Em Pleno Mar – à bordo dos navios de Castro Alves, Samuel Taylor Coleridge,
J. M. William Turner e Gustave Doré

Caio Gagliardi(*)

Quando aceitamos como descritor da poesia de Castro Alves o rótulo abolicionista, enfatizamos aquele que é possivelmente seu aspecto histórico mais determinante. A legitimidade dessa leitura não delimita, contudo, uma fronteira de atuação crítica, posto que a ela se acrescenta uma perspectiva dialética.

Advoga a favor de livros como Os Escravos e Espumas Flutuantes a consideração de que ali a realidade da poesia não adere à realidade presente, antes a superdimensiona, emprestando ao escravo, em geral em poemas de maior fôlego, uma dimensão mais abrangente do que a tradicional denúncia epidérmica. Desse ponto de vista, dizer simplesmente abolicionista significa alargar o alcance do termo para além da alcunha participante, demarcada espaço-temporalmente. 

Se, de um ponto de vista ideológico, o motor de parte importante da poesia de Castro Alves funciona em defesa de uma causa social, seu comprometimento não faz dela poesia de circunstância, e nesse sentido destinada a perder o viço conforme as transformações no sistema de organização social desabilitem a produção textual do empenho na denúncia. 

Além do gradativo reajuste estrutural da sociedade, observado nas primeiras décadas do século XX, com o lento processo de inclusão do negro no mundo proletário, pese-se a superação da própria noção abolicionista. No que tange a esse aspecto, em 1939 um Mário de Andrade fatigado e escoltado pela luz da distância apontava para a posturapiedosa” de Castro Alves, que, nas palavras do modernista, o impedia de considerar a igualdade humana uma necessidade moral, tratando-a como conquista: 

Castro Alves jamais ergue os escravos até sua altura, mas se abaixa até os seus irmãos inferiores. A África não é uma grandeza diferente, é uma infelicidade. “Minhas irmãs são belas, são ditosas” dizem as geniais Vozes da África, num engano prestidigitador de visão... Ou melhor: numa mentira convencional, imposta pela piedade...(1)

Sumariamente, ambas as ponderações indicam que o problema crítico da “datação” de Castro Alves reside na dificuldade de superação de uma relação unívoca entre obra de arte e sociedade. Superá-la significa gerar mecanismos, inventar perspectivas, colher indícios que sirvam de respaldo para interpretar a poesia de Castro Alves com relativa independência da escolta ostensiva da realidade coletiva de seu tempo, possivelmente numa zona de tensão dramática entre os desígnios naturais de um destino humano, e os percalços, os desajuntamentos históricos, que a ele se interpõem. São, de um ângulo mais aberto, essas as forças geradoras e de vetores opostos que conferem longevidade ao poeta.

Uma síntese clara dessa dialética de longo alcance:

Assim, pois, há inicialmente em Castro Alves o sentimento da história como fluxo, e do indivíduo como parcela consciente deste fluxo. Por isso logrou uma visão larga do escravo, que não é para ele apenas caso imediato a ser solucionado, mas símbolo de uma problemática permanente, termo e episódio do velho drama da alienação do homem, que sente, como bom romântico, em termos de luta perpétua entre o bem e o mal.(2)

Parto aqui dessa perspectiva, porque ela possibilita traçar rotas mais longas e menos previsíveis pela lírica social castroalviana: se o drama imediato da escravidão traz em seu bojo uma tensão permanente, da qual ele é um exemplo histórico, podemos alimentar essa perspectiva de uma atitude crítica pautada em relações menos diretas entre o texto e seu lugar e momento de produção.

Deslocada de seu contexo imediato, essa poesia suscita, por intermédio de inúmeras citações e epígrafes, um aparato de referências com papel muitas vezes decisivo na constituição de seus textos. Nesse âmbito, atitude corrente é atentar para as relações que existem entre o poeta e Victor Hugo. Aproximações menos previsíveis que essa – simplesmente por não serem antecipadas como epígrafe, no corpo dos poemas – produzem, contudo, efeitos de leitura importantes e que requerem especial atenção.

É este o caso. Com esse fim, passo à leitura d’ “O Navio Negreiro”, poema dentre aqueles do autor que produziram maior ressonância em seu tempo, e que deram voz aos ideais libertários opostos à identificação da nação com um mundo ainda estruturalmente colonial.

À propósito do poema, em Dialética da Colonização, Alfredo Bosi faz menção a “Das Sklaver Schift”, de Heinrich Heine, vertido para o português por Augusto Meyer como “O Navio Negreiro”. Bosi afirma que, segundo o tradutor, Castro Alves teria conhecido a versão francesa em prosa do poema de Heine, publicada na Revue des Deux Mondes, bastante veiculada no Brasil daquele tempo. Segundo Bosi, o próprio Meyer reconhece, todavia, as diferenças estilísticas entre os dois textos: “Heine fala do comércio negreiro de modo objetivo, seco, escaninho; Castro Alves o faz com uma dicção oratória e patética.”(3)

Consideração da mesma espécie se encontra nas Obras Completas de Castro Alves, de 1921, em que Afrânio Peixoto compartilha da perspectiva de Mucio Teixeira:

Para rebater a insinuação que lera algures, de ser o “Navio Negreiro” uma versão, ou transposição, ou reminiscência d’ O Negreiro de H. Heine, Mucio Teixeira (Vida e Obra de Castro Alves. Bahia: 1896, p. 205, etc.) publica este, por confronto, traduzido em prosa. Além de uma cena terrível de tráfico de escravos (que, nem Heine, nem Castro Alves inventaram) a idéia que domina nos dois é o contraste trágico da dança dos desgraçados, ainda a chicote, para a distração da nostalgia que os fazia morrer. Certamente realidade contada por algum negreiro, que inspirou a ironia de Heine, como a piedade de Castro Alves.(4)

Direta ou indiretamente, por força da leitura ou tradição, parece que um texto que pode ser visto com maior rigor estético como parent poem do texto em pauta é o poema longo de Samuel Taylor Coleridge (1772-1834), “The Rime of Ancient Mariner”.(5)

Poema narrativo em tom declamatório, o “Ancient Mariner remonta à oralidade dos fins da Idade Média tanto no estilo quanto na metrificação, que se mantém fiel às antigas baladas populares. O uso do inglês arcaico e das pequenas glosas ao lado dos versos corrobora a obtenção desse efeito. No tocante à estrutura, alguns anacronismos possibilitam identificar o poema em seu tempo. A temática marítima, incomum na Idade Média, evidencia uma concepção moderna em retrospectiva, remodeladora da tradição medieval.

Tradicionalmente, as baladas são poemas de três estrofes com oito versos cada e uma meia-estrofe chamada envoy, cujo último verso repete os últimos das demais. O envoy traz uma mensagem à pessoa para quem se refere ou que anuncia. O que mais chama a atenção nesse tipo de texto é o esquema rigoroso das rimas: ababbcbc nas três primeiras estrofes, e bcbc no envoy. a estrutura do poema de Coleridge é assimétrica, a começar pela quantidade de estrofes, próxima a 150, com 4, 5, 6 e 9 versos, e rimas variáveis.

O texto lida com o sobrenatural, e pode ser visto, inclusive, como um dos ancestrais da chamadaliteratura fantástica”, que recebeu estatuto de gênero literário bem mais tarde. Há uma aura de mistério que ao mesmo tempo aterroriza e vivifica sua leitura, provocando um arrebatamento de natureza atípica nas antigas baladas de Chaucer (1340?-1400), por exemplo. Trata-se da narrativa de um navio amaldiçoado pelo espírito de uma ave, depois de ela ser arbitrariamente morta por um de seus tripulantes. A maldição principia com o cessar do vento e a aparição de um navio espectral, que navega sem velas. O poema tem no moralismo cristão a sua face ética, que se revela explicitamente nos últimos versos.(6)

Essas características preliminares, como o apelo ao sobrenatural, a idéia de maldição, a incorporação da moral cristã e a volta ao passado são constantes na poesia de Castro Alves. Note-se, por exemplo, como o poeta condensa parte desse repertório na seguinte passagem de “Lúcia” (1868):

(...)
De repente, lembrei-me... “Lúcia! Lúcia!”
... A mulher voltou... fitou-me pasma,
Soltou um grito... e, rindo e soluçando,
Quis para mim lançar-se, abrindo os braços.
...Mas, súbito, estacou... nuvens de sangue
Corou-lhe o rosto pálido, sombrio...
Cobriu co´a mão crispada a face rubra,
Como escondendo uma vergonha eterna... 

Depois, soltando um grito, ela sumiu-se
Entre as sombras da mata... a pobre Lúcia!(7)

O assombro de Lúcia, num misto de horror e desvario, é amplificado pelo peso da pontuação, pela tensão das pausas e da linguagem enxuta, e, sobretudo, pelo teor sombrio e misterioso que advém da suspensão de algo que a jovem segreda, e que não é revelado ao leitor. As correspondentes imagéticas em antítese, “rosto pálido” X “nuvens de sangue” (com evolução paraface rubra”) e sua expressão sonora “soltando um grito” compõem ainda uma atmosfera de tensão psicológica, em que o horror não é explicado como motivação lógica no corpo do texto. O desfecho em seqüência ao grito, com o desaparecimento de Lúcia “Entre as sombras da mata...”, evoca o universo místico do “Ancient Mariner”, por ocasião do repentino surgimento e desaparecimento do navio fantasma. Passemos, portanto, aos poemas. 

Um ponto imagético funciona como elo entre o texto em inglês e “O Navio Negreiro”. No caso de Coleridge, a figura do “Albatroz” é central, que é sua morte que marca o princípio do que se pode identificar como sobrenatural no texto – é a partir daí que se procede a evolução temática do poema. em Castro Alves, o “Albatroz” aparece como evocação mística, porém dotado de uma carga semântica muito próxima à que lhe confere o poeta inglês.

Enfim passou por nós, bem alto, um Albatroz,
Vindo da cerração;
Em nome do Senhor nós o saudamos, como
Se fosse outro cristão.
Comeu o que jamais comera, e na altura
Volteava sobranceiro;
Rompeu-se o gelo então co´o estrondo de um trovão...
Passou o timoneiro! 

E do sul um bom vento nos soprava alento;
O albatroz nos seguia,
E à nossa saudação, por fome ou diversão
Buscava todo o dia!”                                      

S. T. Coleridge (p. 43)      

Uma forte tempestade impele o navio ao pólo sul. O frio e o isolamento anunciam uma desgraça iminente. É quando a aparição do Albatroz traz sorte aos tripulantes. O vento começa a soprar e os blocos de gelo vão sendo vencidos. 

