Nas Entrelinhas de Ana Cristina

Annita Costa Malufe(*)

Há pouco mais de vinte anos, precisamente em 29 de outubro de 1983, a poeta carioca Ana Cristina Cesar decidiu colocar um último ponto final: cessava uma produção que ainda assistia a seu início. Não se trata de saber se a morte de Ana Cristina, aos 31 anos de idade, ajudou a eternizar sua poesia e a fazer de A Teus Pés, único livro seu publicado em vida, um sucesso de crítica e público. Mas talvez seja um pretexto para se lembrar de uma das poucas poesias sobreviventes daquela que foi a chamada “poesia marginal” ou “poesia de mimeógrafo” dos anos 70. Tanto que, até hoje, Ana C. – como costumava assinar – é referência obrigatória quando se trata de poesia brasileira contemporânea.

Buscar em um poema a intimidade daquele que o escreveu: esta espécie de armadilha pode facilmente abocanhar quem lê os textos de Ana Cristina Cesar. Temas da intimidade, conversa ao pé-de-ouvido, poemas em forma de carta, de diário, tom de confissão entre amigas. Foi a própria Ana C. quem cultivou a curiosidade do leitor com esta escrita que parece esconder segredos íntimos de mulher. Nada inocente: ela dizia mesmo brincar propositadamente com o desejo de identificação romântica, tentação em que tantos costumam cair.

Para fugir desta arapuca, a receita de Ana C. é “ser iniciado em literatura”. O que, para ela, consiste antes em “sacar” de fato o que é poesia, do que em colecionar títulos de autores consagrados na lista pessoal dos “já lidos”: “Você pode ter lido um ou dois [poetas] e já sacar o que é poesia: que a poesia é um tipo de loucura qualquer. É uma linguagem que te pira um pouco, que meio te tira do eixo”,(1) diz-nos Ana C. em um depoimento editado em Escritos no Rio e reeditado em Crítica e Tradução.

Para quem conhece seus poemas, os ensaios críticos são uma boa oportunidade para entender melhor como ler aqueles textos que muita gente, à primeira vista, acaba tendo como estranhos, quase herméticos, não-senso etc. E a crítica especializada não está fora disto. Há tanto quem acredite que os textos de Ana C. não passam de fluxo natural do inconsciente – à maneira surrealista – quanto quem a leia como uma poeta simbolista, procurando significados ocultos, estrategicamente codificados por trás das palavras.

O fato é que, provavelmente as melhores pistas para lermos sua poesia já tenham sido dadas pela própria poeta. Ana C. pensou sua poesia, pensou literatura, fez crítica, estudou tradução e, como podemos notar no conjunto de seus escritos, isso tudo participava, e muito, da sua criação literária. Como negligenciar isto? T. S. Eliot acreditava que “a maior cota do labor de um autor ao executar a sua obra é um trabalho crítico”: (2) ao criar, o poeta coloca em ação sua habilidade crítica, avalia seus procedimentos, estabelece parâmetros, faz comparações, aciona seu conhecimento histórico, literário. Este exercício crítico era consciente para Ana C., que obteve o grau de Master of Arts na Inglaterra em um curso sobre tradução literária, na Universidade de Essex, onde viu a oportunidade de “enfim estudar teoria”, como podemos ler em uma de suas cartas publicadas em Correspondência Incompleta.

Muitos dos ensaios que encontramos em Crítica e Tradução fazem parte do período de estadia na Inglaterra – textos que a princípio formaram o livro Escritos na Inglaterra – nos quais vemos o tempo todo a preocupação mais ampla com a literatura guiar a questão da tradução. Em seu mestrado, também publicado aqui, Ana C. traduziu um conto de Katherine Mansfield, “Bliss”, para o português e compôs uma dissertação a partir das notas de rodapé da tradução. Podemos ler ainda alguns poemas traduzidos por ela, de poetas que pareciam estar entre seus preferidos, como Emily Dickinson, Marianne Moore, Sylvia Plath.

