Uma Leitura de “Bliss”, de Katherine Mansfield – A Vida como Origem(1)

Adriana de Freitas Gomes(2)

Mas eu lhe digo, meu tolo senhor, dessa
urtiga, o perigo, colhemos esta flor, a salvação.
Shakespeare, Henrique IV, parte I.(3)

1.

As palavras de Shakespeare citadas como epígrafe estão gravadas na pedra tumular de Katherine Mansfield (1888-1923), considerada a melhor contista da literatura inglesa.  Palavras que ela sempre amou e que foram, coincidentemente, escolhidas pela autora para a página de rosto de “Bliss”, nosso objeto de análise neste artigo.

“Bliss” é o conto que solidificou a carreira literária de Katherine Mansfield. Virginia Woolf, sua grande admiradora, confessou em seu diário ter sido Katherine Mansfield a única escritora por cujo talento se sentia ameaçada. Ainda, segundo Esdras do Nascimento, em Diário e Cartas (1996), “conta-se que Virginia Woolf, depois de ler Bliss, tomou um porre e ficou gritando num bar: “Eu morro de inveja dessa mulher”” (p. 14). Se verdade ou não, foi através de “Bliss” que Katherine Mansfield se tornou reconhecida em muitos países e também no Brasil, com a primeira tradução para o português realizada por Érico Veríssimo, em 1937. Posteriormente, Julieta Cupertino e Ana Cristina Cesar também o traduziram. Em nossa análise, iremos nos basear na versão de Ana Cristina, publicada postumamente por sua mãe, Maria Luiza Cesar, na obra Escritos da Inglaterra (1988, p. 23-84), com o título de “Êxtase (Bliss)”, com a qual a tradutora recebeu o título de Master of Arts, with distinction, na Universidade de Essex, Inglaterra, em 1981. Ainda, buscando compreender melhor “Bliss”, iremos recorrer a algumas das 80 notas por ela escritas, bem como a seu prefácio ao conto.

se disse que tudo o que se escreve tem um quê de autobiográfico, e podemos afirmar que em Katherine Mansfield esse axioma ganha tonalidades de verdade. Assim como muitas de suas histórias, “Bliss” também é representativa de sua escrita autobiográfica. Ana Cristina, em seu prefácio, declara: 

Não constituiu coincidência alguma o fato de que, ao mesmo tempo em que eu traduzia o conto Bliss, ia mergulhando, paralelamente, no diário de KM, em suas cartas e biografias. Um leitor atento afirmou:  “Não consigo pensar em KM apenas em termos de autora literária. Ela ocupa lugar de destaque entre os escritores modernos que primam pela originalidade e subjetividade e, em seu caso, ficção e autobiografia constituem uma única e indivisível composição”. [...] Na qualidade de autora, essa fusão de ficção e autobiografia me seduz. E, na qualidade de tradutora – alguém que procura absorver e reproduzir em outra língua a presença literária de um autor não consegui deixar de estabelecer uma relação pessoal entre Bliss e a figura de KM (CESAR, 1988, p. 12-13, grifos meus).

É recorrente entre os críticos a assertiva de que a obra de Katherine Mansfield é um espelho de sua vida, como bem atesta Rhoda B. Nathan, professora da Hofstra University, em Nova York, numa edição da série Literature and Life: British Writers (“Literatura e Vida: Escritores Ingleses”), intitulada Katherine Mansfield (1988). Em seu primeiro capítulo, a estudiosa aborda os dados biográficos de Katherine Mansfield, e o faz sob o título “The Life as Source” (“A Vida como Origem”, p. 1-11), deixando claro ao leitor que vida e ficção se mesclam na escrita literária da autora neozelandesa. Não são aleatórias as palavras com as quais Rhoda Nathan abre esse capítulo: 

Certamente não um artista na história cuja vida não está, de algum modo, refletida  em seu trabalho. Ao biógrafo é dada a tarefa de descobrir e iluminar as conexões entre a vida do artista e o seu trabalho, tendo em mente o fato de que este deforma, distorce, e reforma os fatos de sua vida para adaptá-los à sua visão pessoal. No caso de Katherine Mansfield, os estágios sucessivos de sua vida estão claramente refletidos em sua ficção. (NATHAN,  1988, p. 1, grifo meu).(4) 