Eis a referida imagem pelo traço inconfundível de Gustave Doré.(8)

N´“O Navio Negreiro”, o albatroz é também evocado como símbolo de sorte, por trazer ao mesmo tempo segurança e agilidade para a embarcação:

Albatroz! Albatroz! águia do oceano,
Tu que dormes das nuvens entre as gasas,
Sacode as penas, leviathan do espaço,
Albatroz! Albatroz! dá-me estas asas.”

C. Alves (p. 94) 

Aqui a ave é saudada e evocada em apóstrofe, o que anuncia a sua carga simbólica pressuposta. Não se trata apenas de um animal que compõe a paisagem do poema, mas de uma referência a um universo de conotações que, se não são determinadas, mostram-se delimitadas: em ambos os casos a ave é relacionada ao universo teológico, mas em regimes claramente contrários. Assim, “Em nome do Senhor nós o saudamos, como / Se fosse um outro cristão” contrasta com “Sacode as penas, leviathan do espaço”. A idéia de símbolo místico é reforçada na descrição do surgimento da ave, isto é, como uma aparição: no poema inglês, “Vindo da cerração”; e no brasileiro, “Tu que dormes das nuvens entre as gazas”. Contribui ainda para a construção de um símbolo místico a própria grafia da palavra: Albatroz, com a inicial em maiúscula. 

Não é difícil identificar o momento nuclear de cada poema. Na “balada” de Coleridge, a morte da ave; no poema “condoreiro”, a revelação da tripulação do navio. O modo como esses instantes se apresentam é bastante similar. Ambos situam-se na parte mais breve dos textos, como que para marcar uma transição em direção a seu ponto de maior tensão, no primeiro, enfatizada por episódios sobrenaturais, no segundo, pela descrição elevada da visão chocante dos escravos agrilhoados na embarcação. O efeito causado por esses trechos é o mesmo — o  assombro: 

Velho Marujo! Deus te salve dos demônios
Que de ti vão empós...
Que olhar! Que te molesta? Com a minha besta
Eu matei o Albatroz.” 

S. T. Coleridge (p. 43)

Do mesmo modo, portanto, é uma revelação tétrica que se anuncia n´“O Navio Negreiro”:

“Desce do espaço imenso, ó águia do oceano!
Desce mais... inda mais... não pode olhar humano
Como o teu mergulhar no brigue voador!
Mas que vejo eu ahi... Que quadro d´amarguras!
É canto funeral!... Que tétricas figuras!...
Que cena infame e vil... Meu Deus! Meu Deus! Que horror!” 

C. Alves (p. 95) 

Uma possível imagem dos escravos sendo transportados pelo navio negreiro é a tela intitulada Navio Negreiro, de Rugendas.(9)

Mas de modo diverso do que se percebe em Rugendas, nos poemas a revelação é feita a partir da perspectiva da ave. Enquanto no “Ancient Mariner” é a sua morte a causadora da condenação do navio, no texto de Castro Alves é pelo olharhumano”, que a ave adquire na descrição do poeta, que se pode ver a cena apavorante. O Albatroz torna-se então sinistro e sombrio. De ave de bom augúrio passa a mensageiro da morte. Interessante é notar que, apesar de n’“O Navio Negreiro” a ave não ser a causa do drama descrito, ela é designada como “leviathan”, ao passo que, no poema de Coleridge, embora ela tenha essa conotação negativa como motor da narrativa, é descrita “como se fosse outro cristão”. É que matar outro cristão torna-se sinônimo de danação nesse poema, enquanto que, no texto de Castro Alves, “leviathan” faz bem o papel de mensageiro da morte.

A desgraça se abate sobre a embarcação de Coleridge — o vento cessa. O brilho do “Veleiro brigui”, por sua vez, transforma-se no brilho do horror nos olhos da ave e dos tripulantes da embarcação. A tragédia paira sobre suas almas como um recesso anímico por dois crimes cometidos contra a natureza: o cárcere de seres humanos e o assassinato da ave. A idéia de pecado está latente nos dois poemas.

Na literatura inglesa, a imagem do Albatroz aparece geralmente como símbolo místico de bons presságios e, qual amuleto, alvo de superstição. No belo poema de D. H. Lawrence (1855-1930), “Snake”,(10) num dia muito quente, em que ainda de “pijamas” o sujeito do poema decide se refrescar numa bica d’água, no quintal de onde mora, surpreende-lhe a imagem de uma serpente que, à semelhança de umconvidado sem cerimônia, mata a sede em sua fonte. Após hesitar um instante entre a covardia e a perversidade de matá-la, e a satisfação e a honra de contemplá-la, o eu lírico é tomado por uma espécie estranha de horror ao perceber suasinuosa” e “vagarosa retirada. Frente à cena de “pavorosa deliberação do réptil “dando as costas para si, eis que se precipita sobre ele:

“Olhei ao redor, depositei meu jarro,
Peguei um toco de pau
E lancei-o ao bebedouro provocando estrondo.”(11)

Mas o ato vem seguido de arrependimento, e da leda esperança de não ter acertado o alvo. E uma espécie de exame de consciência se sucede:

Mas logo dei por mim.
Pensei: quão vil, quão vulgar, que ato insignificante!
E desprezei a mim e as vozes de minha execrável educação humana.”
E pensei no albatroz
E desejei que voltasse, minha serpente.” 