Mas talvez estejam nos Escritos no Rio os artigos que mostram mais diretamente a visão de literatura de que Ana C. estava imbuída. Nestes textos, que saíram em jornais e suplementos literários versando sobre os mais diferentes temas, além do depoimento de Ana C. a um curso sobre literatura feminina e uma monografia para disciplina da UFRJ, podemos colher algumas pistas de sua concepção de poesia. Aqui lembramos, novamente com Eliot, que “aquilo que ele [o poeta] escreve a respeito de poesia deve ser avaliado em relação com a poesia que ele escreve”.(3) Caminho de mão dupla, afinal: a poesia de Ana C. também não deveria ser avaliada tendo em vista aquilo que ela refletiu sobre poesia?


a biblioteca


O pensamento de Ana Cristina sobre a literatura parece inserir-se em um contexto filosófico bastante contemporâneo. Sobretudo naquele que atualmente poderíamos associar, depois de Nietzsche, ao filósofo francês Gilles Deleuze que, com sua filosofia da diferença, teria proposto uma inversão do platonismo: como deixarmos de pensar o mundo em termos de modelo e cópia, como concebermos que, afinal, não há original algum e de que estamos sempre em pleno devir? Por trás de tudo o que podemos ler nos ensaios de Ana C., mas também em suas cartas, encontramos um preceito básico: o texto literário é sempre, enfaticamente, construção, e construção de realidade. Ou seja, ele não é representação de uma realidade outra – seja ela do exterior, do mundo, das coisas, ou mesmo do interior daquele que o escreveu – mas constitui em si uma realidade. Não há modelo e cópia, não há representação de um ideal, mas apresentação de um real inédito.

Ao falar de Guimarães Rosa, por exemplo, ela enfatiza que seu interesse literário não está na transposição de uma realidade para o papel, como um espelho, mas sim, na sua interferência neste reflexo: o que importa é tomar o mundo como matéria-prima para, a partir daí, criar, construir algo artisticamente. Assim, a literatura consiste na construção de um universo próprio, auto-suficiente. E este mundo criado pelo texto literário não quer ser espelho do mundo em que vivemos, ser seu reflexo ou relato.

É daí que Ana C. enfatiza a impossibilidade de se chegar à verdade de um texto, tocando em um tema caro à filosofia desde Nietzsche: a inexistência de uma verdade absoluta, ou a constatação da parcialidade de toda e qualquer verdade. Ana C. salienta que, afinal, nunca se chega à verdade de um autor, ou à verdade de o que quer que seja, uma vez que não existe essa tal verdade universal, como um segredo oculto a ser descortinado. Segundo ela, ainda se houvesse “A Verdade”, do autor, do mundo, das coisas, não seria função do texto escondê-la ou revelá-la. Em suas palavras: “Ao produzir literatura, eu não faço rasgos de verdade, eu tenho uma opção pela construção, ou melhor, não consigo transmitir para você uma verdade acerca de minha subjetividade. É uma impossibilidade até”.(4)

Essa questão é tematizada mais de uma vez nos textos críticos de Ana C. que, conforme podemos observar em sua biblioteca particular, que se encontra em seu arquivo pessoal sob responsabilidade do Instituto Moreira Salles do Rio de Janeiro desde 1999, era leitora de autores contemporâneos que compartilham de uma concepção da arte enquanto não-representação. Além de diversos livros de Octavio Paz, alguns de Jorge Luis Borges, podemos encontrar – lidas e com anotações da poeta – obras de Michel Foucault, Gilles Deleuze, Roland Barthes, Antonin Artaud, Jacques Derrida. É claro que, estes, em meio a diversos outros autores também bastante conhecidos por sua geração, como Maiakovski, Mallarmé, T. S. Eliot, Ezra Pound, Augusto e Haroldo de Campos, Mário e Oswald de Andrade e alguns estruturalistas. No entanto, em relação aos estruturalistas, não podemos deixar de lado a passagem de uma carta sua a uma amiga: “Arrumei a estante, reclassifiquei os livros (...) Nessa, descobri que tenho uma quantidade enorme de livros inúteis (quase todos os estruturalistas, que formam uma boa prateleira, poderiam ser dispensados; os de lingüística também)”.(5)


intimidade construída


A nova poesia de meados dos anos 1970, a poesia marginal de que, de certa forma, fez parte, teria nascido dentro desta concepção, do texto literário como construção e não representação, ao seu ver. Uma poesia mais próxima da alegoria do que do símbolo, literatura que “sabe que não está simbolizando alguma inefável verdade sobre o mundo, que não está abarcando um símbolo inexprimível”.(6) Ana C. afirma que, nesta poesia, não há “saudosismo”, não há mais a preocupação com uma distância irrecuperável entre linguagem e real. Desde Walt Whitman esta teria deixado de ser uma questão para a poesia contemporânea: “Poeticamente a questão da representação como distanciamento é abolida na euforia revolucionária da poética de Whitman”, poética que “rompe a metafísica que impõe e chora a distância entre o mundo e a linguagem”,(7) argumenta ela em outro artigo.

