Ao longo
de três
décadas
de intensa
atividade
intelectual,
o poeta,
ficcionista,
ensaísta,
letrista,
colunista,
“fanzineiro” e tradutor Glauco Mattoso (pseudônimo
de Pedro José Ferreira
da Silva, paulistano
de 1951) vem acumulando, entre
entrevistas
e depoimentos,
um
número
significativo
de testemunhos
sobre
seus
mais
de mil
sonetos,
cerca
de 20 livros
(4 deles inéditos)
e uma antologia
de próprio
punho,
Poesia
Digesta
(1974-2004). Afora
esses
textos,
matérias
sobre
seu
perfil
pessoal,
e declarações
de outros
escritores,
é ínfima
a resposta
crítica
à sua
poesia.
Se,
por
um
lado,
essa desproporção
evidencia o acréscimo
de significativo
volume
documental a ser
investigado, por
outro,
deve ser
encarada com
método,
porque
o
reconhecimento
desses textos
requer atenção
sobre
a necessidade
de
distanciamento
crítico
dos enfoques,
dos propósitos,
e da linguagem
de que
o poeta
se vale
nessas ocasiões.
Uma linguagem,
em
síntese,
eivada de referências
à sua
história
pessoal,
que
opera a serviço
da própria
poesia,
mas
em
termos
de expressão
autobiográfica.
G.
Mattoso atribui à formação
como
bibliotecário
(formou-se também
em
Letras
Vernáculas, na USP) a poesia
meticulosamente
organizada em
séries
temáticas;
à cegueira
(decorrente de um
glaucoma
progressivo
que
lhe
roubou
integralmente
a visão
em
1995), a predileção
pela
forma
fixa,
nomeadamente o soneto
(que
o permitiria escrever
de memória),
e o pseudônimo
(glaucomatoso:
“Adj. e s.m. Que
ou
aquele
que
tem glaucoma”);
à condição
de homossexual,
não
raramente
associada
à deficiência
visual,
a autovitimação e a segregação social;
e às humilhações
vivenciadas na infância,
o
posicionamento
contracultural, norteado pela
denúncia
à opressão
(da ditadura
ao trote),
da sátira
à vida
política
e burguesa, do escárnio
cultural, da brutalidade
social,
da provocação
à ordem,
do fetichismo
podólatra, da simbologia fecal
e da obscenidade.
G. Mattoso entende, em
síntese,
o exercício
da poesia
como
forma
de “vingança
mental”
contra
humilhações
sobretudo
pessoais.
Com
os mais
incautos,
essa iniciativa
corre o risco
de fazer
desviar
a atenção
do texto
para
a
personalidade
e a biografia
do poeta.
Segundo
esses
testemunhos,
a poesia
é encarada como
“solução
paradoxal”
aos percalços
da vida.
Do ponto
de vista
literário,
o segundo
termo
da expressão
é o mais
produtivo,
uma vez
que
a idéia
de solução
não
se associa ao sujeito,
mas
à
personalidade
literária
criada
por
Mattoso. Se o autor
pensa
e vive como
diz, se sua
poesia
o ajuda
a superar
um
trauma
de infância,
ou
se ela
é ainda
conseqüência
disso, o crítico
literário
não
está apto
a testar
sua
eficácia,
ou
a entrar
no mérito
moral
dessas questões.
O seu
trabalho
se destina
a colocar
de lado
curiosidades
antropológicas, e tratar
não
só
desses temas,
como
da própria
confissão
em
si,
como
partes
de uma obra
em
progresso,
e, portanto,
efeitos
do trabalho
com
o estilo.
Não
se trata
de impugnar
possíveis
discussões
que
se travem em
termos
de veracidade. Mas
de enxergá-las como
componentes
do culto
à
personalidade,
e da atração
pelas definições
de escola
(“marginal”,
“punk”,
“pós-concreto”, “maldito”,
“pós-maldito”). Sobram rótulos
nesse sentido,
expressões
cunhadas pelo
próprio
poeta
para
designar
diferentes
estágios
que
marcaram sua
trajetória.