A singularidade do verso, sem explicações, “E pensei no albatroz”, é conferida pela referência clara (daí o artigo definido em “no”) ao, digamos assim, Albatroz de Coleridge, como símbolo da estupidez humana. A citação faz com que a serpente assuma paralelamente a mesma função que tem a ave no “Ancient Mariner”. As mortes sem justificativa de dois animais funcionam como meio de exploração dos subterrâneos da condição humana. O velho marujo sofrerá as conseqüências do ato, o que constituirá o clímax do poema. em “Snake”, a penitência é apenas mencionada: 

“E então, perdi minha oportunidade com um dos senhores
Da vida.
E tive algo a expiar;
Mesquinhez.” 

A morte do Albatroz começa a ser expiada. O navio permanece estagnado em meio ao oceano, o calor e a aridez castigam a tripulação. O velho marujo convive com a própria culpa e a ira de seus companheiros. 

De repente, avista-se uma bruma ao longe, que aos poucos vai se revelando outra embarcação. Uma ligeira euforia contagia a tripulação, mas logo é interrompida: o navio avança ligeiro, sem vento ou correnteza. Os homens deparam-se com a possibilidade de se tratar de um navio fantasma, do espírito da morte que se aproxima. A escuridão é total. E inexplicavelmente a maldição temida recai sobre a tripulação (com exceção ao velho marinheiro), que tomba morta: 

Suas almas voaram... para a danação,
Ou para a eterna paz.
E essas almas silvavam, ao passar por mim,
Qual minha seta o faz.”         

S. T. Coleridge (p. 53) 

Doré ilustra o princípio da cena assustadora, em que, em meio às trevas, poucos marujos ainda lutam para manter as velas arriadas, apontando para cima, para a dantesca visão, enquanto que a maior parte dos companheiros jaz a seus pés. O velho marinheiro, de costas para o ponto de fuga dos olhares, e com a mão esquerda elevada à testa, entre pensativo e assustado, mas incólume a seus efeitos, observa tudo à distância:

A proximidade entre essa estrofe e a final da parte IV d’“O Navio Negreiro” é flagrante:

E ri-se a orchestra irônica, estridente...
E da roda fantástica a serpente
Faz doudas espiraes...
Qual n’um sonho dantesco voam!...
Gritos, ais, maldições, preces ressoam!
E ri-se Satanaz!...” 

C. Alves (p. 97) 

O segundo e o terceiro versos de Castro Alves: “E da roda fantastica a serpente / Faz doudas espiraes...” lembram a seguinte imagem de Coleridge:

Além da sombra do navio, serpentes d’água
Vejo em minha agonia:
Movem-se em trilhas de candura que fulgura,
E, quando se erguem chrispam lâminas de alvura
Duas luzes de magia.” 

S. T. Coleridge (p. 55) 

A certa altura, dominada por força desconhecida, a nave de Coleridge ganha velocidade e dispara em alto mar, “...como um cavalo escavador que é solto / Saltou inesperado;”: 

Veloz, veloz voava a nave suavemente
Velejando porém;
E branda, branda brisa para mim soprava
Para mim, mais ninguém.” 

S. T. Coleridge (p. 69) 

Paralelamente, o ganho de velocidade da nave imaginada por C. Alves é acompanhado pela perspectiva de um observador que está fora dela, ou, quando assume o olhar do Albatroz, acima dela:

Porque foges assim barco ligeiro?
Porque foges do pavido poeta?
Oh! Quem me dera acompanhar a esteira
Que semelha no mar — doudo cometa!” 

C. Alves (p. 98) 

Num outro poema do mesmo Os Escravos, o poeta retoma uma imagem inexistente n’“O Navio Negreiro”, mas recorrente no “Ancient Mariner”: a da embarcação fantasma. pelo título, “A Canôa Phantástica”, fica clara a semelhança da escolha imagética. Alguns trechos desse poema remetem-nos ao de Coleridge: 

Mas não branqueja a vela!
N’água o remo não ressôa!
Serão phantasmas, que descem
Na solitária canôa.” 

C. Alves (p. 178) 

No “Ancient Mariner”, deparamo-nos com: 

“Vede! Vede! (Gritei) — Não mais vacila! Vem
Salvar-nos certamente;
Navega firme com a quilha levantada,
Sem vento, sem corrente!” 

S. T. Coleridge (p. 49) 

Um outro paralelo entre esses dois poemas é ainda pertinente. N’“A Canôa Phantastica”: 

Que vulto é este, sombrio,
Gelado, immovel, na prôa?
Dir-se-lhia o genio das sombras
Do inferno sobre a canôa!”  

C. Alves (p. 179) 

Trata-se, visivelmente, do mesmo efeito buscado por Coleridge em: 

“Seria essa Mulher sua tripulação?
Ela seria a MORTE? Ou ambas estão?
A MORTE é a companheira?” 

S. T. Coleridge (p. 49) 

Mas no poema de C. Alves, a imagem do cadáver de Maria, “gênio das sombras do inferno”, que está sobre a canoa, é atenuada por um final lânguido, suavizado pela presença das flores róseas embaraçadas em seu cabelo, enquanto a canoa segue pelo rio. É a presença de um locus amoenus no texto, como a calmaria depois da tempestade, que atenua o derradeiro fim. no “Ancient Mariner” a morte significa castigo. Sua chegada é repentina como uma praga de efeito instantâneo que se dissemina pela tripulação. A morte aqui não encerra nada, mas principia a danação, que o marujo, que é o sujeito poético, permanece vivo para cumprir a pena. É justamente explorando a perspectiva dele que o poeta consegue amplificar o horror ao incognoscível. Em “O Navio Negreiro”, por seu turno, o que choca é o horror ao real. Incorporada à imagem dos escravos no porão da embarcação, a morte está cristianizada, associada à moléstia e à expiação, ao sacrifício e à penitência, e, sobretudo, à injustiça. Daí o caráter social do poema, inexistente no de Coleridge. A discriminação de uma “raça” identifica, em suma, o calvário de Jesus. 