É como se não houvesse mais lamento por esta distância, ou desejo de reunificação, reunião através da poesia, como um “retorno ao útero” tal qual quereriam os poetas metafísicos. Pelo contrário: essa distância é incorporada ao poema, ao seu tom, ao seu tema, e é tomada com alegria, despojamento. Desse modo, o poema deixa de buscar a fidelidade com o vivido, não almeja imitar o mundo, trazê-lo para a linguagem, e assim: “O poeta pode representar, fingir descaradamente; não tem mais um compromisso com uma Verdade, não se propõe a simbolizar um inefável e preexistente sentir ou existir”.(8) O texto assume-se enquanto produtor de realidade, criador – de povos, culturas, vidas – e não apenas criatura: “o poema é uma produção, um modo de produzir significação mediante o fingimento poético, e não uma nobre tradução do indizível”.(9)

Com este pano de fundo, podemos tranqüilamente afirmar que, para Ana C., literatura não é relato de memória, seja ela vista ou sentida, não é diário de bordo. Tomemos emprestada uma frase de Gilles Deleuze: “Escrever não é contar suas lembranças, suas viagens, seus amores e lutos, seus sonhos e fantasmas”.(10) Para ele a fabulação criadora não se nutre de recordações e ausências, mas antes, de um excesso que nos faz justamente ultrapassar as situações vividas, ir além dos fatos. É o que nos diz Ana C.: embora seja possível partirmos de uma emoção, um sentimento ou mesmo um fato ocorrido, essa vivência só é apropriada pelo escritor enquanto uma espécie de material bruto, inicial, sobre o qual será necessário trabalhar, empregando o que ela chama de “olhar estetizante”.

Assim, nessa operação obrigatória para se produzir o texto literário, ela acredita que não há como o poeta ser fiel ao sentimento inicial, ainda se assim o desejasse. Aquele que pretende representar sentimentos, emoções, ambientes e acontecimentos externos terá de fazer uma escolha: se almejar ser fiel terá de abdicar à literatura, para fazer literatura terá de renunciar à fidelidade aos fatos. Não há saída: “Se você conseguir contar a tua história pessoal e virar literatura, não é mais a tua história pessoal, já mudou”,(11) diz ela. Ou seja, as obsessões pessoais do autor participam sim da criação na arte, mas somente enquanto matéria-prima a ser transformada – juntamente com outras coisas como livros que o autor leu, coisas que ele viu, ouviu, viveu.

É desse modo que, ficcionando correspondências e diários, Ana C. “brinca diretamente com o que chama de ‘obscurantismo biografílico’”, como remarca Flora Süssekind no ensaio sobre a poeta Até Segunda Ordem Não me Risque Nada. Ana C. deixa claro que os diários – que compõem praticamente inteiro seu livro Luvas de Pelica e parte do seu Cenas de Abril – não são seus, mas sim diários inventados, que forjam uma intimidade: “Se você vai ler esse diário fingido, você não encontra intimidade aí. Escapa”. E continua: “(...) a intimidade... não é comunicável literariamente. A subjetividade, o íntimo, o que a gente chama de subjetivo não se coloca na literatura”.(12)


o autor dança


No entanto, não seria suficiente explicarmos a estratégia composicional de Ana C. através da idéia dos heterônimos, o fingimento de que fala Fernando Pessoa. Aí ainda poderíamos supor a existência de uma “verdadeira” intimidade para além das personas criadas pelo poeta. Seria mais efetivo refletirmos que, ao dizer: “Em todo texto, o autor morre, o autor dança, e isso é que dá literatura”,(13) Ana C. aproxima-se de uma concepção de literatura que nos remete a toda uma corrente de pensadores contemporâneos para quem a literatura não é o lugar da afirmação, mas sim, da desconstrução do sujeito. Com a idéia da morte do autor, Ana C. conversa com correntes que poderíamos chamar de “mais radicais” da crítica literária, onde podemos destacar Barthes, mas principalmente Derrida, que também foi um dos autores lidos por ela.

Para Foucault, um dos autores que interessaram bastante a Ana C., aqui está uma das revoluções trazidas por Nietzsche: trata-se, enfim, da possibilidade de se pensar o ser da linguagem, este que “só aparece para si mesmo com o desaparecimento do sujeito”.(14) A partir daí, é como se fosse inaugurada a idéia de se encarar a linguagem como um ser independente, uma construção que exclui o sujeito, que coloca em xeque a evidência do eu. Na literatura, esta seria a novidade incorporada por Mallarmé. Segundo Foucault, a partir de sua poética, temos a fundação de “um dos princípios éticos da escrita contemporânea”, esta indiferença em relação ao autor produzindo uma escrita que se basta em si mesma. Igualmente para Barthes, a escrita de Mallarmé inaugura o esforço em suprimir o autor em proveito da escrita. Quem fala é a linguagem, e não este alguém anterior a ela; é a linguagem que fala por si só, e não importa de onde ela vem, mas sim, para onde ela vai.

