A mitologia greco-latina na canção Choro Bandido

André A. Almeida (*)

O objetivo deste artigo é empreender uma análise da letra da canção Choro Bandido, de autoria de Edu Lobo (melodia) e Chico Buarque (letra), a partir dos elementos da mitologia greco-latina nela presentes.  A canção, composta para a peça O corsário do Rei, de Augusto Boal, levada aos palcos em 1985, faz, por sua letra, uma tal referência à cultura clássica, que apontar essa referência significa, acima de tudo, revelar grande parte das relações de sentido com que se tece a letra.

O tema da canção é, como em muitas canções de Chico Buarque, a sedução amorosa. No entanto, o que a diferencia com relação a outras obras do autor é que nela o canto poético se reconhece como o discurso sedutor por excelência, infalível canto de Sereia. E isso se evidenciará, acima de tudo, através da figura do deus Hermes, cuja imagem de ladrão engenhoso e hábil com as palavras perpassará verso a verso essa letra. Já de início, o ouvinte se depara com um “eu” que, sem pejo, declara-se falso. Se, num primeiro momento, a idéia de falsidade se apresenta por demais vaga, a partir dos versos seguintes essa idéia ao menos se orientará por uma noção de discurso enganador próprio da arte da sedução. E isso, pela menção a Hermes numa cláusula justificativa ao fato de que, não importa em que condições, são boas as obras dos cantores e poetas. Tais versos iniciais são:        

Mesmo que os cantores
Sejam falsos como eu,
Serão bonitas, não importa,
São bonitas as canções.
Mesmo miseráveis os poetas,
Os seus versos serão bons.
Mesmo porque as notas eram surdas
Quando um deus sonso e ladrão
Fez das tripas a primeira lira
Que animou todos os sons.

Antes de mais nada, atente-se aqui para a expressão mesmo porque do sétimo verso acima transcrito, que, além de retomar a palavra ‘mesmo’, já presente nos versos um e cinco, introduz, com o ‘porque’ que a segue, uma novidade sintática, substituindo a idéia de concessão dos versos um e cinco por uma explicação, substituição essa evidentemente vinculada a uma sutil mudança melódica a partir desse verso. É justamente a partir daí que aparecerá a figura de Hermes, já bastante destacada por, simplesmente, integrar uma cláusula por que se justificam as idéias dos versos anteriores. Esse deus recebe menção nessa letra por ter sido o inventor da lira, instrumento fundamentalmente ligado ao canto e à poesia. Homero, em seu Hino a Hermes, chega a narrar o modo pelo qual o deus, recém-nascido, constrói a primeira lira, tendo-se deparado com uma tartaruga e visto nesse animal algo além de suas propriedades mágicas. Com o casco da tartaruga Hermes levará a cabo a sua invenção:

Ajustou, na medida, umas talas de cálamo exatas,
E, do dorso através e da pele, enfiou no quelônio
E, conforme pensava, uma pele de boi esticou
E dois braços extremos dispôs, por travessa ajuntados.
Sete cordas de tripa de ovelha estendeu harmoniosas.
Ao depois de fazê-lo, tomou do amorável brinquedo
E co’um plectro uma a uma provou cada corda, aos seus dedos
Ressoava tremenda
(v.44-53). (1)
No entanto, a citação ao deus apenas se efetiva como justificativa ao que se encontra nos versos anteriores através da qualificação desse deus como sonso e ladrão. Quanto a este último predicado, não será difícil encontrarmos no mito ocasião em que Hermes de fato se apresente como uma figura trapaceira e arguciosa. Já em suas primeiras horas de vida, Hermes parte em busca dos bois de Apolo e os rouba, pedindo até mesmo a um ancião, que o via passar com a manada, o seu cúmplice silêncio. Não é, portanto, sem razão que, dentre os atributos desse deus, esteja o de protetor dos ladrões  ou  dos  que  fazem  seus  trabalhos na calada da noite. Tão importante ou mais para a análise da letra do que a qualificação de Hermes como ladrão é a sua denominação como sonso. Uma vez que por esse adjetivo, a trapaça e o embuste não se restringem à objetividade das mãos ladras, mas à própria índole do deus, ampliando os seus instrumentos, do furto para a mentira e o fingimento.


Lira reconstituída a partir de vestígios encontrados em Atenas. Londres, Museu Britânico.