Há, portanto, e deve-se atentar para não minimizá-las, diferenças fundamentais entre os textos, que se referem, com efeito, ao motivo básico de cada um, mas que não excluem semelhanças de ordem estrutural, imagética, semântica e simbólica entre eles. 

No “Ancient Mariner”, o horror está associado à escuridão e ao silêncio. Trata-se do momento em que o vento cessa. O cenário é de estagnação, e tem uma forte ressonância psicológica, por provocar o temor imediato que precede alguma tragédia. EmDespertar para Morrer”, C. Alves explora a temática sobrenatural através do diálogo condensado de duas personagens amedrontadas diante do desconhecido. O sentido explorado é exclusivamente a audição, e também aqui o silêncio está associado à interrupção do vento:

“-“Acorda!
         - “Quem me chama?”
                   -“Escuta!”
         -“Escuto...”
         -“Nada ouviste?”
                  -“Inda não...”
         -“É porque o vento
Escasseou”.
-“Ouço agora.. da noite na calada
Uma voz que ressona cava e funda
         E após cansou!”
-“Sabes que vos é essa?”
                 -“Não! Semelha
           Do agonizante o derradeiro engasgo,
Rouco estertor...”
                 E calados ficaram, mudos, quedos,
Mãos contraídas, bocas sem alento...
                 Hora de horror!...”

C. Alves (p. 198)

Coleridge obtém efeito semelhante a esse ao escurecer a cena e explorar o silêncio:

Tudo ao redor o ouvido escuta e o olhar perpassa!
Meu sangue vital sorve, como numa taça,
Em meu peito o temor!
Apagam-se as
estrelas, densa é a escuridão;”

S. T. Coleridge (p.51)

no ápice da catástrofe sobrenatural, o “Ancient Mariner” segue com as vozes malditas dos estertores da morteDeath e Life in Death, “as entidades companheiras do Espírito Polar”, que impulsiona o “navio fantasma”. É nesse momento que a tripulação tomba morta, restando apenas o protagonista da tragédia. A propósito: emLoucura Divina”, Castro Alves escreve — “Negro fantasma é quem me embala o esquife!” (p. 199)

É interessante notar como ambos os poemas, cada um a seu modo, apontam para certa posição característica em relação à natureza, que, direta ou indiretamente, acentua as próprias origens. Essa maneira de afirmar a “cor local”, se não comporta o selo nacionalista, reflete, num sentido mais amplo, o contraste romantismo inglês versus romantismo brasileiro.

Notemos, desse ângulo, que o quadro pintado por Coleridge é fosco, nevoento. As brumas, o mar, as velas... uma natureza imprecisa se confunde com o firmamento. É uma tela repleta de sombras, vagas e mistério. Uma tragédia se anuncia. A morte, cada vez mais presente, intensifica o ritmo, vitaliza o poema. Nascido no mesmo ano de Coleridge, Novalis (1772-1801) em seus Fragmentos sobre o Romantismo afirma: “A morte é o princípio romantizador da vida. A morte é, a vida é. A vida é revigorada pela morte.” (12) A vida que, antecipadamente, anuncia a morte n’“O Navio Negreiro”, através da imagem dos escravos aprisionados, que é reforçada pelo contrapontocéu” X “oceano”, símbolos da liberdade e do infinito em oposição ao “tinir de ferros” e ao estalar do chicote no “porão negro, fundo”. A imagem é de grande intensidade simbólica, pois encerra o paradoxo do confinamento em alto-mar.

N’“O Navio Negreiro”, a natureza esplendorosa e tépida confirma o tom inaugural do poema. As cores são claras e nítidas: “Azuis, dourados, plácidos, sublimes...” A noite é magnífica e convidativa à contemplação: “Brinca o luar dourada borboleta;”, ou então: “Os astros saltam como espumas de ouro...”/ “O mar em troca acende as ardentias, / — Constelações do líquido tesouro...” O navio contrasta com a natureza pintada nas duas primeiras partes do poema: surgindo como elemento estranho, é uma tumba flutuante, de cores escuras, que interfere no equilíbrio da cena. no “Ancient Mariner” é a própria natureza, ou algo que se oculta nela, que se encarrega de quebrar sua harmonia. O desequilíbrio é, entretanto, desencadeado pela atitude infame do marujo, que fere a ave (o elemento natural) com sua besta. O contraste, que no primeiro caso é coerente com o poema-denúncia, e que revela o absurdo da condição humana, no poema inglês está, em suma, associado ao sobrenatural.