Destacamos que não se trata de confidência quando Ana C. escreve seus diários ou monta suas cartas fictícias, ou seus poemas-carta, mas sim de construção, elaboração estética. Mas, para além disto, vale remarcar que, nesta operação de interferência no mundo, não se trata de um sujeito que se afirma através da linguagem, mas antes de um sujeito que se desfaz para fazer surgir a linguagem. Ou ainda, de um sujeito que, já de antemão, sabe da impossibilidade de sua captação, ou captura, pela linguagem. Devemos convocar aqui Maurice Blanchot, para quem o escritor não pode afirmar-se na linguagem, mesmo que assim o acredite ou deseje. Na escrita, ele é arrastado para fora de si e aí encerrado. A literatura só nasce desta renúncia do sujeito, devendo ser uma verdadeira quebra do vínculo que une a palavra ao eu. Temos assim, a poesia como um discurso impessoal, descolado da subjetividade do autor: “A fala poética deixa de ser fala de uma pessoa: nela, ninguém fala e o que fala não é ninguém, mas parece que somente a fala ‘se fala’”.(15)


o não-dito


Com este pano de fundo, algumas coisas podem mudar na leitura dos poemas de Ana Cristina. Acreditamos que estas idéias são fundamentais ao nos depararmos com os textos fragmentários e disparatados de A Teus Pés, seu último livro, e único publicado por editora – reunindo os três anteriores de edição independente: Luvas de Pelica, Correspondência Completa e Cenas de Abril. Deslocar a leitura para uma concepção do texto como não-representação é importante ao lermos poemas que imitam cartas (como é o caso do Correspondência Completa) ou diários (em Luvas de Pelica e Cenas de Abril). Mas se torna ainda mais premente quando nos defrontamos com a desmontagem desses gêneros operada em A Teus Pés. Ali, além de utilizar formas que nos remetem a essas escritas “íntimas”, Ana C. ousa mais, fragmenta mais, como se fizesse uma verdadeira colagem cifrada de frases vindas de diversos lugares.

O que temos no fim são textos aparentemente desconexos, cheios de saltos, de versos que parecem não se encaixar. E muita coisa ainda com cara de diário, de correspondência. Resultado: a impressão de que há segredos escondidos nas entrelinhas, símbolos a serem decifrados, silêncios que suspendem o entendimento e aguçam a curiosidade: o que ela está querendo dizer? Entretanto, parece não ser bem essa a pergunta a ser feita. Segundo Ana C., não se trata de fazer uma literatura de entrelinhas. Esses vazios, saltos, silêncios, espaços em branco seriam o que ela define como o “não-dito” do texto literário, algo que difere bastante do que usualmente se entende por “entrelinha”. Acompanhemos Ana C.:

“A entrelinha quer dizer: tem aqui escrito uma coisa, tem aqui escrito outra, e o autor está insinuando uma terceira. Não tem insinuação nenhuma, não. (...) Eu acho que, no meu texto e acho que em poesia, em geral, não existe entrelinha. (...) Existe a linha mesmo, o verso mesmo. O que é uma entrelinha? Você está buscando o quê? O que não está ali?”.(16)

Não. Não busquemos o que está oculto no papel, no sentido de um significado fixo, escondido entre as linhas, codificado. O poeta não busca colocar símbolos no papel, como sinais nas placas de trânsito: uma coisa substituindo outra, uma coisa remetendo a outra especificamente determinada. Na poesia, tal qual a concebe Ana C., não há simbologia alguma, os elementos utilizados nos textos não estão ocupando “lugar de” ou representando algo. Questionada por alguém da platéia, no debate editado em Crítica e Tradução, a respeito do que ela quis dizer com a palavra “pato” em um de seus poemas, Ana Cristina enfatiza: “Pato, por acaso, é um significante que puxa muitos outros (...) Quanto mais puxar melhor (...) Não vou dizer nunca para você o que, para mim, o símbolo do pato significa...”.(17)

Tal é a natureza do que nos diz Ana C.: não busquem “o que eu quis dizer”, o que escondi por trás das palavras. Não há uma tradução para, por exemplo, a palavra “contramão” no poema/prosa “Mocidade independente”: “(...) Voei para cima: é agora, coração, no carro em fogo pelos ares, sem uma graça atravessando o estado de São Paulo, de madrugada, por você, e furiosa: é agora, nesta contramão”.(18) O que seriam interpretações que procurariam um significado para o termo, como por exemplo aludi-lo ao movimento subversivo, ou crer que ela insinuou que a mocidade anda na contramão, etc. As interpretações psicológicas, que procuram no texto ocultamentos da intimidade do autor, iriam em direção semelhante a esta.