Este último aspecto do deus é ressaltado explicitamente por Homero e, de modo indireto, por Hesíodo. No Hino  a  Hermes,  descreve  Homero  a  resposta  do  deus  a  Apolo,  quando  por  este interrogado sobre o roubo dos bois:

Nada vi, nada sei, nem ouvi dizer nada a ninguém,
Nem indícios mostrar, já que não valeriam de nada.
Um larápio de bois, homem forte, também não pareço.
Meu trabalho não é esse, outras coisas em vez, me interessam.
O meu sono interessa e interessa-me o leite materno,
Lãs dispostas em volta dos ombros e tépidos banhos (v.263-270). (2)

Essa cena de descarada mentira de Hermes revela uma personalidade do deus que justificará o fato de, em Os trabalhos e os dias, Hesíodo o representar como o artífice do caráter feminino. Querendo Zeus punir os homens pelo crime de Prometeu, cria-lhe a primeira mulher, Pandora, de esplêndida beleza e índole perversa. Sobre a constituição do espírito dessa primeira mulher, narra Hesíodo a ordem de Zeus a Hermes:

Aí pôr espírito de cão e dissimulada conduta
determinou ele a Hermes Argifontes (v. 67-68). (3)

Tal caracterização de Hermes como enganador é, como dissemos, fundamental para que sua menção se apresente como justificativa ao fato de serem bons o canto e a poesia apesar do que quer que seja, já que, tendo esse deus o caráter que tem e sendo ainda o inventor da lira, não é descabido pensar que todo canto poético, a esse instrumento relacionado, ou melhor, todo lirismo deva, por origem, guardar boa dose de engodo e de ilusão. E a ilusão aqui é essencialmente realizada pela palavra. Horácio, em uma ode ao deus, aponta a ação de Hermes, através da difusão da palavra entre os homens, como elemento transformador da humanidade. Assim se inicia o poema:

Ó Mercúrio, fecundo neto de Atlas,
que, engenhoso, poliste pelo verbo
e pelo hábito assíduo da palestra,
feros costumes
dos homens primitivos, - cantar-te-ei,
núncio de Júpiter e dos deuses todos,
claro inventor da curva lira, alegre
e hábil no furto (I,10). (4).

De fato, chamado já por Hesíodo na Teogonia de arauto dos imortais (v. 939), esse deus se consolidará não só como o que porta a palavra, o mensageiro dos deuses, mas em dado momento de seu culto, ao confundir-se com o deus egípcio Toth, ganhará ele o atributo de protetor da palavra ou mesmo criador da palavra escrita. Segundo Lessing e Vernus (1998), esse deus egípcio, responsável por toda quantificação e codificação das coisas, apresentando-se como um “mestre da palavra e de sua codificação visual, a escritura, é o escriba dos deuses, até na célebre cena do ‘julgamento dos mortos’, e o deus dos escribas, devendo ser o escritor original de todos os escritos sagrados” (5). É dessa fusão entre o deus Hermes helênico e o deus Toth que se cultua o deus Hermes Trismegistus, isto é, três vezes máximo, e cujo culto se estenderá, pela ligação do deus à magia e, depois, à alquimia, até meados do século XVII na Europa. Fowden (1993) aponta para as propriedades de Hermes e Toth por que foi possível o estabelecimento de vínculos entre ambas as divindades. Afirma: “Como Toth, o Hermes grego clássico foi associado à lua, à medicina e ao mundo dos mortos. Além disso, ambos tinham a reputação de inventivos e trapaceiros, e ambos cumpriam a função de mensageiros dos deuses, os quais, no caso de Hermes, prepararam-no tão bem para essa função característica, quanto o logos ou a ‘palavra’ prepara o intérprete da vontade divina para a humanidade” (6). Assim, com essa noção de um Hermes-palavra-e-artifício, é que melhor se compreendem os seguintes versos da letra de Chico Buarque:

E daí nasceram as palavras
E os arroubos de bandidos como eu
Cantando assim:
Você nasceu pra mim.
Você nasceu pra mim.

É a partir da invenção da lira que o poeta sedutor pode ‘roubar’ para si, como um bandido do verbo, a afeição da pessoa amada. O título da canção, Choro Bandido, relaciona-se estreitamente com essa idéia.

