaram seitas blasfemas, fanáticos Purificadores, superstições, deuses, cultos, suicidas, investigadores oficiais – os inquisidores que folheiam livros em busca de palavras infames, as autoridades que exibem suas credenciais para os funcionários.  Houve quem quisesse destruir livros considerados inúteis e que, de fato, condenaram prateleiras inteiras, o que acarretou na perda de milhões de livros.

Percorrendo as galerias, subindo e descendo as escadas, decifradores e bibliotecários tentam reputar o sentido dos livros. Informa-nos o narrador que os homens da Biblioteca (bibliotecários imperfeitos) podem ser fruto do acaso ou de algum gênio maligno. Eles viajam em busca de um ou mais livros. Houve um tempo em que procuravam as Vindicações: livros proféticos, que justificavam os atos de cada homem da Biblioteca e guardavam segredos sobre o futuro de cada um.  Da mesma forma, também teve o tempo de se peregrinar em busca de um livro que fosse a síntese de todos os outros, o livro total – e também à procura do bibliotecário que o tinha consultado. Os viajantes têm ao alcance da mão, em cada prateleira, trinta e dois livros de igual formato. Eles podem folhear as quatrocentas e dez páginas que cada livro possui, e ler as quarenta linhas cada linha com umas oitenta letras pretas – de cada uma dessas páginas. Não dois livros iguais. Os homens da Biblioteca também podem ler as letras no dorso de cada livro, apesar de que elas nada digam sobre o que se encontrará dentro dele – seus tomos são enigmáticos. A natureza de quase todos os livros é confusa, caótica. Um livro muito consultado na Biblioteca é um labirinto de letras, em cuja penúltima página se Ó tempo tuas pirâmides. Enfim, o que são cacofonias insensatas, confusões verbais e incoerências que, por muito tempo, pensou-se corresponder a línguas de um passado remoto. O pai do narrador viu um livro que repetia malevolamente, da primeira à última linha, as letras MCV. Alguns homens da Biblioteca tentaram interpretar esse livro da seguinte maneira: cada letra influiria na subseqüente, de forma que o valor de MCV numa linha de determinada página não seria o mesmo em outra linha de outra página todavia, ao que parece, essa tese não teve crédito. Outra explicação mais bem sucedida foi a de que se tratava de uma escrita em código teoria essa universalmente aceita, ainda que num sentido diferente daquele de seus formuladores. O narrador nos conta da existência de um bibliotecário genial que, a partir de um livro desordenado como os demais, mas com quase duas folhas de linhas idênticas, conseguiu descobrir a lei fundamental da Biblioteca: ele observou que todos os livros possuíam os mesmos elementos – o espaço, o ponto, a vírgula, e as vinte e duas letras do alfabeto. Dessa forma ele fixou em vinte e cinco o número de símbolos ortográficos – naturais. Os inventores da escrita os imitaram. A partir disso, esse bibliotecário genial concluiu que a Biblioteca é completa, isto é, que ela possui todas as combinações possíveis dos vinte e cinco símbolos naturais – e, portanto, contém tudo o que pode ser expresso:

Tudo: a história minuciosa do futuro, as autobiografias dos arcanjos, o catálogo fiel da Biblioteca, milhares e milhares de catálogos falsos, a demonstração da falácia do catálogo verdadeiro, o evangelho gnóstico de Basílides, o comentário desse evangelho, o comentário do comentário desse evangelho, a relação verídica de tua morte, a versão de cada livro em todas as línguas, as intercalações de cada livro em todos os livros(3).

De acordo com o narrador, a única coisa que a Biblioteca não expressa é um absurdo total. Tal descoberta pareceu ser a solução para todo e qualquer problema (e também revelou a existência das Vindicações): porque se a Biblioteca guarda a resolução de todos os problemas, ela também justificaria sua própria existência.

A antiguidade da Biblioteca é percebida na sua história de há séculos contada pelo narrador – o que confirma sua inscrição no tempo e no espaço. Inclusive os mistérios básicos de seus homens são a origem da Biblioteca e do tempo. É possível que tais enigmas possam ser explicados por palavras e, nesse caso, a Biblioteca seria capaz até de produzir o idioma (seu vocabulário e sua gramática) que fosse preciso para fornecer tais respostas. O narrador acredita que a Biblioteca deve ser criação de um deus seus livros, com suas letras orgânicas, perfeitas, podem ser obra divina.

Esse que nos fala sobre a Biblioteca administra muitos hexágonos e consumiu seus anos de vida na busca pelo livro que guarda o resumo de todos os demais. Agora ele está velho, com medo, sozinho, mas com uma suspeita: a de que os homens da Biblioteca sucumbirão e a Biblioteca permanecerá – infinita. Nosso bibliotecário-narrador ousa arriscar, inclusive, uma solução elegante para os antigos mistérios da Biblioteca: A Biblioteca é ilimitada e periódica. 

2. 

A variante fundamental que Borges introduziu na história do conto consistiu em fazer da construção cifrada da história 2 o tema principal. Borges narra as manobras de alguém que constrói perversamente uma trama secreta com os materiais de uma história visível. (...) Borges (como Poe, como Kafka) sabia transformar em argumento os problemas da forma de narrar.