Um
exemplo
histórico:
o "datilograffiti", do “Jornal
Dobrabil”, que
designa um
fanzine
de protesto
político,
escrito
à máquina,
em
que
o poeta
incorpora a exploração
espacial
da página
e diferentes
tamanhos
de fontes,
já
praticados pelos
concretistas,
ao prosaísmo do que
chama
de “literatura
de mictório”,
ou
seja, grafites
de banheiro
público.
Ou
o caso
mais
recente
do “barrockismo”, em
que
alia ao rigor
formal
do soneto
o vocabulário
chulo,
o lugar-comum,
a temática
cotidiana
e a provocação.
Ainda
distante
de receber
a atenção
crítica
merecida, Glauco Mattoso é hoje
um
exemplo
raro
em
nossa
literatura,
por
apresentar
domínio
absoluto
(respaldado por
desenvolvimento
teórico)
sobre
as técnicas
que
emprega,
ampla
consciência
do papel
e dos vetores
de sua
poesia,
erudição
aliada
ao uso
variado
e criativo
da cultura
popular,
fisionomia
autoral
inconfundível,
e postura
crítica
provocativa e inconformista
diante
dos mais
diversos
aspectos
sociais.
Não
mais
do que
uma pequena
amostra
do amplo
lastro
de atributos
do poeta,
a entrevista
que
se segue justifica plenamente
essas palavras.
Crítica & Companhia:
Glauco, sua
poesia
se afirma num registro
de escrita
desalinhado do cenário
mais
visível
no país.
O desalinho
não
significa, contudo,
orfandade.
O terreno
por
onde
ela
envereda é, grosso
modo,
o da sátira.
Nomes
como
Marcial,
Catulo, Aretino, Rabelais, Cervantes, Gregório de Matos,
Bocage, Laurindo Rabelo e Apollinaire surgem
naturalmente
como
heranças
literárias.
Mote
Dois
corações
que
se amam,
Sem
falar
se comunicam.
Glosa
A
freira
que
madre
chamam,
E
o frade,
que
é frei
Carvalho,
Sustentam
com
seu
trabalho
Dois
corações
que
se amam.
E
tão
bem
se verificam
Com
manobras
tão
seguras
Que,
trabalhando às escuras,
Sem
falar
se comunicam.
(Laurindo
Rabelo)
Mote
Não
sei quem
diabo
inventou
mulher,
cachorro
e menino!
Glosa
Agora
que
cego
estou,
só
mulher
tem dó
de mim;
macho
zomba! Azar
assim
não
sei quem
diabo
inventou!
Na
fossa
mais
fundo
vou
quando
meu
lado
canino
assumo
e, então,
me
imagino
lambendo
o pé
dum frangote!
De
três
bichos
fiz meu
mote:
mulher,
cachorro
e menino!
(Glauco
Mattoso)
Ainda
que
seja
instigante
considerá-la sobre
o pano
de fundo
de seus
antecessores,
nos
seus
poemas
a sátira
parece ter
efeito
muito
particular.
Será relevante
considerar
que
um
dos
principais
alvos
da sátira
mattosiana seja
justamente
a figura
de seu
autor?
Glauco
Mattoso:
Acho que
no meu
caso
a sátira
é mais
autofágica. Bocage e outros
fazem seu
auto-retrato
em
algum
momento
(lembremos do famoso
soneto
bocagiano em
que
o autor
se diz "bem
servido de pés"),
mas
eu
converto o auto-retrato
em
autoflagelação, um
recurso
que,
ao mesmo
tempo
que
exorciza os fantasmas
e demônios
que
me
assombram, atrai a curiosidade
dita
"mórbida"
da multidão
que
se aglomera na praça
para
ver
o palhaço
cego
ateando fogo
às vestes
e dançando para
divertir
a platéia.