E o discurso sedutor do poeta se apresenta como algo de tal forma poderoso que chega a superar o canto sedutor por excelência na mitologia greco-latina, a saber, o canto das Sereias. De fato, a partir da alusão a um episódio da Odisséia de Homero, em que Ulisses se prende a um mastro para ser o único humano a ouvir o canto das Sereias e permanecer vivo, os seguintes versos da letra defenderão que sequer o recurso de Ulisses, isto é, da razão e da temperança, poderá resistir a tamanha força de sedução das palavras do poeta:

Mesmo que você feche os ouvidos
E as janelas do vestido,
Minha musa, vai cair em tentação.

O primeiro verso acima transcrito, remete claramente à estratégia de Ulisses para escapar ileso às Sereias, pois, advertido por Circe do perigo desses seres, o herói faz taparem-se os ouvidos de toda a tripulação, a fim de que, mesmo ele ensandecido pelo canto, mantivesse o barco o seu rumo em segurança. No canto XII da Odisséia, Homero põe Ulisses a narrar aos feácios essa extraordinária experiência e até a lhes reportar o próprio canto das Sereias. Fala o herói:

Uma rodela de cera cortei com meu bronze afiado,
em pedacinhos, e pus-me a amassá-los nos dedos possantes.
Amoleceu logo a cera, por causa da força empregada
e do calor grande de Hélio, o senhor Hiperiônio esplendente.
Sem exceção, depois disso, tapei os ouvidos dos sócios;
As mãos e os pés, por sua vez, me amarram na célere nave,
em torno ao mastro, de pé, com possantes calabres seguro.
Sentam-se logo, batendo com o remo nas ondas grisalhas.
Mas ao chegar à distância somente de grito da praia,
com  toda a força a remar, não passou nosso barco ligeiro
despercebido às Sereias, de perto, que entoam sonoras:
“Vem para perto, famoso Odisseu, dos Aquivos orgulho,
traz para cá teu navio que possas o canto escutar-nos.
Em nenhum tempo ninguém por aqui navegou em nau negra,
Sem nossa voz inefável ouvir, qual dos lábios nos soa.
Bem mais instruído prossegue, depois de se haver deleitado.
Todas as coisas sabemos, que em Tróia de vastas campinas,
pela vontade dos deuses, Troianos e Argivos sofreram,
como, também, quanto passa no dorso da terra fecunda.”
Dessa maneira cantavam, belíssima. Mui desejoso
de as escutar, fiz sinal com os olhos aos sócios que as cordas
me relaxassem; mas eles remaram bem mais ardorosos
(XII, 173-194). (7)

Ressalte-se que ao se aludir ao canto das Sereias, apontando no canto do poeta uma sedução ainda maior, tais versos da letra de Chico Buarque remetem necessariamente à idéia de um canto de perdição, de desvio de uma rota segura e planejada para as pedras fatais da paixão amorosa. Tal perspectiva não apenas reforça a idéia de canto poético como discurso enganador, mas também será, por sua vez, reforçada pelos seguintes versos da mesma letra:


Odisseu e as sereias. Stamnos de figuras vermelhas (500 a 480 a.C.). Londres, Museu Britânico.


E eis que menos sábios do que antes
Os seus lábios ofegantes
Hão de se entregar assim:
Me leve até o fim.
Me leve até o fim.

A idéia de uma sabedoria anterior agora perdida pode muito bem relacionar-se a um Ulisses seduzido e desejoso de se entregar a um funesto destino. Ainda que se possa questionar essa alusão ao episódio da Odisséia a partir de uma certa imprecisão do verso mesmo que você feche os ouvidos, encontra-se apenas dois versos adiante o que se poderia compreender como um verdadeiro comentário do letrista a respeito de sua própria obra poética. Canta-se:

Mesmo porque estou falando grego
Com sua imaginação.

Tais versos não apenas remetem novamente à idéia de um discurso poético enganador, ou mais precisamente aqui, um discurso que confunda o ouvinte através do corriqueiro sentido de falar grego como ‘dizer o ininteligível’, como também declaram, num segundo sentido – o qual, só por ser possível, já reforça, nessa ambigüidade, a idéia do engano e da confusão –, a intenção do letrista em trabalhar com elementos do mundo clássico. A expressão mesmo porque fará realçar tal comentário, destacando-o, de certa forma, do fluxo das imagens presentes na letra.

E essa intenção se realizará nos versos seguintes com mais duas alusões à mitologia. Tanto o mito do labirinto de Dédalo quanto o do adivinho Tirésias se mencionam do seguinte modo:

Mesmo que você fuja de mim
Por labirintos e alçapões,
Saiba que os poetas, como os cegos,
Podem ver na escuridão.