Piglia, Teses sobre o conto


O narrador
começa a “Biblioteca de Babel com o que pode ser uma pista para a história 2 (nos termos de Piglia): “O universo (que outros chamam a Biblioteca)”. Assim, será indo no encalço dessa orientação que buscarei analisar a trama que se esconde por detrás da história visível desse conto. E ao trazer Babel para a esfera do universo, (e por que não dizer, do real), parece que temos logo uma proposição universalmente aceita: a de que a escrita é um código. Código que, é claro, o narrador utiliza – até porque é a escrita que o faz narrador. E como a escrita é um código, ele pergunta, à certa altura: “Tu, que me lês, estás seguro de entender minha linguagem?”. A linguagem, esse sistema a ser decifrado, mantém no universo o interesse de investigadores oficiais e inquisidores que buscam o que não pode ser dito. Ela também sofre com o zelo de fanáticos religiosos que querem eliminar obras inúteis. Tanto uns quanto outros, de fato, invadem e condenam: a eles se deve a perda de milhares de exemplares.

No universo, que outros chamam de Biblioteca, os enigmas fundamentais da condição humana são: a origem do universo e do tempo. O próprio universo é indefinido, quiçá infinito. Isso porque o espelho que duplica fielmente o que é aparente cria uma primeira controvérsia: ou bem o universo é infinito, ou bem temos uma promessa de infinitude através dessa representação ilusória. Entretanto, assegura-nos o narrador, o próprio universo cria respostas para seus mistérios, à medida que é autojustificável – ele também nos garante em outro momento que “a Biblioteca é interminável”. O certo é que o universo é invariável, idêntico. Seus habitantes peregrinam em busca de seu próprio mundoo livro dos livros até não poder mais.

Repetindo sua mesma história 2, como quer Piglia, Borges faz com que as explicações dadas para se justificar a existência da Biblioteca apareçam como metáforas das várias tentativas de se teorizar o que é o universo pelas mais diferentes correntes filosóficas. É dessa forma que se pode identificar alguns intérpretes dos livros como heraclitianos. De acordo com esses, a mesma série de letras, quando repetida em outro lugar, tem seu valor alterado, não podendo nunca ser a mesma série de letras. o esclarecimento dos idealistas diz que a Biblioteca tem necessariamente aquela forma de um espaço único, que existe em si e por si mesmo. As salas da Biblioteca, assim, não poderiam deixar de ser hexagonais: sequer conceber uma sala triangular ou pentagonal seria um absurdo. A forma hexagonal é uma verdade necessária em todas as Bibliotecas possíveis, e não haveria como ser diferente. Há também aqueles de cega, que adoram e idolatram o que desconhecem – os místicos que, segundo o narrador, são aqueles das palavras enigmáticas, vagas. Eles tencionam, através de uma elevação metafísica, que lhes seja revelada uma câmara circular, diferente daquelas hexagonais. Nessa câmara circular haveria um grande livro circular com lombada contínua, e que seguiria toda volta das paredes. Enfim, eles procuram Deus. De fato, há a idéia de um Deus que encerra tudo em si mesmo. Peregrinos trilham os mais diversos rumos em busca daquele que diz ter vislumbrado Sua palavra. Contudo, como encontrar a verdade ainda é uma questão. Vidas inteiras são consumidas nessa busca por aquilo que contenha todos os segredos revelados, todas as verdades do mundo. Porque, afinal, o universo deve ter alguma razão de ser, de existir. Embora, por outro lado, haja seitas e blasfêmias, como chama o narrador, que pregam a idéia de uma verdade inalcançável. Também homens oriundos de uma região agreste que repudiam a superstição dos outros que procuram sentidos nos livros. Eles equiparam essa superstição de haver significado nos livros à procura de sentidos nos sonhos e nas linhas da mão. Segundo esses homens, a vida, em si mesma, não tem sentido. Além desses, há os incrédulos, que asseguram ser o absurdo o normal no universo, enquanto o razoável é a exceção. A par de tudo isso, os gênios descobrem leis fundamentais do universo. Segundo um deles, os elementos são sempre os mesmos, apesar de que o produto nunca é idêntico um ao outro. O universo é perfeito, completo. Ele possui, em si, passado, presente e futuro; a falsidade e a verdade. O universo se basta e se explica.

O ditame clássico, que o narrador prefere repetir, é o de que o universo é circular. Há ainda uma proposição verdadeira que ele insiste em lembrar seu leitor: o universo é eterno – disso não pode haver dúvida. O homem, por seu turno, é um ser imperfeito (o que pode ser comprovado em tudo o que produz) que danifica o universo. Mas o universo, que é perfeito e misterioso, em que tudo é orgânico e simétrico, pode ser divino. Para o narrador, o universo inclui todas as estruturas possíveis, mas não o Absurdo. Não faz parte do Absurdo, ou seja, não é ilógico pensar que o universo é infinito ele é ilimitado e periódico. A periodicidade do universo, de acordo com o narrador, repete a Ordem. É essa, por fim, sua esperança elegante para os mistérios do mundo.


Notas
 

(*) Doutoranda em Estudos da Linguagem na PUC-Rio/CAPES 

(1) BORGES, Jorge Luis. Ficções. 3ª ed. Tradução de Carlos Nejar. Porto Alegre: Ed. Globo, 1982.

(2) Idem.

(3) Idem, p.65.

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