O diferencial talvez
esteja no grau
de desgraça
pessoal,
que,
no plano
literário,
traduz-se em
"maldição
poética":
enquanto
outros
menestréis alfinetavam o poder
político
que
os perseguia ou
a moral
social
que
os patrulhava, eu
parto
da própria
deficiência
física
(da qual
tiro
o nome
de pluma)
para
deblaterar
contra
um
poder
até
mais
alto
e absoluto
– o do dito
Onipotente.
Além
disso, há que
ressaltar
que,
se não
me
engajo numa trincheira
política
(esquerdista ou
direitista)
nem
estética
(passadista
ou
futurista),
não
posso me
apoiar
na cômoda
perspectiva
do maniqueísmo e tenho que
voltar
minha
metralhadora
giratória
para
todos
os lados.
Sendo assim,
meu
poder
de fogo
só
pode ser
efetivo
se eu
partir
do princípio
de que
não
devo poupar
nem
a mim
mesmo.
Só
assim
ganho,
digamos, "autoridade
imoral"
para
sair
dando porrada
em
qualquer
um
e em
todo
mundo.
C&C:
A ótica
da sua
história
pessoal,
do jovem
homossexual
abusado
e humilhado, tem
contrapartida
poética.
A reação
mais
contundente
às
vicissitudes
do passado
parece residir
justamente
numa espécie
de resignação calculada: ao invés
de devolver
o pontapé,
sublima-se o chute,
oferece-se a outra
face,
empina-se o quadril,
venera-se o pé.
Assim,
o objeto
de temor,
a bota,
é transfigurado em
objeto
de desejo.
Fetichizam-se os
mecanismos
de opressão,
desarmando o agressor.
Sua
poesia
leva
o opressor
a confrontar-se com
o próprio
sadismo
por
meio
da postura
masoquista do oprimido?
SONETO
ASSUMIDO [509]
Mattoso,
que
nasceu deficiente,
ainda
foi currado em
plena
infância:
lambeu
com
nojo
o pé;
chupou com
ânsia
o
pau;
mijo engoliu, salgado
e quente.
Escravo
dos moleques,
se ressente
do
trauma
e se tornou da intolerância
um
nu
e cru
cantor,
mesmo
à distância,
enquanto
a luz
se apaga em
sua
lente.
Tortura,
humilhação
e o que
se excreta
são
temas
que
abordou, na mais
castiça
e
chula
das linguagens,
o antiesteta.
Merece
o que
o vaidoso
não
cobiça:
um
título
que,
além
de ser
"poeta",
será
"da crueldade"
por
justiça.
E, por
outro
lado,
em
lugar
da panfletagem contra
as
diferentes
formas
de violência,
ao descrever
com
detalhes
a ação
de quem
violenta,
acaba-se fazendo o leitor
provar,
não
sem
incômodo,
o sabor
de ser
opressor?
SONETO
DELATADO [584]
Atado
ao pau-de-arara,
o preso
aguarda
que
todos
se acomodem. Se depara
ali
o mesmo
informante que
o dedara.
Alguns
vêm à paisana,
outros
de farda.
Início
da sessão.
Alguém
não
tarda
a
rir
do torturado, cuja
cara
contorce-se
em
esgares.
A taquara
penetra-lhe
no cu, que
se acovarda.
A
certa
altura,
todos
tomam parte,
tirando
uma casquinha.
O eletrochoque
funciona
em
cada
mão,
até
que
farte.
Na
boca
o prisioneiro
sente o toque
do
tênis
do cagüeta, o que
mais
arte
revela
quando
um
rosto
chute
ou
soque.
G.M.:
Cada
vez
mais
me
convenço de que
o universo
lógico
no qual
raciocinamos não
é apenas
dicotômico,
como
as noções
binárias da cibernética,
nem
apenas
maniqueísta,
como
os conceitos
éticos
da história,
mas
sim
oximorônico, ou
seja, a dialética
da contradição
humana
se sintetiza em
cada
indivíduo,
que
passa
a ser,
assumidamente ou
não,
mocinho
e bandido
ao mesmo
tempo,
médico
num momento
e monstro
no outro
instante.