Assim, várias são as referências autobiográficas que Katherine Mansfield apresenta em seus contos, e bem ressaltadas por Rhoda Nathan ao longo de seu texto, sendo que algumas nos são muito significativas, visto que presentes em “Bliss”. De acordo com a estudiosa, Katherine Mansfield teve uma infância bastante conturbada e era vista como uma garota  rebelde e petulante. Ainda muito jovem, deixou sua cidade natal, Wellington, em Nova Zelândia, e foi para Londres. Durante sua estadia na capital inglesa, a contista apaixonou-se muitas vezes, e “seus romances, alguns triviais e outros sérios, realizados e não realizados, são de grande importância, visto que contribuíram significativamente para o sucesso de muitas das suas histórias de romance, galanteio e casamento” (NATHAN, 1988, p. 6).(5) Rhoda Nathan continua descrevendo detalhes biográficos da autora que nos serão muito bem-vindos:

Seu próprio desenvolvimento sexual foi ambivalente. Quando completava o ensino médio na “Miss Swainson’s School”, em Wellington, ela apaixonou-se por uma exótica garota Maori. A segunda versão não censurada do seu Diário revela sua apaixonada atração lésbica pela jovem mulher, chamada Maata Mahukupu:
Eu quero Maata, eu a quero – e eu a tive – extremamente isto é impuro, eu sei, mas é verdadeiro. Uma coisa extraordinária – e eu me sinto selvagemente rude – e ainda mais poderosamente apaixonada pela menina” (MANSFIELD citada por NATHAN, 1988, p. 6).(6)

Segundo a biógrafa, Maata, conhecida como Martha Grace, parece ter-se entregado a Katherine Mansfield, mas não correspondeu aos sentimentos da agressiva amiga. Rhoda Nathan prossegue: 

A experiência, do ponto de vista de Mansfield, contudo, é significativa, visto que ela retorna ao tema do lesbianismo em algumas de suas histórias mais tarde e, mais notavelmente, em “Bliss”, na qual Bertha, assim como a própria Katherine, encontra-se apaixonada pela exótica, distante e passiva Pearl Fulton (NATHAN, 1988, p. 6, grifo meu).(7)

Esses dados apresentados por Rhoda Nathan nos suscitam grande interesse. Isto porque, como afirmou a própria autora, o intenso romance vivido por Katherine Mansfield encontra-se retratado nas entrelinhas de “Bliss”. Ainda outros estão presentes no conto, e serão salientados.

 

2.

“Bliss” foi escrito em 1918, época em que Londres se tornou o palco de intensos protestos e o movimento feminista estava no auge. As sufragettes londrinas se lançavam às ruas reivindicando melhores condições para as mulheres, e esseativismo de rua também era uma forma de lutar contra a discriminação do sexo e pela igualdade de direitos, como o direito ao voto feminino. Suas manifestações possibilitaram um número considerável de divórcios na Inglaterra neste período, visto que se tornou mais fácil à mulher libertar-se do marido cruel ou adúltero. Assim, o interesse da crítica feminista era debater a posição de prestígio e autoridade que os homens, durante séculos, ocuparam em relação às mulheres, questionar a identidade feminina definida pelo discurso patriarcal, suas concepções, mitos e estereótipos acerca das mulheres. Também na literatura, a mulher denunciava os maltratos que sofria, bem como as desigualdades de oportunidades devido às diferenças sexuais. Algumas autoras usavam a escrita como uma forma de protesto e reivindicavam uma sociedade igualitária, como o fez Virgínia Woolf, em Um Teto Todo Seu, em 1929. Anos antes, em 1908, Katherine Mansfield escreveu as palavras abaixo em seu diário, quando estava com 20 anos de idade: 

Acabo de terminar a leitura de um livro de Elizabeth Robins, Come and find me (Venha e me encontre). Realmente, um livro brilhante, esplêndido; cria em mim uma tal sensação de poder! Sinto que agora realmente posso imaginar do que as mulheres serão capazes, no futuro. Até agora não tiveram sua oportunidade. Falar de nossos dias iluminados, de nosso país emancipado – pura tolice! Estamos firmemente presas com grilhões de escravidão que nós mesmas modelamos. Sim, agora percebo que nós os fizemos e temos de tirá-los. [...] É a doutrina desesperadamente insípida, segundo a qual o amor é a única coisa no mundo que é ensinada e posta dentro das mulheres, de geração em geração, e que nos detém de um modo tão cruel. Devemos nos livrar desse demônio – e então virá a oportunidade de felicidade e libertação (MANSFIELD, 1996, p. 31).(8)