O labirinto, elemento dos mais difundidos da cultura greco-latina, foi construído por Dédalo em Creta a mando do rei Minos para abrigar o monstro Minotauro, um híbrido de homem e touro, parido pela rainha Pasífae, a qual, por punição divina a Minos, enamorou-se de um imenso touro saído das águas. Já Tirésias é mencionado na letra através da idéia de que podem os cegos ver na escuridão. De fato, Tirésias, era cego, não de nascença, mas pela fúria de Hera, e, não obstante sua cegueira, foi o maior vidente de toda a mitologia grega, pelo que Sófocles põe Édipo a pedir-lhe o auxílio da seguinte maneira:

Ó Tirésias, que penetras todas as coisas, as visíveis e as secretas, as terrenas e as celestes! Se bem que não enxergues, contudo, sabes qual a doença que está vitimando a cidade (8).

Ovídio narra no livro III das Metamorfoses o episódio em que se cegou Tirésias e a ele se concedeu o dom da vidência:

Enquanto, por lei do destino, ocorrem sobre a terra essas coisas,
e a salvo se encontra o berço de Baco, duas vezes nascido,
conta-se que Júpiter, embevecido pelo néctar, deixando de lado,
casualmente, as preocupações, dirige leves provocações
à também despreocupada Juno: “Sem dúvida – disse -  é maior
o vosso prazer sexual do que aquele que cabe ao gênero masculino.”
Ela o nega. Achou-se por bem perguntar ao sábio Tirésias qual
seria a resposta. Vênus era por ele conhecida de ambos os modos.
Pois, com um golpe de cajado atacou os corpos na cópula enlaçados
de duas grandes serpentes numa verde floresta e, de homem,
transformou-se – coisa admirável! – em mulher, assim ficando
por sete outonos; no oitavo, de volta ali, viu as mesmas serpentes
e disse: “Se há tamanho poder nos golpes que recebestes
para que mude em contrário o sexo do golpeador, também agora
eu vos ferirei.” Golpeadas essas mesmas serpentes, recuperou-se
a forma anterior e retornou o aspecto de nascimento. Então,
este árbitro, nomeado, da jocosa disputa confirma as palavras
de Júpiter. Satúrnia, diz-se, ofendeu-se mais do que o devido
e mais do que exigia tal assunto, e condenou a uma noite eterna
os olhos de seu juiz. Mas o pai onipotente (uma vez que
a nenhum deus é permitido anular os feitos de outro deus),
no lugar da luz perdida, concedeu-lhe saber o futuro,
carregando com honra a sua pena
(v.316-338). (9)

Dumque ea per terras fatali lege gerentur
Tutaque bis geniti sunt incunabula Bacchi,
Forte Iouem memorant, difusum nectare, curas
Seposuisse grauis uacuaque agitasse remissos
Cum Iunone iocos et:
«Maior uestra profecto est                  
320
Quam quae contingit maribus» dixisse «uoluptas.»
Illa negat. Placuit quae sit sententia docti
Quaerere Tiresiae; Venus huic erat utraque nota;
Nam duo magnorum uiridi coeuntia silua
Corpora serpentum baculi uiolauerat ictu;                           
325
Deque uiro factus, mirabile, femina, septem
Egerat autumnos; octauo rursus eosdem
Vidit et:
«Est uestrae si tanta potentia plagae»
Dixit «ut auctoris sortem in contraria mutet,
Nunc quoque uos feriam.
» Percussis anguibus isdem,    330
Forma prior rediit genetiuaque uenit imago.
Arbiter hic igitur sumptus de lite iocosa
Dicta Iouis firmat; grauius Saturnia iusto
Nec pro materia fertur doluisse suique
Iudicis aeterna damnauit lumina nocte.                     
335
At pater omnipotens (neque enim licet irrita cuiquam
Facta dei fecisse deo) pro lumine adempto
Scire futura dedit poenamque leuauit honore.
 