Essa espécie de toque diferencial em cada obra recebe especial revelo no célebre texto de M. de Staël (1766-1817), A Poesia do Norte e A Poesia do Sul:

O espetáculo da natureza age intensamente sobre eles (os povos do norte); a Natureza age tal qual se mostra naqueles climas, sempre sombria e nebulosa. As diversas circunstâncias da vida podem, por certo, variar esta disposição para a melancolia; mas por si exprime a principal peculiaridade do espírito nacional.(13)

Precursora de uma crítica determinista que se consolidaria mais tarde, Madame de Staël no clima um dos fatores de distinção entre as literaturas do norte e do sul da Europa, que as identifica com tradições distintas; uma filiada a Ossian, a outra a Homero. Extrapolando um pouco os limites de seu texto, e procurando filiar “O Navio Negreiro” à tradição latina — à parte as influências, como vemos, importantes, que Castro Alves recebeu da literatura inglesa, mas também da alemã —, a paisagem que descreve no poema reflete, uma vez adotada essa mesma ótica de Staël, suas origens. Como acontece entre os dois poemas, os tons claros e nítidos do hemisfério sul se contrapõem às cores pálidas e esfumaçadas do norte.

Essas diferenças de tom, luz, cor e perspectiva entre os poemas, sendo um deles mais, e o outro menos fincado à realidade exterior, desfazem-se e encontram numa mesma obra uma forma de representação que as condensa. Inspirado na campanha abolicionista de 1840, O Navio Negreiro (1840 - Boston, Museum of Fine Arts), do pintor inglês Joseph Mallord William Turner (1775-1851), retrata num clima sombrio e apocalíptico algo da mesma natureza reveladora d’“O Navio Negreiro”, de C. Alves.

(http://history.hanover.edu/courses/art/turnss.html 13-06-05, Joseph Turner, The Slave Ship, 1840)

Ao fundo de um mar agitado, um navio é semi-encoberto pela espuma de uma onda que o arrebata pelo flanco direito. Nas águas, desde a embarcação até o plano principal da tela, correntes, carne, sangue, peixes famigerados, aves em rebuliço... negros jogados ao mar, talvez vítimas de alguma epidemia a bordo. No canto direito da tela, em primeiro plano, uma perna acorrentada, mais atrás mãos negras em posição de súplica, revelam outro afogamento. À direita, a possível imagem de um homem se afogando, com respingos de sangue pelo rosto. O mar revolto mistura o negro ao vermelho, gerando contraste entre brilhos e sombras — a imagem é funesta e captada pelos detalhes. O céu, como uma flama acesa, é um misto de vermelho e dourado, e produz uma luz que transpassa a imagem verticalmente, o que isola a cena tétrica abaixo, à direita. O crepúsculo, como um céu sangrando, colore simbolicamente a degradação humana retratada na imagem. 

Repare-se na referida cena, em detalhe: 

no fim do “Ancient Mariner”, salvo pelo bote do Piloto, e em terra firme após a nau vir à deriva, em mirífica descrição, recai sobre o velho marinheiro a penitência de errar sem destino certo, contando sua estória pelo mundo. Através do próprio exemplo — e situa-se a presença de um forte moralismo cristão no poema, até então encoberto pelo enfoque do sobrenatural — o marinheiro passa a pregar o amor a Deus, à natureza e ao próximo. Eis a sua redenção: 

Sempre aquela agonia — e sempre em hora incerta —
Retorna desde então;
Enquanto a minha história tétrica não conto,
Queima-me o coração. 

Tenho um estranho dom do verbo; e, como a noite,
Errar de terra em terra é meu destino;
No momento em que vejo um rosto no lugar, 

Eu sei que é o homem que precisa me escutar,
E meu caso lhe ensino.” 

S. T. Coleridge (p. 77) 

A jornada evangélica a que o marinheiro se fadado, confunde-o com o perfil do contador de estórias, do pregador, ou mesmo do sábio eremita solitário. Na Grécia Antiga, imagem semelhante é a do aedo, o poeta que recitava ou cantava suas composições acompanhado da lira. A ocasião festiva em que o velho marujo relata a estória (são bodas), o fascínio daqueles que o escutam (veja-se o interesse do “convidado nupcial”), e o caráter oral do que é contado, como forma de fundar e perpetuar sua própria tradição, lembram a figura do aedo.         

Em “Ahasverus e o Genio”, Castro Alves descreve o judeu errante segundo uma clave menos teológica e moralizante. Sua atitude beira a mendicância, tamanha a penúria e a dor do “triste (que) seguiu ”. Ahasverus não se mostra como o velho sábio inglês no sentido tradicional do “inspirado”, mas representa aquele para quem a predestinação ao vaticínio, como a de Iocanaam, na Salomé de Oscar Wilde, resultou no confinamento, no estrangeirismo e na solidão. A imagem romântica do poeta , que é, portanto, de origem bíblica, vem associada à do eterno viajante e pregador:

Eterno viajar de eterna senda...
Espantado a fugir de tenda em tenda
Fugindo embalde à vingadora voz!” 

(...)
Ele que pedia sobre a terra
- Silêncio, paz e amor! -”

C. Alves (p. 134)

A imagem do poeta como viajante solitário e fadado a um destino determinado é, portanto, comum a Coleridge e a C. Alves, e está, nos dois poemas, associada à imagem do Albatroz, seja através da assunção do olhar antropomorfizado da ave, no caso d’“Navio Negreiro”, seja através do desencadeamento de acontecimentos que irão convergir na formação do poeta, no sentido do Ahasverus, a partir da morte da ave no “Ancient Mariner”. 