Embora jovem, a autora expressava sua indignação em relação àquela sociedade patriarcal inglesa, em que a mulher era escrava do homem, escrava social e serva da burguesia. Seja da elite ou da classe média, sua vida se passava principalmente no interior da casa, onde recebia aulas de trabalhos domésticos e bordado. A imagem que se tinha do “segundo sexo”, segundo Simone de Beauvoir, em O Segundo Sexo (1990), estava associada à idéia de inferioridade física e mental. No entanto, as mulheres contestaram veementemente a tão propalada inferioridade do sexo feminino, e buscavam sua emancipação. Escrito em plena efervescência do movimento feminista, “Bliss” leva a uma análise acerca da posição e do papel da mulher dentro da sociedade inglesa pós-vitoriana, através de sua protagonista Bertha Young.

Descrita como uma típica mulher burguesa, Bertha tem, segundo a sociedade da época, “tudo”, ou supostamente tudo, para ser feliz: um bebê maravilhoso, um marido muito bem-sucedido e amigos elegantes. Elanão havia que se preocupar com dinheiro” (p. 32), pois “a casa e o jardim eram absolutamente satisfatórios” (p. 32), completos com empregada, cozinheira e babá. Além disso, Bertha usava belas roupas e jóias de jade, “e havia livros, e a música” (p. 32), o que sugere que ela freqüentava os concertos. Ainda, Bertha e seu marido, Harry, eram membros de um clube e tinham “uma ótima costureirinha recém-descoberta, e eles iam viajar para o exterior no verão” (p. 32). Dessa forma, não deveria haver motivos para insatisfação e Bertha devia se sentir realizada em seu gratificante papel de esposa e mãe, servindo às necessidades da família. Na verdade, a narrativa descreve que, inicialmente, ela se sente mais que satisfeita, pois seu sentimento é de “êxtase, absoluto êxtase!” (p. 23), e os sintomas desse sentimento que a domina naquele dia tão especial, quando ofereceria um jantar festivo a seus amigos, são retratados: sua percepção é de que nunca o jardim da casa esteve tão bonito e de que sua vida é perfeita. Seu estado de espírito é intensificado quando Bertha avista a exuberância da única pereira no fundo de seu jardim: “uma árvore alta e esguia, em flor, luxuriamente em flor, perfeita, como se apaziguada contra o céu de jade. Bertha não podia deixar de notar, mesmo a distância, que não havia na árvore nem um broto por abrir; nem uma pétala esmaecida” (p. 31).

Aquela pereira sugere a Bertha uma imagem de sua própria vida. Símbolo fálico por excelência, com suas flores todas abertas, a árvore insinua uma metáfora da sexualidade da protagonista, que desabrocha neste dia de primavera. Isto porque Bertha se sente fortemente atraída por Pearl Fulton, uma de suas convidadas. Ao recebê-la, o contato com o braço quente de Pearl despertou novos sentimentos em Bertha. Aqui reside, como afirmamos, uma grande conotação autobiográfica: ao retratar a descoberta homossexual de Bertha, e revelar a bissexualidade da protagonista (que também deseja, neste mesmo dia, seu marido Harry), Katherine Mansfield retrata sua própria ambivalência sexual e enfatiza, em 1918, o direito à diferença e à liberdade, questões tão propaladas pelo movimento feminista. É interessante ressaltarmos que a natureza sempre exerceu uma forte influência em Katherine Mansfield, como confirmam seu diário e cartas. Em uma delas, enviada a John Middleton Murry, seu marido e companheiro, escrita a 23 de dezembro de 1917, época em que Katherine Mansfield buscava se recuperar de uma forte crise de tuberculose (doença que viria a vitimá-la), em Bandol, no sul da França, a autora declara: “Agora eu sinto que preciso apenas tomar bastante sol, e irromperei em folhas e flores de novo” (MANSFIELD, 1996, p. 83). Numa analogia, quando lemos em “Bliss” a pereira como símbolo da vida de Bertha, podemos sugerir que, através de uma personagem, a contista expressa sua grande admiração pela exuberância, vitalidade e fertilidade daquela árvore, com a qual ela própria se identifica. E todo aquele êxtase que dominou Bertha se deu por uma justificativa apresentada pela protagonista: “Eu estou ficando louca. Louca!” E ela sentou-se; mas sentia-se tonta, bêbada. Devia ser a primavera. Claro, era a primavera” (p. 32, grifo meu). E a primavera provocava em Bertha, assim como em Katherine Mansfield, um sentimento de intensa alegria. O leitor percebe nitidamente em seu diário e epístolas o bem que fazia à autora estar em contato com a natureza nos dias primaveris, contrapondo-se ao intenso inverno que a fazia sofrer terrivelmente, devido à doença que se agravava nesses dias frios. Portanto, Katherine Mansfield expressa em seus contos sentimentos muito pessoais sobre e através da natureza, revelando-nos sua tristeza, felicidade e prazer, permitindo-nos apreciar o mundo exterior artística e realisticamente.