Daí por
que
insisto em
desmascarar
no sádico
o impulso
masoquista e vice-versa,
ou
em
desmascarar
nos
humanistas
o que
chamo de "desumanismo". Posso contrariar
o pensamento
de Deleuze, que
acha
ser
impossível
que
um
sádico
compartilhe sua
tendência
com
um
masoquista (já
que
um
quer
que
o outro
não
queira e o outro
faz que
não
quer
o que
quer),
mas
sei que,
no fundo,
o opressor
só
desfruta de seu
poder
ao imaginar
o que
o oprimido
está sentindo, enquanto
o oprimido
se sente mais
oprimido
quando
imagina o que
faria caso
exercesse o mesmo
poder
e tivesse a chance
da vingança...
Em
última
análise,
denuncio a fragilidade
geral
e particular
do homem,
que,
para
desespero
dos nietzschianos, é muito
mais
subumano
que
super-herói.
C&C:
Ainda
tratando o pólo
opressor-oprimido, central
em
sua
poesia,
dois
nomes,
entre
tantos,
vêm à tona:
o do poeta
corsário,
ensaísta
e cineasta
Pier Paolo Pasolini, e o do
dramaturgo
Jean Genet. Que
a sua
poesia
dialogue com
esses
autores,
parece bastante
claro.
Mas
gostaríamos de saber
como,
do seu
ponto
de vista,
esse
diálogo
se estabelece.
G.M.:
Sou cinéfilo (agora
de memória)
e curto
Pasolini, mas
acima
dele curto
o Kubrick de "Laranja
mecânica",
cujo
interlocutor,
no caso,
é Burgess. O interlocutor
de Pasolini é Sade em
"Salò", mas
eu
prefiro me
reportar
ao próprio
marquês
de "Os 120 dias
de Sodoma" para
não
cair
no circunstancial esquerdismo
antifascista. Quanto
a Genet, acho-o mais
autêntico
e espontâneo
quando
recapitula os abusos
que
sofreu, ainda
adolescente,
na FEBEM francesa retratada em
"O milagre
da rosa".
Em
ambos
o que
me
fala
de perto
é a intimidade
com
a crueldade,
e nesse sentido
alguns
me
associam a Artaud, quando
me
rotulam de "poeta
da crueldade".
Digamos que
não
estou falando sozinho
quando
se trata
de reunir
um
grupo
de discussão
em
torno
da arte
humana
de tripudiar
sobre
o semelhante,
que
se discrimina como
"diferente"
apenas
por
pretexto
para
a intolerância...
C&C:
"Não
há arte
revolucionária
sem
forma
revolucionária".
Eis
uma das pedras-de-toque do
Concretismo,
extraída de Maiakovski. Da aplicação
dessa máxima
vanguardista
à sua
poesia
extraem-se duas perguntas:
pode-se falar
num caráter
"revolucionário"
da poesia
nos
dias
de hoje,
ou
mesmo
em
"poetas
revolucionários"?
Segundo:
você
se assume como
um
dos
responsáveis
por
transformar
o soneto,
forma
tradicionalíssima, em
modelo
de
transgressão,
ou
espaço
de experimentação, numa poesia
contemporânea
em
que
se banalizou o verso
livre?
G.M.:
Cada
geração
literária
busca
conquistar
seu
espaço
fazendo o máximo
de barulho
em
torno
daquilo que
propõe como
algo
novo.
Na verdade
o que
prevalece é o velho
conceito
bíblico de que
não
há nada
de novo
sob
o sol.
O que
há é mais
ou
menos
conhecimento
de causa,
mais
ou
menos
rigor.
Os concretistas
primaram pelo
"ostinato rigore" e temos que
tirar
o chapéu
para
eles.