A ascendência que o poema de Coleridge exerceu sobre “O Navio Negreiro” chama a atenção para procedimentos de escrita e efeitos obtidos que correm o risco de passar despercebidos à ótica exclusivista do condoreirismo participante. A identidade entre outros poemas de C. Alves e o “Ancient Mariner”, como é o caso da imagem do poeta errante, não chama somente a atenção para uma provável influência direta de um poema sobre outro, mas para a ressonância implícita de uma tradição anterior aos textos, perpetrada por eles. 

Nesse conjunto de identificações, alimenta, e com isso se encerra aqui, esse mesmo sentido de leitura, a referência a um dos mais lembrados poemas de Baudelaire, em que se confere destaque à imagem do poeta. Ali, o albatroz é metáfora dessa figura, que, como ela, é belo em seus altos vôos, mas coxo e patético quando exilado no chão. “O Albatroz”, localizado na parte intitulada “Spleen e Ideal” de Flores do Mal, parece, de resto, ter seu vôo impulsionado por “The Rime of Ancient Mariner”.(14)


Notas

(*) Caio Gagliardi é Mestre e Doutor em Teoria e História Literária pelo IEL-UNICAMP.

(1) Andrade, Mário de. “Castro Alves”. In Aspectos da Literatura Brasileira. 5a.ed. São Paulo: Livraria Martins fontes, 1974. P.111. O mesmo Mário que em “O Movimento Modernista” aponta para Castro Alves, ao lado de Gregório de Matos, como entre os poucos em nossas letras que, antes dos modernistas, de sua consciência coletiva insurgente em 22, despertou com sua obra o que se pode efetivamente chamar de “consciência nacional”. Op. cit. P. 242.

(2) Candido, Antonio. Formação da Literatura Brasileira. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1959. Pp. 268-269. Reiteradas vezes A. Candido frisa a dialética do localismo versus cosmopolitismo como lei de evolução de nossavida espiritual”. Um ensaio exemplar dessa reiteração é “Literatura e Cultura de 1900 a 1945”, escrito em 1950. In Literatura e Sociedade. 4a. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1975. P. 109-138. Com base nessa dialética, o crítico pensa a literatura brasileira em termos de “ajuste” de um temário europeu de grandes questões, que recebem aqui tratamentolocal”: “...o que realmente interessa é investigar como se formou aqui uma literatura, concebida menos como apoteose dos combucás e morubixabas, de sertanejos e cochoeiras, do que como manifestação dos grandes problemas do homem do Ocidente nas novas condições de existência.” “Letras e Idéias no Período Colonial”. Op. cit. P. 90. Esse campo de tensão, que desemboca na identificação de uma “identidade nacionalsem aderir a um tipo comezinho de regionalismo destinado a simplesmente celebrar o folclórico em si mesmo e anedótico, se é uma das pedras de toque do sistema crítico de A. Candido, faz notar sua antecipação personalíssima na crítica de Mário de Andrade, para quem, se o espírito modernista e as suas modas foram importados da Europa, o ajuste aqui promovido é o atestado de um produto nacional inconfundível. Mário refere-se especificamente a São Paulo neste caso: “E as modas que revestiram este espírito foram, de início, diretamente importadas da Europa. Quanto a dizer que éramos, os de São Paulo, uns antinacionalistas, uns antitradicionalistas europeizados, creio ser falta de sutileza crítica. É esquecer todo o movimento regionalista aberto justamente em São Paulo e imediatamente antes, pelaRevista do Brasil’; é esquecer todo o movimento editorial de Monteiro Lobato; é esquecer a arquitetura e até o urbanismo (Dubugras) neocolonial, nascidos em São Paulo. Desta ética estávamos impregnados. Menotti del Picchia nos dera o “Juca Mulato”, estudávamos a arte tradicional brasileira e sobre ela escrevíamos; e canta regionalmente a cidade materna o primeiro livro do movimento. Mas o espírito modernista e as suas modas foram diretamente importados da Europa.” Na conferência de 1942, “O Movimento Modernista”. Reunida em Aspectos da Literatura Brasileira. 5a.ed. São Paulo: Livraria Martins fontes, 1974. Pp. 235-236.

(3) Bosi, Alfredo. Dialética da Colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. P. 250.

(4) Alves, Castro. Obras Completas. Org., intro e notas por Afrânio Peixoto. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1921. P. 101.

(5) Coleridge, ao lado de William Wordsworth (1770-1850), deu origem a um dos mais fecundos casamentos literários em sua língua, as Lyrical Ballads, de 1798, marco inicial do romantismo inglês. Do volume, dois textos merecem especial destaque: o prefácio de Wordsworth — por muitos considerado a “poética” do romantismo inglês — e o referido poema de Coleridge, que em primeira versão se chamava apenas “Ancient Mariner”, e que figura no volume ao lado de outros três do autor, entre eles o célebre “Kubla Khan”. Segundo planejado pelos autores, coube a Wordsworth a escrita de poemas que tratassem de temas cotidianos, ao passo que Coleridge ficou incumbido de compor poemas sobre temassobrenaturais”. Usarei para as citações do poema a edição bilíngüe S. T. Coleridge — Poemas e excertos da “Biografia Literária. Introdução, seleção e notas de Paulo Vizioli. São Paulo: Nova Alexandria, 1995. Pode-se ler “The Rime of Ancient Mariner” na íntegra, seguido de comentários pontuais a respeito de algumas de suas passagens, no site da Romantic Audience Project: http://ssad.bowdoin.edu:8668/space/snipsnap-index, consultado para este ensaio em 17-06-2005. Vale a pena conhecer, como estudo mais específico sobre cada uma das partes do poema, o hipertexto de David S. Miall, intitulado Coleridge's Albatross: A hypertext essay on The Rime of the Ancient Mariner. University of Alberta: http://www.arts.ualberta.ca/%7Edmiall/mariner/stcstart.htm, consultado na mesma data.