E a partir dessa comparação entre os poetas e os cegos que vêem na escuridão, com a alusão a Tirésias, abre-se a possibilidade de compreender o discurso poético como algo também mântico, dentro da tradicional representação do poeta na antiguidade como um vate, alguém que acessa verdades inalcançáveis ao homem comum, revelando-as em seus versos proféticos. Com base nessa compreensão, pode-se verificar no anúncio da rendição da pessoa amada ao encantamento do poeta, o aspecto de uma verdadeira profecia. Os seguintes versos da letra, já aqui analisados como reforço à alusão ao mito de Ulisses, adquirem tal caráter não só por aparecerem logo em seguida à menção a Tirésias, mas pelo próprio verbo, representado como algo futuro e inevitável, através da locução hão de entregar:

E eis que menos sábios do que antes
Os seus lábios ofegantes
Hão de se entregar assim:
Me leve até o fim.
Me leve até o fim.

A canção termina com um corolário a essa idéia de um discurso de sedução que engane e, de certa forma, desvie de um reto caminho a pessoa amada. Tal se dá através da declaração de que esse amor possui a carga pecaminosa e proibitiva de um amor de amantes, carga essa confessada pelo próprio “eu”, o qual a atenua a partir das idéias de beleza e prazer que se inserem tanto, especificamente, no canto poético de sedução quanto na própria relação amorosa. Canta-se:

Mesmo que os romances
Sejam falsos como o nosso,
São bonitas, não importa,
São bonitas as canções.
Mesmo sendo errados os amantes,
Seus amores serão bons.

Assim, o discurso poético se apresenta ao longo de toda a letra de Chico Buarque como algo que, ao seduzir, de uma maneira ou de outra, subverte, instaurando-se com tamanho poder, que nem o mais sensato dos homens a ele poderia resistir. Essa menção, ao final da letra, ao amor de amantes, em tudo contribui para o reforço da idéia de um canto poético infalível, já que talvez seja essa forma de amor a que mais represente a idéia de paixão avassaladora, de um sentimento de tal forma irresistível, que em seu nome uma série de convenções sociais, parâmetros de boa conduta, põem-se, de um só golpe, por terra.

Para finalizar nossa análise, atentemos para o sofisticado uso de um topos poético num dos versos da letra. Em dado momento, o “eu” dirige-se à pessoa amada como minha musa. Essa denominação, extremamente comum na poesia, da pessoa amada como musa, nesta letra em específico, ganha uma força maior do que a habitual por ao menos duas razões: primeiramente, o uso do termo musa em uma letra que tantas alusões faz à cultura clássica não restringirá o seu sentido simplesmente a uma idéia vaga de pessoa inspiradora do poeta, mas, acima de tudo, às entidades mitológicas, filhas de Zeus e Mnemósina, que alegram os deuses olímpicos e aos mortais inspiram as artes. Em segundo lugar, o estabelecimento de um apurado jogo entre o poeta e sua musa, uma vez que, sendo ela inspiradora de sua arte, dela depende o poeta para construir um artifício verbal, o canto poético, que a ela mesma capture.

Dessa forma, as imagens mitológicas nessa letra são mais do que meras referências eruditas à cultura clássica, mas representam a própria chave de interpretação dessa letra, constituindo relações de sentido que lhe fornecem, apesar da variedade dos mitos representados, uma evidente unidade temática e uma sofisticação bastante visível em toda a obra de seu autor.

 

Notas 

(*) Mestre em Lingüística pela Unicamp e professor da Anhangüera Educacional. 

(1) Homero. Hinos Homéricos. Introdução e tradução de Jair Gramacho. Brasília: UNB, 2003. 

(2) Ibidem. 

(3) Hesíodo. Os trabalhos e os dias. Tradução de Mary de Camargo Neves Lafer. São Paulo: Iluminuras, 1996. 

(4) Horácio. Odes e Epodos. Tradução de Bento Prado de Almeida Ferraz. São Paulo: Martins Fontes, 2003. 

(5) Lessing, E. Vernus, P. Dieux de l´Egypte. Paris: Imprimerie Nationale, 1998, p. 190. 

(6) Fowden, G. The egyptian Hermes. A historical approach to the late pagan mind. Princeton: Princeton University Press, 1993, p. 23. 

(7) Homero. Odisséia. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Ediouro, 2000. 

(8) Sófocles. Édipo Rei. Tradução de Domingos Paschoal Cegalla. Rio de Janeiro: Difel, 2000. O trecho transcrito se refere aos versos de 300 a 303 do texto grego. 

(9) Tradução nossa com base no texto latino estabelecido por Georges Lafaye e editado pela Les Belles Lettres: OVIDE. Les metamorphoses. T.1. Texte établi et traduit par  Georges Lafaye. Paris: Les Belles Lettres, 2002.

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