Os modernistas também
entendiam do riscado,
diferentemente
dos atuais
poetas,
que
ouvem cantar
o galo
sem
saber
onde,
e só
praticam o verso
livre
porque
não
conhecem outra
maneira
de versejar.
Um
Mário de Andrade, tal
como
um
Augusto
de Campos,
sabia
perfeitamente
como
compor
um
soneto
dentro
do cânone.
Mário chegou a fazer
alguns,
por
sinal
belíssimos, e o próprio
Augusto
me
disse que
só
fez dois
ou
três
porque
não
quis fazer
mais.
Mas,
quando
eu
conversava com
ele
sobre
metrificação, notei como
é exímio
conhecedor
das regras.
Isso
é o que
legitima um
discurso
vanguardista,
ou
"revolucionário",
como
queiram: transgredir
sabendo exatamente
o que
se está transgredindo. Mas
quando
aquela transgressão
se generaliza e se banaliza, já
não
há transgressão,
assim
como
já
não
há revolução
quando
o poder
conquistado se torna
totalitário. Eu
uso,
sim,
o soneto
como
laboratório
para
meus
desvarios
fetichistas e meus
desaforos
desumanistas, mas
não
me
pretendo messiânico nem
fundamentalista:
só
espero que
os mais
informados percebam que,
quando
sigo regras,
é porque
as reconheço, e, quando
as quebro, é porque
as conheço.
C&C:
Sua
"Teoria
do Soneto",
ainda
não
saída
em
livro
mas
disponível
no site
oficial,
contribui para
o estudo
e
compreensão
do gênero.
Aí
se obtêm classificações esclarecedoras do ponto
de vista
crítico-didático. Os sonetos
que
se voltam ao próprio
"desafio
da
composição
e à
responsabilidade
do sonetista",
são
chamados de “metassonetos”. Os que
descrevem a marcha
da própria
construção
do soneto:
“processonetos”. Alguns
respectivos
exemplos
fornecidos por
você:
SONETO
XX
Amo
o soneto
porque
é molde
antigo
para
dizer
as cousas sempre
novas;
porque
depois
de não
sei quantas provas,
um
pudor
virginal guarda
consigo.
O
soneto
é mais
puro
do que
as trovas.
Sim,
Bem-Amada, eu
nele apenas
digo
tudo
que
é nobre
em
mim,
tudo
que
aprovas
e
é meu
prêmio
na vida,
e é meu
castigo.
É
fino
e breve,
e tem segredos
de arte;
Uma
pureza,
enfim,
tão
cintilante
que,
quando
um
dia
desejei cantar-te,
os
teus
encantos
rútilos,
diversos,
pus
em
soneto;
e desde
aquele
instante,
só
sei rimar-te com
quatorze versos.
(Sílvio
Valente)
SONETO
VAZIO
Se
este
é o primeiro
verso
de um
soneto,
eis
o segundo
do soneto
acima.
Terceiro
verso:
Santo
Deus,
que
meto
agora
aqui
no quarto?
Desanima!
E,
lido o quinto
verso,
lhes
prometo
um
sexto!
E atenção,
que
já
termina!
No
sétimo,
reparo
que
o quarteto
acaba
neste oitavo.
E tome a rima!
E
aqui,
meu
nono
verso,
meus
senhores,
no
décimo,
sugiro-lhes paciência,
do
undécimo
habilmente me
descarto!
Duodécimo:
E que
tal
falar
de amores?
Mas...
Décimo-terceiro! A penitência
tem
chave
de ouro,
enfim:
décimo-quarto!
(Eno
Teodoro Wanke)
Você
mesmo
cria,
batiza e pratica uma nova
espécie
de soneto
quanto
à disposição
das estrofes:
o "Paulindrômico", cuja
estrofação dístico
/ terceto
/ quarteto
/ terceto
/ dístico
procura
o "movimento
palindrômico":
SONETO
TORRESMISTA [426]
Não
basta
a ditadura
que
já
dura
e
vem a ditadura
antigordura!