No lugar disso, o ato de leitura consistiria basicamente no que ela chama de “puxar o significante”, ou seja, ir fazendo associações as mais diversas e inesperadas a cada vez: “Ler é meio puxar fios, e não decifrar”.(19) As palavras devem ser encaradas como significantes nômades, que migram a cada leitura, ou seja, significantes com significados múltiplos, móveis, abertos. Para ela a linguagem poética não pretendia “dizer algo”, fazer literatura não é comunicar, não consiste em passar uma informação, transmitir palavras de ordem. “Tem um lado grilante da poesia. Ela não comunica”,(20) não do modo que nossa fala ou que o jornal comunicam. Eis um ponto central para Ana C.: a poesia revela mas não comunica.

Assim, no lugar de uma literatura de entrelinhas, Ana C. acredita no não-dito da literatura, um não-dito pertencente à própria materialidade textual. Enquanto a entrelinha remete a uma insinuação escondida, um “querer dizer sem dizer”, trazendo embutida uma concepção da poesia como veículo de comunicação (de significados, sentimentos, segredos), o não-dito é aquele que pertence ao próprio texto, e não remete a algum objeto externo originário. Por isso, trata-se de um não-dito enquanto questão literária, que não se confunde com intenções pessoais do autor, nem segredos de sua intimidade, nem tampouco com a clausura da simbologia. Seria antes um não-dito da liberdade: justamente esses espaços em branco, esses silêncios em torno das palavras, que as dotam de infinitos “fios”, aqueles que cada leitor irá puxar a cada vez. As brechas que arejam o verso e abrem-no à possibilidade das imprevistas associações. E afinal, completa Ana C.: “Toda literatura tem esse lado de: ‘ainda há uma palavra não falada’ (...) sempre haverá alguma coisa que escapa”.(21)

Agradecimentos ao Instituto Moreira Salles do Rio de Janeiro, em especial à Elisabeth Pessoa e sua equipe de pesquisadoras que possibilitaram o acesso ao arquivo pessoal da Ana Cristina.


Notas


(*) Annita Costa Malufe é doutoranda no IEL-Unicamp.

(1) Cesar, Crítica e Tradução, p.267.

(2) Eliot, Ensaios de Doutrina Crítica, p.43.

(3) Idem, p.74.

(4) Cesar, op. cit., p.273.

(5) Carta a Ana Candida Perez, de 18/09/76. Hollanda e Freitas Filho, Ana Cristina Cesar, Correspondência Incompleta, p.226.

(6) Cesar, op. cit., p.163.

(7) Idem, p.252.

(8) Idem, p.164.

(9) Idem, ibidem.

(10) Deleuze, Critique et Clinique, p.12.

(11) Cesar, op. cit., p.262.

(12) Idem, p.259.

(13) Idem, p.266.

(14) Foucault, “O Pensamento do Exterior”, Ditos e Escritos III, p.222.

(15) Blanchot, O Espaço Literário, p.35.

(16) Cesar, op. cit., p.262.

(17) Idem, p.263.

(18) Cesar, A Teus Pés, p.44.

(19) Cesar, Crítica e Tradução, p.264.

(20) Idem, p.270.

(21) Idem, p.260.


Referências bibliográficas


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BLANCHOT, Maurice. O Espaço Literário. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Rocco, 1987. (título original em francês L’Espace Littéraire, 1955).

CESAR, Ana Cristina. Crítica e Tradução. São Paulo: Editora Ática, 1999.

_________________. A Teus Pés. São Paulo: Editora Ática, 1999.

DELEUZE, Gilles. Critique et Clinique. Paris: Les Éditions de Minuit, 1993.

ELIOT, T. S. Ensaios de Doutrina Crítica. Trad. Fernando de Mello Moser. Lisboa: Guimarães Editores, 1997 (seleção de ensaios realizada para a presente edição).

FOUCAULT, Michel. “O pensamento do exterior” e “O que é um autor”. In: Ditos e Escritos III – Estética: Literatura e Pintura, Música e Cinema. Trad. Inês Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001 (título original em francês Dits et Écrits, 1994).

HOLLANDA, Heloisa B. e FREITAS FILHO, Armando (orgs.). Ana Cristina Cesar, Correspondência Incompleta. Rio de Janeiro: Aeroplano, 1999.

SÜSSEKIND, Flora. Até Segunda Ordem Não me Risque Nada. Rio de Janeiro: 7Letras, 1995.

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