Mas a narrativa prossegue, e eis que surge um acontecimento, um foco de instabilidade, uma perturbação que acomete a protagonista. Logo após o desejo intenso que Bertha sente por Harry, ao final da festa, enquanto os convidados estão partindo, ela o com Pearl Fulton, e os lábios de Harry quando diz à amante: “Eu te adoro” (p. 48), e depois o sussurro: “Amanhã” (p. 48), e Miss Fulton responde com os olhos: “Sim” (p. 48). Atordoada com a traição do marido, Bertha questiona a si mesma: “E agora, o que vai acontecer?” (p. 49). Naquele dia, a protagonista descobriu não apenas o “caso” de Harry, mas, principalmente, sua própria sexualidade. Bertha olhou a pereira e a viu ali, no fundo do jardim, tão bela quanto antes. E, com a visão da pereira, Katherine Mansfield termina o conto, de forma inconclusiva, reticente, à maneira de Anton Tchekov, autor por quem nutria verdadeira adoração. Mas quando lemos essa frase final, a história parece continuar ecoando na nossa consciência, mesmo depois de interrompida a narração, sugerindo-nos várias leituras.

Em “Bliss”, é preciso que o leitor esteja atento à sensibilidade de Katherine Mansfield para captar a ironia da contista. O desenrolar da narrativa nos revela que, apenas inicialmente, Bertha expressa esse êxtase, pois o tom irônico do narrador sugere que, na verdade, Bertha não tem uma vida assim tão satisfatória. A 34ª nota de Ana Cristina enfatiza:

Depois de ter visto “a maravilhosa árvore do jardim, completamente em flor, como um símbolo de sua própria vida”, Bertha mergulha num processo de ampla racionalização a respeito das causas de sua felicidade (jovem... se amavam... um bebê adorável... dinheiro... casa e jardim... amigos envolventes... livros... música... ótima costureirinha e cozinheira... férias...) e termina pensando em omeletes fantásticas – ironia maliciosa por parte de KM. O aspecto financeiro se define numa única e simples frase (“They didn’t have to worry about money”), que foi traduzida idiomaticamente: “Não havia que se preocupar com dinheiro” (CESAR, 1988, p. 68, grifo meu).

A insatisfação da protagonista é perceptível no início da história, quando Bertha questiona: “Para que então ter um corpo se é preciso mantê-lo trancado num estojo, como um violino muito raro?” (p. 24). Metaforicamente, Bertha é um instrumento musical que nunca foi tocado, que permanece fechado num estojo, pois não lhe era permitido expressar seus sentimentos, muito menos sua sexualidade. Após desejar ardentemente seu marido, Bertha exclama duas vezes, em voz alta, próxima ao piano: “Que pena que ninguém toca!” (p. 45). Ela é o instrumento musical que deseja, ardorosamente, o “toque” de seu marido. No entanto, Harry é caracterizado como impassível, indiferente aos sentimentos da esposa. A harmonia que Bertha deseja é a satisfação do seu êxtase sexual, que nunca ocorrera. A protagonista sente que suas lindas roupas, a casa, seus bens, enfim, sua vida, não lhe satisfazem. Ela apenas vive mais confortavelmente dia após dia e isso é tudo o que ela conhece ser a felicidade, que se limitava, principalmente, à sua segurança financeira. As constantes e enfáticas afirmativas de quão feliz Bertha se sente na verdade sugerem que ela está escondendo seus verdadeiros sentimentos de si mesma.