Saímos
do regime
militar,
caímos
no regime
do regime.
Censuram-nos
até
no paladar!
Trabalho,
horário,
imposto,
compromisso.
Orgasmo
não
se tem como
se quer.
Só
sobra
o bom
do garfo
e da colher,
e
os nazis nariz
metem até
nisso.
Maldita
seja a mídia,
sempre
a dar
espaço
à medicina
que
reprime!
Gestapo
da "saúde"
e "bem-estar"!
Resista!
Coma!
Abaixo
a ditadura!
A
luta
tem um
símbolo:
FRITURA!
São
várias espécies
examinadas. Mas
há uma bem
abastardada que
não
parece ter
chamado sua
atenção.
Com
o
modernismo,
que
militou contra
o molde
de 14 versos
banalizado à época,
muitos
poetas,
desorientados que
ficaram, compuseram peças
em
versos
livres
ou
polimétricos à sombra
da forma
consagrada. Era
um
tipo
de “soneto
elástico”,
podia ter
mais
ou
menos
de 10 a 18 versos
de qualquer
extensão
e variáveis
entre
si.
O tamanho
e
organização
das estrofes
também
furavam as regras,
mas
o poema
buscava a proporção
do soneto;
tematizava, expunha e concluía um
assunto.
Você
concorda quanto
a essa presença
clandestina
e poderosa
do soneto?
Dois
exemplos
de
conhecedores
do soneto
clássico
que
passaram ao verso
livre:
NOITE
As
estrelas
não
são
fictícias, são
existentes,
Mas
parecem fictícias...
Todos
os sonhos
são
verdadeiros
Mas
parecem mover-se num plano
irreal.
É
de mim
que
nasce o mal,
Todas
as coisas
são
puras.
Sou
como
um
morto
andando à toa.
Oh,
este
pensamento
Não
vem de mim,
vem do alto.
Tive
de pensá-lo porque
se fez presente
Como
o abismo
ao suicida.
Desejo
transcendê-lo
E
transformar
o mal
imaginário
Num
bem
presente
e invisível.
(Dante
Milano)
PENSÃO
FAMILIAR
Jardim
da pensãozinha burguesa.
Gatos
espapaçados ao sol.
A
tiririca
sitia os canteiros
chatos.
O
sol
acaba de crestar
os gosmilhos que
murcharam.
Os
girassóis
amarelo!
resistem.
E
as dálias,
rechonchudas, plebéias, dominicais.
Um
gatinho faz pipi.
Com
gestos
de garçom
de restaurant-Palace
Encobre
cuidadosamente a mijadinha.
Sai
vibrando com
elegância
a patinha
direita:
-
É a única
criatura
fina
na pensãozinha burguesa.
(Manuel
Bandeira)
G.M.:
Não
concordo que
um
poema
estrófica e metricamente aleatório
possa ser
considerado como
soneto.
Não
considero nem
o estrambote como
algo
válido,
a não
ser
como
filigrana
supérflua
no
exibicionismo
da perícia
do poeta.
Qualquer
poema,
seja ou
não
composto
em
molde
fixo,
pode desempenhar
satisfatoriamente a função
silogística do soneto
ou
dialógica
da glosa
– desde
que
o autor
não
esteja apenas
divagando e se proponha a desenvolver
o tema
de forma
conseqüente.
Não
estou desmerecendo o poema
livre
nem
o tema
vago,
pois
também
valorizo o nonsense,
o surrealismo
e até
o bestialógico.
Mas
se queremos um
soneto
temos de ter
catorze
versos,
como
temos um
haicai
com
três,
uma trova
com
quatro,
um
limerick com
cinco
e uma glosa
com
dez.
Podemos, sim,
variar
na disposição
das estrofes
(e por
isso
mesmo
existe o molde
petrarquiano
e o shakespeariano), mas
a dosagem
é essencial.