(6) “The Rime of the Ancient Mariner” é também o título de uma música da banda de heavy metal inglesa Iron Maiden (1975-), presente no álbum de 1984, Powerslave, e de autoria de seu baixista e co-fundador Steve Harris. Executada em memoráveis performances ao vivo, “The Rime...” conta com cenário e efeitos visuais (névoa e sombras, para reproduzir a cerração em alto mar) e sonoros (o ranger das ripas de madeira, referente ao momento em que o navio passa à deriva; e os efeitos da guitarra de Dave Muray, que imitam o silvo das almas em danação), que remetem diretamente à atmosfera sombria e aterrorizante do poema de Coleridge. Com 13:36 min. de duração, “The Rime of Ancient Mariner” sintetiza bem o poema, seja obedecendo à sua linearidade, seja dando expressão musical à diversidade de ritmos que compõem o texto. Exemplo disso é a inclusão de duas estrofes ao corpo da peça, recitadas num momento pianissimo da execução. A música notabilizou o álbum, constitui-se como um estimulante convite para a leitura do poema, e se consolidou como um dos épicos desse gênero musical.

(7) Alves, Castro. Os Escravos. Bahia: Livraria Progresso Editora, 1956. Pp. 110-111. Uso a mesma edição para as citações de “O Navio Negreiro” e demais poemas do autor.

(8) Gustave Doré foi provavelmente o mais célebre gravurista do sec. XIX. Ilustrador de mais de 200 livros, ele é conhecido por ter ilustrado textos como A Divina Comédia, de Dante; Don Quixote, de Cervantes; O Paraíso Perdido, de Milton; Gargantua e Pantagruel, de Rabelais; e o poema “O Corvo”, de E. A. Poe. Esta e as demais gravuras aqui reproduzidas foram consultadas em http://www.artpassions.net/dore/dore.html, em 17-06-2005.

(9) Johann Moritz Rugendas, nascido em 1802, tornou-se o principal artista alemão no Brasil em registros da época da Independência. Entre os temas mais característicos da obra brasileira de Rugendas estão os relativos à escravidão. “Navio Negreiro” é uma de suas obras mais reproduzidas.

(10) Cf. Lawrence, D. H. The Complete Poems. London: Heinemann, 1957.

(11) A tradução é minha.

(12) Cf. Novalis, Friedrich von Hardenberg. "Fragmento: 1768”. In Polen. Fragmentos, diálogos, monólogos. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho. Sao Paulo: Iluminuras, 1988.

(13) Cf. Gomes, Álvaro Cardoso e Vecchi, Carlos Alberto. Estética romântica: textos doutrinários comentados. Trad. de Maria Antonia Simões Nunes e Duilio Colombini. São Paulo: Atlas, 1992.

(14) É o caso de lembrar outros dois textos que procuram estabelecer, rapidamente, algum tipo de filiação entre “O Navio Negreiro” e “O Pavilhão Negro”, de Mendes Leal, e “Banzo”, de Raimundo Corrêa. Trata-se dos artigos intitulados “Ressonâncias”, de Antonio Candido, e “‘O Navio Negreiro’ e ‘Banzo’: análise contrastiva”, de Valter Kehdi. In O Mestre. Academia Lusíada de Ciências, Letras e Artes Centro de Estudos Portugueses (USP). Coord. e ed. Maria Helena Nery Garcez e Rodrigo Leal Rodriguez. São Paulo: Green Forest do Brasil Editora, 1997.


BIBLIOGRAFIA

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Gomes, Álvaro Cardoso e Vecchi, Carlos Alberto. Estética romântica: textos doutrinários comentados. Trad. de Maria Antonia Simões Nunes e Duilio Colombini. São Paulo: Atlas, 1992.

Kehdi, Valter. “‘O Navio Negreiro’ e ‘Banzo’: análise contrastiva”. In O Mestre. Academia Lusíada de Ciências, Letras e Artes Centro de Estudos Portugueses (USP). Coord. e ed. Maria Helena Nery Garcez e Rodrigo Leal Rodriguez. São Paulo: Green Forest do Brasil Editora, 1997.

Lawrence, D. H. The Complete Poems. London: Heinemann, 1957.

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Novalis, Friedrich von Hardenberg. Polen. Fragmentos, diálogos, monólogos. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho. Sao Paulo: Iluminuras, 1988.

Powerslave. LP. “Rime of Ancient Mariner”. Letra: Steve Harris. Artista: Iron Maiden. EMI, 1984.


RESUMO

“O Navio Negreiro”, marco de nosso romantismo, é aqui deslocado do pano de fundo nacional e abolicionista, e analisado segundo um duplo movimento, de aproximação e contraste, com a balada inglesa “The Rime of Ancient Mariner”, de S. T. Coleridge. À possíveis contigüidades estrutural, lexical e semântica entre os poemas acrescem-se leituras mais breves, e ilustrativas, de outros poemas de Castro Alves, D. H. Lawrence e Baudelaire, de uma seleção de gravuras que Gustave Doré dedicou ao poema inglês, e da tela de Turner, homônima ao poema brasileiro.

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