As relações interpessoais que mantém com os amigos apenas ajudam-na a preencher o vazio de sua existência, e contribuem para a calma aparente de sua vida, colaborando para seguir tranqüila o destino de mulher que lhe foi traçado. Além disso, o viver para os outros marido, filha, amigos – a impede de compreender melhor sua existência, e de empreender um mergulho para dentro de si mesma. Os fatos descritos no decorrer da narrativa expressam seuar de revolta  contra os códigos da civilização” (CESAR, 1988, p. 17). Por exemplo, Bertha tem pouco contato com seu bebê, visto que ele estava todo o tempo sob os cuidados da babá. Em sua nota 19, Ana Cristina elucida que essa é uma característica do sistema social inglês: “as classes dominantes são criadas quase que exclusivamente por babás pertencentes à classe operária” (CESAR, 1988, p. 63). Daí a indignação de Bertha: “Que absurdo tudo aquilo. Para que então ter um bebê se é preciso mantê-lo guardado [...] nos braços de outra mulher?” (p. 27). A nanny, descrita como arrogante e possuídora, questiona até mesmo o direito de Bertha alimentar seu bebê. E ao pedir à babá que o fizesse, passivamente ela ouviu a repreensão da babá: “Agora, não a excite depois do jantar. A senhora sabe. Depois ela me um trabalho!” (p. 27). Ao ser chamada ao telefone, a mulher “voltava triunfante e agarrava a sua pequena B” das mãos de Bertha (p. 28). O grifo da autora, salientado por Ana Cristina, sugere a ambigüidade propositalmente inserida no possessivo: na verdade, a babá tinha a pequena B. como sua.

Bertha, que tem 30 anos mas ainda é “Young” (jovem, em português), é caracterizada como imatura, despreparada e ineficiente, e se sujeita até mesmo às ordens da babá. Seu comportamento é característico de uma mulher sem personalidade, passível e resignada, que vivia e se comportava segundo as normas coletivas preestabelecidas, ou seja, as regras impostas por aquela sociedade patriarcal, que eram bastante acentuadas quando o conto foi escrito. O objetivo maior de muitas mulheres residia em se casar, ter filhos e “viver feliz para sempre”. Para elas, a valorização da casa e da família significava a valorização de si mesmas. Era preciso executar da melhor forma os principais atributos a elas traçados: boa dona de casa, decoradora do lar, boa cozinheira, boa mãe e educadora, pois seu valor como pessoa era medido através da forma como desempenhava essas funções. Através de Bertha, Katherine Mansfield retrata o destino imposto à mulher por séculos de opressão, a cegueira aparente em que vivia, a pequenez de seu cotidiano, e o seu estado de alienação e insatisfação. Bertha é descrita como frágil, inocente, uma pessoa que não sabe reagir diante de uma situação conflituosa, pois não foi educada social e mentalmente para enfrentar problemas. A descoberta da traição do marido revela-nos uma mulher desprovida de força emocional e iniciativa, qualidades necessárias para que ela lutasse contra Pearl por Harry. Ao se questionar: “E agora, o que vai acontecer?”, possivelmente Bertha não estava incomodada por perder o marido, mas por ter agora que vivenciar uma experiência totalmente inusitada para uma pessoa acostumada e acomodada a uma vida de luxo, estável e equilibrada. Uma mulher habituada às suas rotinas diárias, aos seus afazeres ritualísticos de dona-de-casa, enfim, ao seu destino de mulher, o que fazer diante de uma traição? Naquela época, era muito comum o homem possuir um relacionamento extra-conjugal e a esposa permanecer neutra, em seu estado de comodidade. Portanto, assim como se deu com relação à babá, que se apoderou do bebê e Bertha reagiu passivamente, é provável que ela tenha aceitado o “caso” de seu marido com a amante, mesmo insatisfeita e com seu incômodo encoberto. Vimos que Bertha prefere a felicidade à encarar a realidade, inclusivemal ousava se olhar no espelho gelado” (p. 24), e quando o faz, apenas uma imagem superficial, não buscando um contato com seu próprio ser, com seu íntimo, preferindo ver-se sob o olhar do outro, ao invés de buscar conhecer a si mesma. Assim, não se pode confirmar o que Bertha fez diante dessa nova situação pois, como vimos, o conto termina de forma inconclusiva.