Quando
criei o "Paulindrômico" e outros
do mesmo
tipo
era
para
aprimorar
uma proposta
do Paulo Henriques Britto, mas
sem
sair
da posologia
dos catorze
decassílabos heróicos
(ocasionalmente
sáficos). Já
as designações de "metassoneto" e de "processoneto"
eu
as propus unicamente como
alusivas a soluções
temáticas
auto-referentes à técnica
do sonetista:
mero
detalhismo
terminológico.
C&C:
Glauco, hoje
você
é dos nossos
maiores
recicladores de formas
poéticas
tradicionais, inclusive
das enraizadas na poesia
popular,
especialmente
nordestina. Do ponto
de vista
técnico,
que
alterações significativas você
realizou nessas formas?
G.M.:
Nada
de importante,
quanto
à forma:
apenas
faço questão
de privilegiar
a sinérese, ao passo
que
os cordelistas e repentistas
aceitam mais
naturalmente
a diérese.
Assim,
enquanto
o verso
deles me
parece ora
frouxo
ora
de pé
quebrado,
na dicção
popular
nordestina soam justos
porque
o cantador
não
funde os encontros
vocálicos
e mantém hiatos
tipo
"com
muito
jeito
e agrado"
(e/agrado)
em
Moysés Sesyom ou
"por
que
tamanha
judiação" (judi/ação)
em
Luiz Gonzaga/Humberto Teixeira. Mas
no tratamento
temático,
aí
sim,
sou bastante
anticonvencional, pois,
ao contrário
dos glosadores
e pelejadores que
se vangloriam de seus
méritos
e suas
virtudes,
alardeando bravura
e virilidade
(postura
que
chamo de "cabramachismo"), eu
me
"inglorifico" como
o anti-herói
cego,
gay
e masoquista, que
alardeia seus
fiascos
e vícios
(postura
que
chamo de "xibunguismo").
C&C:
Ideologicamente falando, ocorre-nos que
sob
a máscara
de uma poesia
libertina
você
tenha produzido uma poesia
libertária.
Você
vê
algum
prejuízo
ao se estabelecer
tal
diferença
para
descrever
sua
obra?
G.M.:
Pelo
contrário,
se alguém
identifica um
alcance
ético
no meu
projeto
antiestético
e um
alcance
humanista
no meu
desumanismo, é porque
consegui passar
aquela vocação
oximorônica, intrínseca
ao que
chamo de "barrockismo" no verso,
isto
é, a capacidade
de "duplipensar"
positivamente,
não
a serviço
da opressão,
como
sugeria Orwell, mas
a serviço
da desrepressão.
C&C:
Podemos considerar
que
uma das suas
fontes
literárias é aquilo
que,
fora
do plano
da escrita
mais
comum,
se configura como
aliterário,
antiestético.
Que
efeito
de sentido
você
busca
produzir
quando
transforma o abjeto
em
poético?
G.M.:
Antes
de mais
nada,
quero desabafar
contra
a maior
das indignidades
para
um
ser
vivo,
a privação
de uma aptidão
vital
como
a visão,
a audição
ou
a locomoção.
Não
importa se tal
mutilação
foi causada pelo
próprio
homem
– como
no crime
comum,
na tortura
policial
ou
na atrocidade
da guerra
– ou
pela
dita
"vontade
divina".
Essa é a maior
obscenidade:
a injustiça.
Fora
disso, qualquer
tabu
– inclusive
os higiênicos
– pode ser
revertido em
gozo,
como
compensação
para
os traumas
sofridos. Assim,
como
já
foi lembrado aqui,
o masoquismo
irônico
compensa a barbárie
franca,
e o sadismo
cínico
compensa a civilidade
hipócrita.
C&C:
Por
curioso
que
pareça, Mário de Andrade usava o adjetivo
"viril"
para
qualificar
poesia.
A sua
identidade
gay
é também
literária,
Glauco?