No entanto, as feministas desejariam que a visão da pereira, que “continuava tão bela e florida e imóvel como sempre” (p. 49), fosse uma fonte de inspiração para Bertha, que lhe desse poder e vitalidade para lutar por uma nova vida. Que houvesse uma tomada de consciência capaz de despertar na personagem um forte desejo de se libertar daquele mundo falso e fútil que a privava de expressar seus reais sentimentos, e que a confinava a uma vida tão impessoal, a uma ilusão de felicidade. E que esse despertar fizesse Bertha empreender uma viagem interior de auto-descoberta, de auto-conhecimento e de conhecimento de mundo. Talvez também esse fosse o desejo de Katherine Mansfield, uma mulher que, aos vinte anos, expressava sua indignação e revolta contra a hipocrisia daquela sociedade machista, e que viveu à frente de seu tempo, enfrentando preconceitos sociais e expressando livremente sua sexualidade. “Bliss”, um dos contos mais femininos da contista, nos permite uma leitura livre de preconceitos, em que a mulher tem o direito e a oportunidade de buscar suafelicidade e libertação”, de fazer suas escolhas sem estar condicionada à visão masculina. Para Rhoda Nathan, a lamentosa pergunta final de Bertha: ““E agora, o que vai acontecer?” permanece suspensa no ar, reforçando a ambigüidade intencional de Mansfield” (p. 75, grifo meu).(9) Para nós, as otimistas palavras da estudiosa nos levam a concluir que o descortínio da sexualidade de Bertha, que estava apenas adormecida, a levará à busca de sua identidade, escondida por trás de regras e imposições sociais estabelecidas por homens, forjadas para aprisioná-la aos “grilhões da escravidão”.

 

Notas

(1) O presente artigo é parte da Dissertação de Mestrado intitulada “A voz da mulher no contexto tradutório: análise da tradução de Bliss, de Katherine Mansfield, para o português, por Ana Cristina Cesar”. 

(2) Mestranda em Teoria da Literatura pela UFJF. 

(3) Texto original: “But I tell you, my Lord fool, out of this nettle, danger, we pluck this flower, safety”. Tradução de Carlos Eugênio Marcondes de Moura e Alexandre Barbosa de Souza, em Katherine Mansfield: Contos (São Paulo: Cosac Naify, 2005, p. 277). 

(4) Texto original: “There is scarcely an artist in history whose life is not reflected in some significant way in his work. It is left to the biographer to discover and illuminate the connections between the subject’s life and work, keeping in mind the fact that the artist bends, distorts, and reshapes the facts of his life to suit his private vision. In Katherine Mansfield’s case, the successive stages of her life are clearly reflected in her fiction”. As traduções que se seguem da obra de Rhoda B. Nathan foram todas feitas por mim. 

(5) Texto original: “[...] both the trivial and serious commitments, and those realized and unfulfilled, are significant as they contributed to much of the content of the stories that deal with romance, courtship, and marriage”. 

(6) Texto original: “Her own sexual development was ambivalent. While she was completing her secondary schooling at Miss Swainson’s School in Wellington, she had fallen in love with an exotic highborn Maori girl. The uncensored second version of her Journal reveals her passionate lesbian attraction to the young woman, named Maata Mahukupu: “I want Maata I want her – and have had her – terribly – this is unclean I know but true. What an extraordinary thing – I feel savagely crude – and almost powerfully enamoured of the child”. 

(7) Texto original: “The experience, from Mansfield’s point ot view, however, is significant, in that she was to touch upon the subject of lesbian love later in some of her stories, most notably in “Bliss,” in which Bertha, like Katherine herself, finds herself falling in love with the exotic, remote, and passive Pearl Fulton”. 

(8) In Diário e Cartas: Katherine Mansfield. Trad. de Julieta Cupertino. Rio de Janeiro: Revan, 1996. 

(9) Texto original: “Her final wailing question, “Oh, what is going to happen now?” remains suspended in the air, reinforcing Mansfield’s intentional ambiguity”.

Referências Bibliográficas 

BEAUVOIR, Simone. A Independência da Mulher. In: O Segundo Sexo. 7. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. 2v. pp.449- 483.

BURGESS, Anthony. A Literatura Inglesa. São Paulo: Ática, 1996.

CESAR, Ana Cristina. Escritos da Inglaterra. São Paulo: Brasiliense, 1988.

HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva, Guacira Lopes Louro. 7. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.

MANSFIELD, Katherine. Cartas de Katherine Mansfield. Trad. do Inglês por Manuela Porto, Lisboa: Portugália, s/data.

MANSFIELD, Katherine. Diário e Cartas. Trad. de Julieta Cupertino. Rio de Janeiro: Revan, 1996.

MANSFIELD, Katherine. Contos. Trad. de Carlos Eugênio Marcondes de Moura e Alexandre Barbosa de Souza. São Paulo: Cosac Naify, 2005, pp. 288.

WOOLF, Virginia. Um Teto Todo Seu. Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 1985, pp.35-75.

Home - Crítica & Companhia