G.M.:
Se considerarmos a estratégia
xibunguista como
um
mecanismo
de transgressão
ética
e estética,
bem
como
o fetichismo
andropodólatra nos
sonetos
mais
explícitos,
a resposta
é sim.
Alguns
acadêmicos
nos
States e na Europa estão analisando minha
obra
à luz
das teorias
mais
recentes,
como
a da
sensibilidade
"queer", e concluem que
já
nem
se trata,
no meu
caso,
duma reafirmação
da identidade
gay
como
questionamento
da heterossexualidade,
mas
sim
duma proposta
alternativa
(portanto
mais
que
pós-moderna) que
desvia
o foco
das territorialidades erógenas (falocentrismo, penetracionismo, analidade,
etc.) e aponta para
uma diversidade
mais
"neutra"
ou
degenérica – afinal,
o pé
em
si
não
tem sexo...
C&C:
A cegueira,
por
decorrência
do glaucoma,
não
lhe
roubou a veia
poética.
Mas
o levou a esmerar-se na forma
fixa.
Um
programa
especial
de
computador
sonoriza as palavras,
devolvendo a você
aquilo
que
digita. Você
produz
mentalmente
todo
o poema
e só
depois
o transcreve? Como
se dá esse
processo?
G.M.:
Já
tentei explicar
isso
várias vezes,
mas
só
consigo
achar
alguma pista
na bruxaria
pura.
Acontece que
só
digito no computador
falante
durante
o dia,
pois
à noite
ele
ecoa mais
alto
e perturba o sono
alheio.
E acontece, porém,
que
a maioria
dos sonetos
mais
"vomitados" me
vinha
no meio
da noite,
quando
eu
já
estava deitado
e não
podia levantar
para
ligar
o computador.
Então
a coisa
se passava como
se fosse uma possessão
demoníaca: entre
os constantes
pesadelos
e a conseqüente
insônia,
a masturbação
e o orgasmo
faziam o contraponto.
Nesse intervalo,
os versos
iam se formando na cabeça
e a memória
ia registrando, com
tamanha
nitidez
que,
mesmo
depois
de voltar
a dormir
e sonhar,
eu
era
capaz
de recuperar
todo
o soneto
na manhã
seguinte,
quando
o digitava e salvava. Hoje,
que
já
completei os mil
sonetos
que
planejei, até
parece que
tudo
não
passou dum transe,
mas,
como
creio em
influências
esotéricas (nada
a ver
com
psicografia), acho que
fui, de alguma forma,
"assistido" pelos,
digamos, desencarnados...
C&C:
No "Jornal
Dobrabil", também
em
publicações como
"Revista
Dedo
Mingo", "Memórias
de um
Pueteiro" e "Línguas
na Papa",
você
explorou o espaço
visual
da página,
a
tipografia
das letras,
evidenciando a herança
concretista.
É o que
você
batizou de "datilograffiti" - uma
caricatura
do movimento.
Você
manteve contato
com
o grupo
concretista?
Depois
a sua
poesia
deixou de lado
essas
experiências,
vieram a cegueira
e, por
decorrência,
as formas
fixas.
Independentemente
de sua
trajetória
pessoal,
você
considera a poesia
concreta
datada,
ou
visualiza um
legado
produtivo
deixado pelo
grupo
para
as gerações
seguintes?
G.M.:
Nunca
perdi o contato
com
os concretistas,
mestres
ou
discípulos.
Claro
que
a contribuição
do concretismo
marcou toda
a minha
geração
e na certa
continuará produzindo efeitos
em
futuras gerações.
Mas
como
na história
literária
tudo
é cíclico, a tendência
é que
o concretismo
seja considerado superado (como
o soneto
já
foi considerado), até
que
alguém
o revisite, recicle, releia, recrie, ou
algo
assim
-- sabe-se lá
que
termo
seria então
usado, talvez
"redesconstrução", ou
"neodesconstrutivismo", ou
"verbivoco-revisionismo"...
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